segunda-feira, 11 de maio de 2020

Guia reconta trajetória de trens há exatos 100 anos em cidades do interior paulista, FSP

Marcelo Toledo
Um guia de 40 páginas, que possivelmente pertenceu a algum chefe de estação da extinta Companhia Mogiana de Estradas de Ferro, mostra como era o trajeto ferroviário há exatos 100 anos em cidades do interior de São Paulo.
Embora não seja inédito –há documentos do gênero em locais como o Arquivo do Estado e museus–, a publicação, intitulada “Companhia Mogyana de Estradas de Ferro e Navegação – Horário”, apresenta dados preciosos sobre o dia a dia da operação dos trens, que percorriam cerca de 2.000 quilômetros de trilhos em São Paulo e Minas Gerais.
Com data de 19 de setembro de 1920, a publicação leva os nomes de dois ex-funcionários graduados da Mogiana, Jayme de Castro Barbosa, chefe de tráfego, e Carlos Stevenson, inspetor geral, e caiu nas mãos do servidor público federal Mario Favareto, 52, após aquisição num sebo virtual. E não foi o único documento raro ligado às ferrovias garimpado por ele.
Confeccionado em capa dura e couro, o livro é separado por rotas, como a que ligava Campinas a Ribeirão Preto, duas das mais importantes cidades do interior paulista, ou Ribeirão a Uberaba (MG), via Franca.
“O que amigos me contaram é que provavelmente pertenceu mesmo a algum chefe de estação, era um documento com informações completas da ferrovia. Alguém chegava lá e ele tinha de ter tudo detalhado para orientar as pessoas”, disse.
Trecho do guia com informações sobre a operação de trens entre Campinas e Ribeirão Preto (Reprodução)
Amante da memória ferroviária, quando criança viajava com a família em trens da Companhia Paulista e começou a juntar material sobre o assunto. Já adulto, utilizou filmes da época e criou um DVD para presentear os pais e lembrá-los como eram as viagens que eles faziam.
Mas, além de todo o itinerário e cidades atendidas pela companhia ferroviária, a publicação também exibia informações sobre a existência ou não de vagão restaurante e até qual cidade ele percorria os trilhos, eventuais pausas para jantar e sua duração (normalmente de 20 a 25 minutos), horário de conexão com ramais atendidos pela Paulista e apresentava a altitude em que todas as estações se encontravam.
Enquanto a de Ribeirão Preto estava 517 m acima do nível do mar, em Pedregulho, 144 quilômetros depois, na Linha do Rio Grande, a estação ficava a 1.031 m.
COMO ERA
Ocupando duas páginas do guia, a rota Campinas-Ribeirão tem descrição de estações, quilometragem e horários de chegadas e partidas. Mostra, por exemplo, que a distância percorrida entre as estações principais da Mogiana nas duas cidades era de 317 quilômetros. Hoje, pela rodovia Anhanguera, esse trajeto é de pouco mais de 220 quilômetros.
A diferença é explicada principalmente pelo fato de os trens da Mogiana terem ficado conhecidos como “cata-café”, por terem traçado que passava pelas grandes fazendas de café que existiam entre as últimas décadas do século 19 e as primeiras décadas do século passado.
Estação Oriçanga, em Estiva Gerbi, que foi inaugurada em 1899 e integrava a rota Campinas-Ribeirão; hoje sem trilhos, a estação, que fica na zona rural, abriga famílias (Marcelo Toledo/Folhapress)
Isso não é exclusividade da Mogiana, já que a maioria das ferrovias paulistas foram construídas com capital levantado nas próprias regiões de atuação, bancadas especialmente pelos barões do café.
Eram exatas 50 estações entre as duas cidades, numa viagem que, se não houvesse atraso –o que era comum à época–, seria feita em pouco mais de nove horas. Sim, nove horas, passando por estações como Oriçanga e Estiva Gerbi
Também detalha a operação de ramais como os de Amparo, Socorro, Serra Negra, Itapira, Mococa, Guaxupé (MG), Sertãozinho, Cajuru e Cravinhos, entre outros.
No de Mococa, o trem que percorria toda a sua extensão partia de Casa Branca às 13h05 e tinha previsão de chegada para as 15h27, num trecho de 72 quilômetros entre as 12 estações.
RARIDADE
O histórico guia deverá ser doado no futuro à ABPF (Associação Brasileira de Preservação Ferroviária), entidade à qual o servidor público é associado há 14 anos.
Mas, além da publicação da Mogiana, Favareto adquiriu, em outra oportunidade, uma série de relatórios de administração da Companhia Paulista por R$ 50. Também pela internet. “O cara que vendeu disse que iria para o lixo, imagine.”
Esse material foi cedido por ele ao pesquisador Ralph Mennucci Giesbrecht, que há mais de 20 anos atua na preservação da memória ferroviária e é autor de livros sobre o setor, como “Um Dia o Trem Passou por Aqui” (Studio4, 2001).

