segunda-feira, 11 de maio de 2020

“Inovar por inovar já não basta”, Revista Gama

Era uma vez uma empresa que revolucionou a telefonia com um celular inteligente, conquistando executivos e políticos com um teclado genial, troca de mensagens e segurança de ponta. Não, não foi a Apple, mas a Blackberry. A firma inovou antes de todos e dominou o mercado por anos, mas quase faliu – o porquê é uma aula sobre inovação: cegada pelo sucesso, ignorou os sinais de que o mercado queria algo novo, que concentrasse música, mapas e navegação ao toque do dedo. “Ela perdeu o ponto de inflexão”, diz Rita McGrath, professora da Universidade Columbia e uma das maiores especialistas em inovação do mundo. Em entrevista a Gama, ela explica por que o termo virou fetiche na era millennial, destrincha a bolha das startups e mostra que inovar nem sempre é sinônimo de algo bom. E diz ainda que a atual pandemia de coronavírus é “um momento sensacional” para inovar.
  • G |Todo mundo fala em inovação. O termo está em toda parte. Mas o que é inovar, afinal?
    Rita McGrath |
     
    Inovar é fazer algo novo que cria valor, mas geralmente se trata de uma combinação nova de coisas que existem. As pessoas confundem inovação com invenção, que é criar algo do zero.
  • G |Por que inovação virou uma palavra mágica no mundo dos negócios e da tecnologia, quase um fetiche?
    RM |
     
    Porque inovar virou questão de sobrevivência. O caso da Blackberry é emblemático. Eles dominaram o mercado por muito tempo, mas perderam o ponto de inflexão [o momento em que o mercado passa a indicar o que será o novo padrão], no caso em relação aos verdadeiros smartphones que as pessoas queriam ter no bolso. Cegados pelo sucesso, não perceberam os sinais fracos de que o mercado estava mudando. As firmas não deixavam os executivos terem a primeira versão do Iphone porque não era seguro, eles tinham Blackberry. Então a empresa achou que seria mais uma escolha do consumidor comum. Mas era o que todos queriam.
  • G |Então é preciso inovar o tempo todo?
    RM |
     
    Exato. A estabilidade que as empresas tinham já não vale em vários setores da economia. Cinquenta anos atrás, acreditávamos que elas durariam muito, assim como suas vantagens competitivas. Mas o oposto tem ocorrido: as barreiras de entrada no mercado diminuíram. Antes era preciso um estúdio inteiro e uma estrutura global de distribuição para gravar um vídeo. Hoje, duas crianças numa garagem mandam um vídeo para um bilhão de pessoas com um smartphone. No passado, um empresário passava a carreira toda num só negócio. Hoje, as empresas precisam dominar, num curto período, os três ciclos da cadeia da vantagem competitiva: lançar algo novo; explorar o modelo de negócio; e enfrentar a erosão, quando se torna obsoleta e precisa inovar. E o tempo que leva para uma nova tecnologia ser adotada se comprimiu. A America Online precisou quase cinco anos para penetrar 20 milhões de lares (nos anos 90); o IOS da Apple levou pouco mais de dois anos para alcançar 60 milhões.
  • G |O segundo termo mágico é “millennials”. Qual o papel deles em reinventar a inovação?
    RM |
     
    Inovar é o lugar deles na história, é a lente geracional que aplicam a tudo o que fazem. Se você pegar inovação, ou disrupção nas buscas de hoje e fizer uma troca por “globalização” nas buscas de 15 anos atrás, ou ainda por “empreendedorismo” 15 anos antes, verá a mesma coisa. É a palavra que define a época. No caso da inovação, precisamos atentar para o impacto dos negócios ditos inovadores. Vivemos um agudo viés pró-inovação, como se ela sempre fosse positiva. E isso objetivamente não é verdade.
  • G |Seria o caso de nos perguntar para quê e para quem serve a inovação?
    RM |
     
    Sim, há inovações que levam a coisas terríveis. A engenharia financeira e a “financeirização” da economia dos últimos 30 anos não tem sido benéfica para a maioria. Alguém foi inovador, criou processos, mas não foi algo bom. Veja o que acontece com os restaurantes: uma proporção imensa das refeições produzidas já não é servida neles. Mas ninguém abre um restaurante para descobrir qual o melhor frango assado para pôr numa caixa de papelão e enviar pelo entregador numa bicicleta e sim para oferecer hospitalidade. É um exemplo de inovação que, sim, oferece conveniência, mas o que mais? Não é necessariamente positivo para os restaurantes, pois reduz a margem de lucro. O que a sociedade ganha com isso?
  • G |Inovação e startups viraram sinônimos, mas com a sucessão de empresas que receberam bilhões de investimento e não dão lucro, já se fala em bolha. O que deu errado?
    RM |
     
