sexta-feira, 31 de julho de 2020

Gonzalo Vecina - O balanço da pandemia, OESP

Gonzalo Vecina Neto*, O Estado de S.Paulo

31 de julho de 2020 | 05h01

O primeiro caso de covid-19 brasileiro foi diagnosticado em 26 de fevereiro. Estamos com 2,5 milhões de casos e mais de 90 mil mortes. Qual o balanço? A primeira indagação a ser feita: existe um genocídio? Manaus – que enterrava 30 pessoas por dia – chegou a enterrar 160 e o fez em valas coletivas, como ocorre em situações de guerra e de grandes emergências. Colapsaram hospitais e cemitérios. Além dos óbitos, ainda não contabilizáveis entre populações indígenas no Amazonas, em Roraima e mais recentemente no Xingu. São populações de responsabilidade federal de acordo com a Constituição Federal.

Os funcionários do cemitério preparam os caixões para serem enterrados em uma vala comum no cemitério de Nossa Senhora em Manaus, estado da Amazônia.
Os funcionários do cemitério preparam os caixões para serem enterrados em uma vala comum no cemitério de Nossa Senhora em Manaus, estado da Amazônia.  Foto: MICHAEL DANTAS / AFP

A epidemia cresce em alguns Estados e caminha para a interiorização, está estagnada naqueles em que teve rápida propagação e estabilizada em um ponto elevado em outros Estados. Certamente os casos foram fruto da exposição de grupos de pessoas que são, em grande parte, dependentes da economia informal e os dados comprovam isso – mais casos e mais óbitos entre pobres e negros nas periferias das grandes cidades. 

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Os pobres e negros seriam uma preferência do vírus? Claro que não, somente devido à exposição. O vírus infecta quem o encontra e este é o caso dos pobres. E também os mata proporcionalmente.

Quem ficou em casa está esperando a flexibilização e quando esta chegar vão marcar encontro com o vírus e ter sua chance. Este momento está chegando. Onde ocorreu a flexibilização quem saiu foi quem já estava saindo – ou por ser pobre e ter de encontrar comida ou por ser trabalhador dos setores que não reduziram atividade.

Agora se fala da importância de voltar às aulas. Recuperar em três meses o ano perdido. São cerca de 50 milhões de pessoas entre alunos, professores e pessoal de apoio. Grande parte estava em casa. Os prontos-socorros infantis vazios são a prova do sucesso do isolamento. Provavelmente a liberação dos alunos, por mais cuidadosa que seja, vai provocar casos entre eles e nós, adultos, que estamos em casa. Valerá a pena? Discutiremos escola a escola, casa a casa? Em um país sem governo?

Como tomar decisões sobre flexibilização? Primeiro, tem de testar para diagnosticar e isolar novos casos para não aumentar o total de infectados. Mas o Brasil testa três casos por paciente diagnosticado, em comparação com os 10 a 30 nos países europeus. E o governo federal não reconhece seu papel nessa lide. 

E pior: está na hora de usar os testes sorológicos de forma inteligente para saber qual parte da população já teve a doença. Temos de patrocinar pesquisas como a da Universidade Federal de Pelotas. O Ministério da Saúde vinha financiando a pesquisa, que tem seis fases, mas por alguma razão mal explicada resolveu parar na terceira. Não quer saber o que está ocorrendo. Impressionante.

Também desistiu, mesmo sendo o maior financiador do SUS (o governo federal é responsável por 50% do dinheiro do SUS), de resolver ou ajudar a resolver os graves problemas de abastecimento de medicamentos essenciais para tratar os pacientes, como os anestésicos e relaxantes musculares. Falta no Brasil e teremos de importar. Problema dos Estados e municípios!

Mas sobra cloroquina, os estoques estão abarrotados. E vários municípios, nessa funérea confusão, criam filas para distribuir kits de medicamentos sem uma prescrição médica nem indicação clínica! Isso pode. Os conselhos e associações corporativistas defendem o ato médico e calam frente a esse processo criminoso de distribuição de medicamentos. E depois de tudo isso nos insurgimos contra o ativismo jurídico! Só sobrou o Judiciário para pôr ordem na casa e cessar o genocídio.