Pense verde! Dá dinheiro, Willian Vieira, Gama

Quando o guru de novos negócios Hitendra Patel veio ao Brasil em 2018 falar sobre empreendedorismo, seu discurso, claro, foi permeado pelas duas palavrinhas mágicas do mercado nos últimos anos: “millenials” e “inovação”. Junto delas, porém, figuraram outras que, até pouco tempo, jamais seriam sinônimo de avanço tecnológico ou de ganhar (muito) dinheiro: renovar, reciclar, reusar. “Pense verde!”, afirmou.
Como “a próxima geração quer salvar o planeta”, em breve não haverá mais espaço para empresas que desperdiçam e poluem demais, cravou o professor de inovação da Universidade de Toronto e fundador da consultoria IXL Center, especializada em estratégias globais de inovação. Do contrário, disse à plateia de jovens executivos, “os clientes não vão escolher sua companhia”.
Otimismo à parte, o boom do green money é real. Muitas empresas já têm a inovação sustentável como ponta de lança, decorrência do que vem sendo chamado pelos economistas de “efeito Greta”: poluir tem pegado mal, e para um público cada vez maior. Até a gigante Microsoft anunciou: terá emissão negativa de carbono até 2030 e, até 2050, terá removido todo o carbono emitido desde sua fundação, em 1975.
Poluir tem pegado mal para um público cada vez maior, o “efeito Greta”: não basta inovar, tem de ser sustentável e consciente
Há, claro, marcas que se aproveitam do anseio consciente para vender gato por lebre, o greenwashing. Mas “o crescimento só em busca de lucros vai diminuir à medida que as pessoas demandem produtos e serviços que sejam pessoalmente importantes e social e ambientalmente benéficos”, diz a consultoria Accenture sobre as tendências do consumo global para 2020.
Soa utópico, mas basta seguir o dinheiro: se até empresas de petróleo como a Shell têm seguido o caminho ecológico em seus investimentos novos é porque a inovação verde veio para ficar.
© Divulgação
TÊNIS ECOLÓGICO // Eis um exemplo de como pesquisa com investimento público, ativismo ecológico e marketing capitalista podem se juntar — e todos sairem ganhando. A Parley for the Oceans desenvolveu a tecnologia para transformar toneladas de plástico que poluem os oceanos em fibras para a indústria. A Adidas comprou a ideia: em um ano, mais de um milhão de pares foram vendidos, conectando a marca ao consumidor que quer “comprar verde”.