    A maioria desses “Uber disso, Uber daquilo” é uma grande ilusão. Não sabemos se há um modelo de negócios rentável nesse tipo de serviço. A Uber ainda perde dinheiro e subsidia motoristas e passageiros. As empresas de delivery de comida, idem: são boas ideias, mas a aritmética para saber se são viáveis não foi feita. Ao contrário de uma empresa convencional, que não é bancada por investimentos de risco, essas startups não são forçadas a mostrar resultados de cara. Elas podem perder dinheiro por muito tempo e seguir tentando. A WeWork é um exemplo: um punhado de gente conta uma boa história e os investidores inundam a empresa com milhões de dólares, ignorando o básico do empreendedorismo. Chegamos a um nível tal de desigualdade que o dinheiro concentrado no topo da cadeia não tem para onde ir. Então cria-se uma bolha.
  • G |A concentração de renda tem alimentado as startups?
    RM |
     
    Sim. Há tanto dinheiro concentrado nas mãos de tão poucos que eles já não conseguem gastá-lo. Há um limite para o número de iates que se pode comprar. Então o dinheiro acaba nos “pools de investimento”. Por isso há bolhas em toda parte. Muito do interesse em investir nas startups se dá porque essa gente não tem mais o que fazer com seu dinheiro. Num ambiente com juro perto de zero (nos Estados Unidos), para ter retorno, é preciso arriscar. Por que não investir numa “venture” e torcer para que ser o novo Facebook? Mas o modelo é falho. É fato que startups lideradas por mulheres ou minorias recebem investimentos absurdamente menores que as geridas pelos “suspeitos usuais” [homens brancos heterossexuais]. Esse dinheiro nem sempre está indo para negócios realmente inovadores.
  • G |Então é preciso repensar o que é inovação?
    RM |
     
    Creio que sim. A mitologia de que é preciso levantar bilhões para ser uma startup não faz sentido. O mundo está cheio de empresas que movimentam só US$ 50 milhões por ano e pagam bem, oferecem serviços úteis, têm consumidores satisfeitos. Esse mito em torno da inovação deve ser repensado. Essas mudanças ocorrem a cada dez, vinte anos, e é algo que está começando a ocorrer agora de novo. Há até pouco tempo, você tinha uma ideia, achava um mercado lucrativo para seu produto e decidia a escala. As startups encurtaram o caminho, indo da ideia nova direto para o scaling, sem pensar como fariam dinheiro com a ideia. Porque não eram demandadas. Agora, veio a reação: demissões, investidores que param de colocar dinheiro nas rodadas de capitalização e até a adesão dos funcionários a sindicatos – a Kickstarter [maior site de financiamento coletivo] agora tem sindicato! Isso é algo inédito!
  • G |Estamos começando a relacionar inovação e responsabilidade?
    RM |
     
    Creio que estamos vivendo um grande ponto de inflexão, que é o retorno a formas mais humanas de fazer negócios. Muito dessa “gig economy”, desses “Uber disso e daquilo” só funciona porque não tratam as pessoas como funcionários. Garantias e proteções básicas não fazem parte do modelo de negócio; sem arcar com nenhum custo, conseguem oferecer uma entrega barata de comida ou uma corrida barata de táxi. Mas a sociedade vai dar a palavra final. Isso já ocorreu antes. Se pensarmos na primeira Era de Ouro da industrialização, no fim do século XIX, fortunas foram criadas, havia os “barões ladrões”, até que a sociedade disse: basta! Então foram criadas proteções sociais, sindicatos… porque se foi longe demais. O capitalismo precisa ser livre para inovar, mas dentro de uma estrutura definida.
  • G |Inovação e regulação estatal não são inimigas, afinal?
    RM |
     
    Elas não precisam ser! A regulação é o que impede que alguém torre recursos que todos deveriam partilhar. As instituições e os incentivos determinam que tipo de inovação uma sociedade terá. Um exemplo é como lidamos com preocupações ambientais – enquanto não havia formas institucionais de lidar com a poluição, as empresas que impactam o ambiente não pensaram em alternativas. Vide as companhias de gás e óleo escandinavas. Forçadas pela guinada rumo à energia sustentável, elas investiram para baratear as fontes de energia sustentável, o que funcionou. Os custos estão em baixa acelerada, o que pode causar uma mudança global rumo a formas mais ecologicamente corretas de produzir e consumir energia.
  • G |Sustentabilidade será a palavrinha mágica dos negócios, como inovação é hoje?
    RM |
     