* É medico sanitarista


Imprensa francesa destaca relação de Gilles Lapouge com o Brasil, OESP

Paulo Beraldo, O Estado de S.Paulo

31 de julho de 2020 | 15h45

Ao noticiar a morte de Gilles Lapouge, jornais franceses abordaram a longa relação do jornalista e escritor com o Brasil. Le FigaroLe Monde e Le Journal du Dimanche ainda destacaram o papel de Gilles na imprensa francesa por ter sido um dos criadores do programa Ouvrez les guillemets (Abra aspas), que se tornaria o Apostrophes, uma das principais produções televisivas de literatura do país. Segundo familiares, Lapouge não resistiu a uma infecção pulmonar. Jornalista do Estadão há 70 anos, ele faria 97 anos em novembro. 

O Le Figaro cita a relação de Gilles Lapouge com o Brasil e compara sua curiosidade com a do escritor Stendhal, lembrando do livro 'Dicionário dos Apaixonados pelo Brasil'. O texto lembra que Gilles foi "pego" pelo vírus do jornalismo pela sua passagem no Brasil, nos anos 1950, quando se tornou correspondente do Estadão

"Desde essa data e por mais de 60 anos, ele colaborava regularmente com o principal jornal do País, O Estado de S. Paulo, escrevendo o equivalente, segundo seus cálculos, a cerca de cinquenta volumes da "Pléiade" (coleção de livros de uma famosa casa editorial francesa)", escreveu o Figaro. De acordo com o acervo do Estadão, foram mais de 10 mil textos escritosPelo menos cinco dos mais de 25 livros que escreveu ao longo de sua trajetória tiveram o Brasil como tema.

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O jornalista Gilles Lapouge no acervo do Estadão   Foto: Alex Silva/Estadão

No Brasil, viajou pela Amazônia, Rio de Janeiro, São Paulo e era apaixonado pelo Nordeste, principalmente pelo sertão. "Ele tinha memórias muito fortes do Brasil. Amava o Nordeste, o sertão. Sempre contava dos anos no Brasil, das leituras de Jorge Amado. Ele gostava muito das histórias dessa região", disse ao Estadão o amigo Michel Goujon, editor do clube de livros France Loisirs que trabalhou com Gilles por muitos anos. "Ele era um purista com a escrita, escrevia e corrigia 100 vezes. Muitas vezes, seus textos se assemelham a poemas, eles têm um musicalidade". 

"Na França, todos admiravam Gilles e você só podia vê-lo depois que ele escrevia sua coluna. Ele impressionou a todos nós com a beleza de sua alma, seu humor e sua elegância. Ele era um viajante, foi para a África com seus filhos há dois anos. Para nós, é uma árvore enorme e bonita que acaba de ser derrubada", afirmou Valérie Dumeige, que foi editora do escritor na Éditions Arthaud.

O jornal Le Monde escreveu que um grande "escritor viajante" morreu, destacando a curiosidade como uma das características marcantes de Lapouge. Cita a passagem de Lapouge pela rádio e também pela televisão, descrevendo-o como um "homem das mídias". A agência de notícias francesa AFP, que distribui seu conteúdo para dezenas de países, também noticiou a morte do escritor e sua relação com o Brasil. 

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O jornalista Gilles Lapouge durante viagem à África, aos 94 anos Foto: Jerême/ Mathilde Garro Lapouge

Le Journal du Dimanche usa as próprias palavra de Lapouge para descrevê-lo: "Sou mais um viajante surpreendido do que um viajante surpreendente". O texto também cita o "caminho único" de ser um profundo conhecedor do Brasil.

O jornal cita a passagem de Lapouge na imprensa francesa em veículos como Le Monde, le Figaro e em transmissões televisivas para falar de literatura na França. O diário usou as mesmas palavras da Embaixada da França no Brasil para resumir uma característica inconfundível de Lapouge: 'Era um apaixonado pelo Brasil". 


