quarta-feira, 4 de março de 2020

Helio Beltrão Contra o fanatismo, FSP

Em sinal trocado, o fanático bolsonarista não difere de um revolucionário guevarista

A eleição de Jair Bolsonaro como uma resposta brasileira ao desastre que foram os sucessivos governos do PT estimulou um tipo de eleitor nefasto: o fanático. É aquele que segue cegamente seu salvador da pátria e que trata seus discursos e tuítes, bem como os de seus ungidos, como grito de guerra "Deus Vult!" contra os inimigos. 
É um espelho de como se comportam os fanáticos de esquerda idolatrando seus políticos de estimação, os "Lula é inocente", por exemplo.
Não quero dizer que todos os adeptos de Bolsonaro sejam fanáticos. Nem mesmo são a maioria. Uma grande parcela da população brasileira entende a importância de termos afastado a esquerda do poder em 2018 e apoia o presente governo com base nos valores representados na campanha e pelas políticas públicas implementadas pelos ministérios.
Mas neste artigo discorro sobre o perigo do fanatismo em geral.
Presa fácil de populistas, o fanático engole teorias da conspiração e desconsidera o bom senso e suas convicções de outrora. Comporta-se como guerreiro disciplinado de uma guerra em que tudo é permitido. Afinal, "é guerra contra os inimigos do povo", justifica, povo este cuja vontade estaria racionalmente materializada na figura do presidente.
Sua atitude não difere substancialmente da atitude do cristão perante a Bíblia. Mas o que na religião é bom na política não funciona. O fanático devoto da Igreja de Messias Bolsonaro é um soldado em uma guerra santa para limpar o Brasil de impurezas: a esquerda, os políticos tradicionais, o Congresso, o Supremo e os críticos do líder. Em sinal trocado, não difere substancialmente da atitude de um revolucionário guevarista. 
Nesta semana, na rede social na qual a deputada Joice Hasselmann mostrava os primeiros passos após sair da UTI, havia em meio a desejos de melhoras um bom número de fanáticos de Jair Bolsonaro xingando-a, brigando e criticando. A "Bolsonaro de Saias", antes idolatrada por eles, foi proscrita após ter apoiado a ala bivarista no PSL.
As agressões absurdas e inaceitáveis feitas à jornalista Patrícia Campos de Mello foram amplamente disseminadas pelos fanáticos. Tudo é possível, alegam, uma vez que Patrícia produziu em 2018 uma reportagem com viés. Um erro não justifica a barbárie, mas infelizmente o fanático está em guerra.
Um conhecido meu que se diz liberal (mas não é) denunciou na semana passada dois "golpes" em curso para derrubar Jair Bolsonaro. O primeiro seria do Congresso, que aplicou técnicas de xadrez 4D ao impor as emendas impositivas como um mecanismo para forçar Paulo Guedes a descumprir as regras fiscais ao fim do ano. 
O segundo seria dado pelo fato de Rodrigo Maia estar em campanha internacional para implantar o parlamentarismo. Meu conhecido está animado para ir às ruas no dia 15. Quer emparedar o Congresso e o STF.
Parte das forças que elegeram Bolsonaro prefere distanciar-se de atitudes antidemocráticas e busca alternativas não esquerda, como sugeriu o deputado Kim Kataguiri, um dos líderes da derrocada do PT, em artigo na grande imprensa.
Precisamos combater essa ideia de que existe um herói da política, capaz de resolver sozinho os problemas do país. No momento em que, por mérito do próprio presidente, estamos abandonando um regime no qual o Executivo e o Legislativo agiam como um único organismo em simbiose, não podemos correr o risco de o Executivo arregimentar o apoio da multidão impulsiva para afastar os controles parlamentar e judiciário, concentrando o poder. 
Nós, liberais, seguiremos focados na luta por menos estado e mais poder ao cidadão e à sua comunidade local como caminho da prosperidade.
Helio Beltrão
Engenheiro com especialização em finanças e MBA na universidade Columbia, é presidente do instituto Mises Brasil.

Conrado Hübner Mendes,As palavras e os coisos FSP

Trazer clareza moral para desmascarar a hipocrisia política é um exercício necessário que não pode ser vencido pelo cansaço

A dominação autoritária tem um repertório técnico variado. Um dos seus recursos convencionais é a programação linguística, que estimula reflexos condicionados na argumentação de seus seguidores.
A arapuca é conhecida. Ela sequestra retoricamente um valor para implementar, na prática, o seu contrário. George Orwell, no romance “1984”, exemplificou esse fenômeno da “novilíngua” (a língua imposta pelo regime): “guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força”.
O Brasil tem sido um fascinante laboratório dessa prática.
O presidente Jair Bolsonaro e o ministro Sergio Moro - Carolina Antunes-12.dez.19/PR
Em nome da segurança, violência policial e máximo encarceramento, uma fórmula explosiva que dá impulso logístico ao crime organizado. O PCC e as milícias continuam a agradecer por esse apoio.
Em nome da proteção da infância, omissão estatal na educação sexual, facilitador de abusos domésticos. Em nome da família, a repressão a estruturas familiares diversas. Em nome do conservadorismo, a explosão de padrões civilizatórios proclamados pela Constituição.
Em nome do combate à corrupção, desestruturação de mecanismos de controle e de transparência no Poder Executivo. E, mais irônico, em nome do combate à ideologia, a técnica de Weintraub, Ernesto, Damares, Salles e Heleno.
Nesse jogo, também se deve atribuir ao inimigo, furtivamente, uma característica que ele não tem ou posição que ele não defende. A “bandidolatria”, por exemplo, serve para calar críticas à fórmula “mais arma, mais polícia descontrolada, mais prisão”. Os críticos são “anti-Brasil”, “anti-patriotas”, “essa raça”. Têm falha moral e merecem exclusão da unidade mística chamada “povo”.
Para completar, há que se empurrar goela abaixo um dicionário de pílulas de efeito percussivo: “mimimi, mamata, extrema imprensa” etc. E um pequeno leque de miniargumentos: “a eleição acabou, o povo já decidiu, aceita que dói menos”. Dão essa sensação de pertencimento tribal que as redes sociais revigoraram. Assim se completa a robotização algorítmica que ainda não conseguimos desprogramar.
Quando palavras perdem capacidade de denotar um sentido independente do que um líder carismático lhe atribui e hipnotizam multidões, a democracia fraqueja. Nessa hora, trazer clareza moral para desmascarar a hipocrisia política é um exercício necessário, que não pode ser vencido pelo cansaço.
O truque se manifesta, claro, no mundo do direito. Veja Sergio Moro. Concedeu-se a ele, gratuitamente, o dom de definir o sentido da lei conforme sua vontade (e de depois trocar, sem aviso, o sentido que ele mesmo usou).
Nunca hesitou em afirmar, à luz de seus desvios judiciais, que fez “de acordo com a lei”. Prendeu e soltou, vazou e calou, orientou acusação e acusou por conta própria. Não foi pela qualidade do que falou ou pela fidelidade ao texto da lei e da jurisprudência que se livrou de qualquer acusação, mas apenas por sua credencial de herói.
Como ministro, dedica parte de seu tempo a proteger a imagem do chefe com as ferramentas que tem sob seu comando. Assim tenta redefinir o sentido de “calúnia” e “segurança nacional” (e o próprio papel do ministro da Justiça).
Michel Foucault, autor de “As Palavras e as Coisas”, iluminou o fenômeno. Tento imaginar o que Foucault diria se a fortuna lhe permitisse conhecer Moro e Bolsonaro.
Conrado Hübner Mendes
Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.