    Eu não me surpreenderia! Mas é fato. Empresas grandes como a Unilever tratam disso de forma séria, outras fazem “greenwashing”. Mas sustentabilidade virou parte fundamental da conversa. Nenhum CEO hoje pode defender uma agressão ao meio ambiente. Mesmo que polua, ele dirá que são as regulações que estão impedindo-o de criar empregos. Hoje, criar produtos irresponsáveis com impacto social negativo desperta reações intensas.
  • G |Quem vai ditar essa necessidade de uma inovação mais consciente?
    RM |
     
    Temos visto organizações como o Greenpeace realizar protestos contra empresas que poluem, e eles têm sido efetivos. Então quem inova hoje precisa pensar sobre quem pode ficar incomodado com o sucesso de um novo produto ou serviço. Eu recomendo sempre uma ferramenta que chamo de DRAT (“Delay resistance analysis table” ou “tabela de análise de resistência ao atraso”) aos inovadores. Trata-se de analisar tudo o que pode se opor à uma nova ideia antes de torná-la pública. Hoje, tudo o que envolve impactos ecológicos precisa passar por isso. O fast fashion foi uma virada inovadora no mercado de roupas, mas um desastre em termos ecológicos e de respeito aos trabalhadores, e tem sido cada vez mais desafiada, com os consumidores voltando a pensar em roupas mais duráveis. Espero que um dos efeitos benéficos dessa crise [do Covid-19] seja que possamos reescrever o contrato social. Afinal, é preciso reconhecer que um sistema que produz um nível tão massivo de desigualdade de renda e tão pouca divisão da prosperidade é fundamentalmente frágil.
  • G |A pandemia de Covid-19 traz um grande “ponto de inflexão”, como você define a capacidade de visualizar o momento ideal para a mudança?
    RM |
     
    Com toda certeza! Ao contrário do que muita gente pensa, limitações de recursos são muito valiosas para a inovação – quando há muitos recursos disponíveis, as pessoas geralmente não “gastam” a imaginação o suficiente. Com os processos e sistemas agora sendo massivamente deslocados, inutilizados, esse é um momento sensacional para inovar. De todas as formas. Creio que veremos um número massivo de inovações nesse sentido: as pessoas terão de descobrir novas formas de fazer as coisas em diversas áreas. É inspirador ver a explosão de cooperação e esforço na inovação na indústria de serviços de saúde e medicamentos atualmente.
  • G |Como esses “pontos de inflexão” podem ser pensados na nossa rotina?
    RM |
     
    Nossas vidas não são trajetórias lineares de A a B. Elas mudam o tempo todo, sobretudo diante do inesperado. Por isso, recomendo que você aplique um “design thinking” na sua vida. Ou seja: pensar quais podem ser os resultados de uma mudança, as limitações sob as quais vai operar. O próximo passo é experimentar, mas aos poucos. Eu cito em meu livro uma  advogada que detestava o que fazia, então pensou em caminhos que a fariam feliz, como ser confeiteira. Mas antes de jogar a antiga carreira pelos ares, ela fez estágio numa confeitaria. E viu que detestava aquilo também! Imagina se tivesse largado tudo para ser confeiteira? Antes de investir tudo em uma grande mudança, experimente coisas novas, faça um curso, um estágio. Entre nesse universo de forma gradual, sem se comprometer totalmente.
  • G |É possível inovar com simplicidade?
    RM |
     
    Sim e creio que esse tipo de inovação é no geral socialmente mais benéfico. Eu penso nos hospitais Aravind Eye, que aplicaram princípios industriais de produção em massa à cirurgia de catarata. Num contexto ocidental, você tem o preparo do centro cirúrgico, os testes pré-operatórios e vários profissionais em torno de um só paciente. O tratamento é bom, mas é caro. Na Índia, os pacientes jazem numa fila de macas e cada especialista passa por cada um fazendo seu trabalho. Quando o profissional chega ao fim da fila, o primeiro paciente já está bem para andar até a sala de espera, e um novo assume seu lugar. Eles conseguem fazer milhares de cirurgias pela fração do custo. O que eu acho inspirador é que a qualidade é tão boa quanto. Inovações desse tipo são imensamente importantes. Talvez as mais importantes.

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