Fernando Schüler O Supremo é o editor da sociedade?, FSP

Foi interessante assistir ao ministro Dias Toffoli, nesta semana, em um debate promovido pelo site Poder 360, expondo com clareza seus pontos de vista sobre temas de censura e liberdade de expressão hoje em pauta no país.

O ministro foi taxativo: “A Constituição veda de modo absoluto a censura prévia”. E concluiu: “Aquilo que ainda não foi tornado público pode vir a público e a pessoa vai arcar com suas consequências [...] pode emitir sua ideia, seja ela qual for. Até de defender o nazismo, até de defender o fechamento do Supremo”.

Dito isto, era óbvia a pergunta pendurada no ar: e os cidadãos banidos das redes sociais, no inquérito das fake news? Isto é, impedidos previamente de dizer as coisas que poderiam lhes trazer “consequências”. O que dizer?

O ministro sugeriu uma distinção: uma coisa seria proibir a “expressão” de um indivíduo; outra seria proibi-lo do uso de “veículos” para se expressar. Nesta lógica, os bloqueados não teriam perdido sua liberdade. Apenas não poderiam fazê-lo no Facebook ou no Instagram. Poderiam publicar panfletos, imaginei, mas ninguém aventou a hipótese.

Ato seguinte, o ministro sugeriu uma analogia entre os bloqueios e as prisões preventivas. Privação do direito de ir e vir seria muito mais grave do que perda da liberdade intelectual ou de expressão. Por que então deveria chocar mais as pessoas “meia dúzia de redes sociais paradas do que 200 mil pessoas presas provisoriamente?”

De minha parte, só vejo uma resposta a esta questão: choca por que é algo que não está na lei, muito menos na Constituição. Não importa que se trate de prisão ou banimento do Twitter. Choca é o desrespeito a um princípio, que é um bem para uma sociedade democrática.

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O ministro foi além. Depois de se referir ao fato de que toda empresa de comunicação tem seu editor, explicou que “nós, enquanto Judiciário, enquanto Suprema Corte, somos editores de um país inteiro, de uma nação inteira, de um povo inteiro”.

Eugênio Bucci estava no debate e, com sua gentileza habitual, lembrou que sociedades não funcionam como empresas de comunicação. Estas pertencem ao mundo privado e podem demitir o funcionário a partir de juízos de valor. Caberia, porém, a uma instituição de Estado fazer o mesmo? Isto é, “eleger valores que definem a circulação de conteúdos”?

Eis aí a questão central: sociedades abertas precisam de um “editor”? Sociedades que se definem precisamente pela diversidade de visões de mundo e por um desacordo fundamental sobre o erro e o acerto, o falso e o verdadeiro?

A resposta a esta pergunta está no próprio nascimento da ideia moderna de liberdade de expressão. Foi para defender o fim do direito à censura prévia de livros que o poeta inglês John Milton, no coração da revolução inglesa, escreveu sua “Areopagítica”.

Em 1644 eram os livros. Hoje são redes e blogs. A questão fundamental é a mesma. Deveríamos presumir, perguntava Milton, que aqueles que censuram “dispõem da graça da infalibilidade, acima de todos nessa terra”? Era exatamente contra a ideia do Estado editor que John Milton se batia.

Estas questões pareciam estar resolvidas há muito tempo. De uma hora para outra, a coisa mudou. Vamos nos tornando um país em que a defesa da liberdade de expressão vai surgindo como um exercício perigosamente retórico e seletivo. E estranhamente capaz de assustar as pessoas.

País em que se aceita acriticamente o retorno da “absolutamente vedada” censura prévia. A lógica do “você não fala mais nada, seja bom, seja mau, seja verdade, seja mentira”, como bem lembrou o professor e amigo Marco Sabino.

Os crimes cometidos na internet devem ser punidos, na forma da lei, e é saudável que se discuta mecanismos de proteção das instituições frente às novas tecnologias. O Congresso, neste exato momento, se dedica a esse debate.

Nada disso, porém, admite a tutela do Estado sobre a opinião. Ainda lembro do orgulho que todos sentimos quando a ministra Cármen Lúcia lembrou canções de sua infância para dizer que o “cala a boca já morreu”. Sugiro não ressuscitá-lo.

Fernando Schüler

Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.