O “efeito Greta” chegou a Davos

E assim a inovação verde chegou à meca do PIB global. Ninguém menos que Klaus Schwab, fundador do Fórum Econômico Mundial, afirmou, em seu manifesto de 2020, que uma empresa, para se dar bem atualmente, deve “conscientemente proteger nossa biosfera e promover uma economia circular, compartilhada e regenerativa”.
Sustentabilidade, meio ambiente, relações éticas com trabalhadores e comunidades e o futuro material do planeta, afirma peremptoriamente o documento, figuram como fundamentais para uma empresa ter valor.
Mesmo antes, o BlackRock, maior fundo de gerenciamento de dinheiro do mundo, anunciou que não investiria em empresas não sustentáveis. Fundos de pensão que aplicam bilhões todo ano em startups com ações em bolsa sugeriram ainda uma pontuação baseada em temperatura: dependendo do grau (de impacto), um negócio inovador mereceria o investimento – ou não.
© Divulgação IBM Research
BATERIA DE ÁGUA DO MAR // Milhões foram investidos nas baterias de grafeno e outros começam a ser gastos em baterias menos nocivas, como o protótipo da IBM feito com água marinha: nada de cobalto, níquel e outros minerais usados em baterias de celular e carros elétricos, advindos de minas que estimulam a exploração de trabalhadores e guerras na África.
Tanto que, no começo de 2020, o ministro da Economia, Paulo Guedes, voltou de Davos pedindo a cabeça do colega do meio ambiente: não pegou bem entre os investidores globais a política ambiental brasileira, sobretudo em relação à Amazônia.
O que Davos, ONU e as maiores empresas do mundo têm chamado de Quarta Revolução Industrial (ou o livro homônimo de Schwab), afinal, passa pela inovação verde. O lema é expandir “as fronteiras do conhecimento, da inovação e da tecnologia para melhorar o bem-estar das pessoas”, crava o manifesto.
Cada vez mais,  além de design e tecnologia, uma empresa deverá provar que não destrói o ambiente à toa
Pois cada vez mais gente quer consumir sem culpa. “A difusão de informações sobre como os produtos são produzidos tem aumentado e modificado as exigências antes de consumi-los”, diz André Cherubini Alves, professor da FGV e pesquisador no Núcleo de Estudos em Inovação da UFRGS. Como diz a Accenture em seu Fjord Trends 2020: as marcas que inovarem se importando “com o planeta e as pessoas – e com as causas que estas defendem – irão emergir como as vencedoras.”
Essa liquid people é formada por consumidores com prioridades mais “fluidas”, focando menos na posse e mais na experiência trazida pelo serviço e seu impacto na Terra: mesmo ao contemplar a tecnologia de ponta e o design (e, por que não, o luxo), fazem-no pensando nas mudanças climáticas e na sustentabilidade.
© Divulgação
RECICLAGEM NO APP // Cataki é um app que conecta geradores de lixo (ou seja, qualquer um de nós) e catadores de resíduos, o que permite aumentar a reciclagem nas cidades e a renda dos trabalhadores. Já há quem o chame de Tinder da reciclagem. Cerca de 1400 dos mais de 800.000 catadores do Brasil estão cadastrados na plataforma, onde dá para consultar a biografia, o número do profissional mais próximo e saber o tipo de material que recolhe.
São millenials impactados pelos esforços da jovem Greta Thunberg em não pegar avião, mas que não abrem mão do novo smartphone. Assim, no lugar da obsolescência programada, que antes incomodava o bolso e agora choca pelo impacto sobre os recursos naturais do planeta, o foco do design de produtos, diz a pesquisa, “se estenderá para além do usuário final, concentrado design direcionado para uma vida inteira”.
Tal boom do green money é real. Só não se deve a uma tomada de consciência nos corredores bilionários de Wall Street, mas à pressão da sociedade, a regulações e financiamentos governamentais. O consumidor mudou – e, com ele, o mercado. “Frente aos riscos à biodiversidade, toda tecnologia social e ecologicamente responsável traz um diferencial que agrega valor”, diz à Gama Woo Jin Lee, especialista sênior em inovação do Climate Technology Centre and Network (CTCN) da ONU.


Em junho, o CTCN terá um painel sobre como as novas fronteiras tecnológicas podem ajudar a mitigar o impacto sobre o ambiente no Fórum de Energia de Viena, cujo slogan diz tudo: “a quarta revolução industrial como catalisadora da transição energética”. Pois “a inovação abre portas para sermos mais éticos”, diz Lee. Separar engodo e realidade será a tarefa do consumidor consciente. Greta segue de olho.

“Inovar por inovar já não basta”, Revista Gama

Era uma vez uma empresa que revolucionou a telefonia com um celular inteligente, conquistando executivos e políticos com um teclado genial, troca de mensagens e segurança de ponta. Não, não foi a Apple, mas a Blackberry. A firma inovou antes de todos e dominou o mercado por anos, mas quase faliu – o porquê é uma aula sobre inovação: cegada pelo sucesso, ignorou os sinais de que o mercado queria algo novo, que concentrasse música, mapas e navegação ao toque do dedo. “Ela perdeu o ponto de inflexão”, diz Rita McGrath, professora da Universidade Columbia e uma das maiores especialistas em inovação do mundo. Em entrevista a Gama, ela explica por que o termo virou fetiche na era millennial, destrincha a bolha das startups e mostra que inovar nem sempre é sinônimo de algo bom. E diz ainda que a atual pandemia de coronavírus é “um momento sensacional” para inovar.
  • G |Todo mundo fala em inovação. O termo está em toda parte. Mas o que é inovar, afinal?
    Rita McGrath |
     
    Inovar é fazer algo novo que cria valor, mas geralmente se trata de uma combinação nova de coisas que existem. As pessoas confundem inovação com invenção, que é criar algo do zero.
  • G |Por que inovação virou uma palavra mágica no mundo dos negócios e da tecnologia, quase um fetiche?
    RM |
     
    Porque inovar virou questão de sobrevivência. O caso da Blackberry é emblemático. Eles dominaram o mercado por muito tempo, mas perderam o ponto de inflexão [o momento em que o mercado passa a indicar o que será o novo padrão], no caso em relação aos verdadeiros smartphones que as pessoas queriam ter no bolso. Cegados pelo sucesso, não perceberam os sinais fracos de que o mercado estava mudando. As firmas não deixavam os executivos terem a primeira versão do Iphone porque não era seguro, eles tinham Blackberry. Então a empresa achou que seria mais uma escolha do consumidor comum. Mas era o que todos queriam.
  • G |Então é preciso inovar o tempo todo?
    RM |
     
    Exato. A estabilidade que as empresas tinham já não vale em vários setores da economia. Cinquenta anos atrás, acreditávamos que elas durariam muito, assim como suas vantagens competitivas. Mas o oposto tem ocorrido: as barreiras de entrada no mercado diminuíram. Antes era preciso um estúdio inteiro e uma estrutura global de distribuição para gravar um vídeo. Hoje, duas crianças numa garagem mandam um vídeo para um bilhão de pessoas com um smartphone. No passado, um empresário passava a carreira toda num só negócio. Hoje, as empresas precisam dominar, num curto período, os três ciclos da cadeia da vantagem competitiva: lançar algo novo; explorar o modelo de negócio; e enfrentar a erosão, quando se torna obsoleta e precisa inovar. E o tempo que leva para uma nova tecnologia ser adotada se comprimiu. A America Online precisou quase cinco anos para penetrar 20 milhões de lares (nos anos 90); o IOS da Apple levou pouco mais de dois anos para alcançar 60 milhões.
  • G |O segundo termo mágico é “millennials”. Qual o papel deles em reinventar a inovação?
    RM |
     
    Inovar é o lugar deles na história, é a lente geracional que aplicam a tudo o que fazem. Se você pegar inovação, ou disrupção nas buscas de hoje e fizer uma troca por “globalização” nas buscas de 15 anos atrás, ou ainda por “empreendedorismo” 15 anos antes, verá a mesma coisa. É a palavra que define a época. No caso da inovação, precisamos atentar para o impacto dos negócios ditos inovadores. Vivemos um agudo viés pró-inovação, como se ela sempre fosse positiva. E isso objetivamente não é verdade.
  • G |Seria o caso de nos perguntar para quê e para quem serve a inovação?
    RM |
     
    Sim, há inovações que levam a coisas terríveis. A engenharia financeira e a “financeirização” da economia dos últimos 30 anos não tem sido benéfica para a maioria. Alguém foi inovador, criou processos, mas não foi algo bom. Veja o que acontece com os restaurantes: uma proporção imensa das refeições produzidas já não é servida neles. Mas ninguém abre um restaurante para descobrir qual o melhor frango assado para pôr numa caixa de papelão e enviar pelo entregador numa bicicleta e sim para oferecer hospitalidade. É um exemplo de inovação que, sim, oferece conveniência, mas o que mais? Não é necessariamente positivo para os restaurantes, pois reduz a margem de lucro. O que a sociedade ganha com isso?
  • G |Inovação e startups viraram sinônimos, mas com a sucessão de empresas que receberam bilhões de investimento e não dão lucro, já se fala em bolha. O que deu errado?
    RM |
     
    A maioria desses “Uber disso, Uber daquilo” é uma grande ilusão. Não sabemos se há um modelo de negócios rentável nesse tipo de serviço. A Uber ainda perde dinheiro e subsidia motoristas e passageiros. As empresas de delivery de comida, idem: são boas ideias, mas a aritmética para saber se são viáveis não foi feita. Ao contrário de uma empresa convencional, que não é bancada por investimentos de risco, essas startups não são forçadas a mostrar resultados de cara. Elas podem perder dinheiro por muito tempo e seguir tentando. A WeWork é um exemplo: um punhado de gente conta uma boa história e os investidores inundam a empresa com milhões de dólares, ignorando o básico do empreendedorismo. Chegamos a um nível tal de desigualdade que o dinheiro concentrado no topo da cadeia não tem para onde ir. Então cria-se uma bolha.
  • G |A concentração de renda tem alimentado as startups?
    RM |
     
    Sim. Há tanto dinheiro concentrado nas mãos de tão poucos que eles já não conseguem gastá-lo. Há um limite para o número de iates que se pode comprar. Então o dinheiro acaba nos “pools de investimento”. Por isso há bolhas em toda parte. Muito do interesse em investir nas startups se dá porque essa gente não tem mais o que fazer com seu dinheiro. Num ambiente com juro perto de zero (nos Estados Unidos), para ter retorno, é preciso arriscar. Por que não investir numa “venture” e torcer para que ser o novo Facebook? Mas o modelo é falho. É fato que startups lideradas por mulheres ou minorias recebem investimentos absurdamente menores que as geridas pelos “suspeitos usuais” [homens brancos heterossexuais]. Esse dinheiro nem sempre está indo para negócios realmente inovadores.
  • G |Então é preciso repensar o que é inovação?
    RM |
     
    Creio que sim. A mitologia de que é preciso levantar bilhões para ser uma startup não faz sentido. O mundo está cheio de empresas que movimentam só US$ 50 milhões por ano e pagam bem, oferecem serviços úteis, têm consumidores satisfeitos. Esse mito em torno da inovação deve ser repensado. Essas mudanças ocorrem a cada dez, vinte anos, e é algo que está começando a ocorrer agora de novo. Há até pouco tempo, você tinha uma ideia, achava um mercado lucrativo para seu produto e decidia a escala. As startups encurtaram o caminho, indo da ideia nova direto para o scaling, sem pensar como fariam dinheiro com a ideia. Porque não eram demandadas. Agora, veio a reação: demissões, investidores que param de colocar dinheiro nas rodadas de capitalização e até a adesão dos funcionários a sindicatos – a Kickstarter [maior site de financiamento coletivo] agora tem sindicato! Isso é algo inédito!
  • G |Estamos começando a relacionar inovação e responsabilidade?
    RM |
     
    Creio que estamos vivendo um grande ponto de inflexão, que é o retorno a formas mais humanas de fazer negócios. Muito dessa “gig economy”, desses “Uber disso e daquilo” só funciona porque não tratam as pessoas como funcionários. Garantias e proteções básicas não fazem parte do modelo de negócio; sem arcar com nenhum custo, conseguem oferecer uma entrega barata de comida ou uma corrida barata de táxi. Mas a sociedade vai dar a palavra final. Isso já ocorreu antes. Se pensarmos na primeira Era de Ouro da industrialização, no fim do século XIX, fortunas foram criadas, havia os “barões ladrões”, até que a sociedade disse: basta! Então foram criadas proteções sociais, sindicatos… porque se foi longe demais. O capitalismo precisa ser livre para inovar, mas dentro de uma estrutura definida.
  • G |Inovação e regulação estatal não são inimigas, afinal?
    RM |
     
    Elas não precisam ser! A regulação é o que impede que alguém torre recursos que todos deveriam partilhar. As instituições e os incentivos determinam que tipo de inovação uma sociedade terá. Um exemplo é como lidamos com preocupações ambientais – enquanto não havia formas institucionais de lidar com a poluição, as empresas que impactam o ambiente não pensaram em alternativas. Vide as companhias de gás e óleo escandinavas. Forçadas pela guinada rumo à energia sustentável, elas investiram para baratear as fontes de energia sustentável, o que funcionou. Os custos estão em baixa acelerada, o que pode causar uma mudança global rumo a formas mais ecologicamente corretas de produzir e consumir energia.
  • G |Sustentabilidade será a palavrinha mágica dos negócios, como inovação é hoje?
    RM |
     
    Eu não me surpreenderia! Mas é fato. Empresas grandes como a Unilever tratam disso de forma séria, outras fazem “greenwashing”. Mas sustentabilidade virou parte fundamental da conversa. Nenhum CEO hoje pode defender uma agressão ao meio ambiente. Mesmo que polua, ele dirá que são as regulações que estão impedindo-o de criar empregos. Hoje, criar produtos irresponsáveis com impacto social negativo desperta reações intensas.
  • G |Quem vai ditar essa necessidade de uma inovação mais consciente?
    RM |
     
    Temos visto organizações como o Greenpeace realizar protestos contra empresas que poluem, e eles têm sido efetivos. Então quem inova hoje precisa pensar sobre quem pode ficar incomodado com o sucesso de um novo produto ou serviço. Eu recomendo sempre uma ferramenta que chamo de DRAT (“Delay resistance analysis table” ou “tabela de análise de resistência ao atraso”) aos inovadores. Trata-se de analisar tudo o que pode se opor à uma nova ideia antes de torná-la pública. Hoje, tudo o que envolve impactos ecológicos precisa passar por isso. O fast fashion foi uma virada inovadora no mercado de roupas, mas um desastre em termos ecológicos e de respeito aos trabalhadores, e tem sido cada vez mais desafiada, com os consumidores voltando a pensar em roupas mais duráveis. Espero que um dos efeitos benéficos dessa crise [do Covid-19] seja que possamos reescrever o contrato social. Afinal, é preciso reconhecer que um sistema que produz um nível tão massivo de desigualdade de renda e tão pouca divisão da prosperidade é fundamentalmente frágil.
  • G |A pandemia de Covid-19 traz um grande “ponto de inflexão”, como você define a capacidade de visualizar o momento ideal para a mudança?
    RM |
     
    Com toda certeza! Ao contrário do que muita gente pensa, limitações de recursos são muito valiosas para a inovação – quando há muitos recursos disponíveis, as pessoas geralmente não “gastam” a imaginação o suficiente. Com os processos e sistemas agora sendo massivamente deslocados, inutilizados, esse é um momento sensacional para inovar. De todas as formas. Creio que veremos um número massivo de inovações nesse sentido: as pessoas terão de descobrir novas formas de fazer as coisas em diversas áreas. É inspirador ver a explosão de cooperação e esforço na inovação na indústria de serviços de saúde e medicamentos atualmente.
  • G |Como esses “pontos de inflexão” podem ser pensados na nossa rotina?
    RM |
     
    Nossas vidas não são trajetórias lineares de A a B. Elas mudam o tempo todo, sobretudo diante do inesperado. Por isso, recomendo que você aplique um “design thinking” na sua vida. Ou seja: pensar quais podem ser os resultados de uma mudança, as limitações sob as quais vai operar. O próximo passo é experimentar, mas aos poucos. Eu cito em meu livro uma  advogada que detestava o que fazia, então pensou em caminhos que a fariam feliz, como ser confeiteira. Mas antes de jogar a antiga carreira pelos ares, ela fez estágio numa confeitaria. E viu que detestava aquilo também! Imagina se tivesse largado tudo para ser confeiteira? Antes de investir tudo em uma grande mudança, experimente coisas novas, faça um curso, um estágio. Entre nesse universo de forma gradual, sem se comprometer totalmente.
  • G |É possível inovar com simplicidade?
    RM |
     
    Sim e creio que esse tipo de inovação é no geral socialmente mais benéfico. Eu penso nos hospitais Aravind Eye, que aplicaram princípios industriais de produção em massa à cirurgia de catarata. Num contexto ocidental, você tem o preparo do centro cirúrgico, os testes pré-operatórios e vários profissionais em torno de um só paciente. O tratamento é bom, mas é caro. Na Índia, os pacientes jazem numa fila de macas e cada especialista passa por cada um fazendo seu trabalho. Quando o profissional chega ao fim da fila, o primeiro paciente já está bem para andar até a sala de espera, e um novo assume seu lugar. Eles conseguem fazer milhares de cirurgias pela fração do custo. O que eu acho inspirador é que a qualidade é tão boa quanto. Inovações desse tipo são imensamente importantes. Talvez as mais importantes.