terça-feira, 8 de outubro de 2019

O Coringa é a extrema direita, Joel Pinheiro da Fonseca, FSP

São vários os que surfam a onda da revolta popular para atingir objetivos pessoais

A polícia americana reforçou a segurança para a pré-estreia de “Coringa” em cidades como Nova York e Los Angeles. O filme tem sido chamado de “irresponsável” por críticos, por potencialmente estimular atiradores nas salas de cinema.
Suspeito que não veremos tiroteios nas sessões do filme. Mas o risco tem sido tão comentado que se tornou parte do fenômeno. Assim, o medo de que junto conosco na sessão haja um atirador psicopata —o que nos leva a olhar ressabiados para qualquer movimento ou barulho estranho na sala— se tornou parte da experiência de assistir “Coringa”.
É um filme pretensamente tão perigoso que nossa própria vida corre perigo; que dirá nossa alma. Não consigo pensar num marketing mais eficaz que esse.
“Coringa” passa essa sensação de perigo porque mostra, sem juízo de valor —na verdade, com alguma dose de celebração— a frustração e o ressentimento que levam tanto aos atos de violência sem propósito dos “mass shooters” (fenômeno que hoje, infelizmente, é brasileiro também) quanto, e aqui reside seu maior interesse, à revolta “antissistema” que tem fervido ao redor do mundo.
Occupy e Tea Party, Primavera Árabe, junho de 2013, protestos de Hong Kong; há um sentimento corrosivo sendo gestado, pronto a destruir a ordem estabelecida. É com ele que “Coringa” dialoga.
A história: Arthur Fleck é um palhaço fracassado de meia-idade, que mora com a mãe e tem problemas mentais. Cansado de ser literalmente pisoteado pela sociedade, resolve ser ele próprio o agente da violência a seu redor. Desiste de trazer alegria à sociedade que tanto o machucou, e passa a ser ele próprio o agente da dor à sua volta; e assim encontra, finalmente, a felicidade.
Sua vingança sádica contra o mundo que o rodeia é o gatilho para uma revolta social maior contra o sistema, que leva a protestos nas ruas, saques de lojas e destruição da propriedade pública.
A revolta social que o Coringa causa e na qual surfa tem o sentimento e a estética dos movimentos de extrema direita das democracias ocidentais contemporâneas. Não é à toa que o símbolo do palhaço foi incorporado —muito antes deste filme— por grupos de extrema direita da internet.
Ademais, as características do “clown” lembram a teatralidade, o exagero, o “mau gosto” proposital, as palavras destrambelhadas e as emoções à flor da pele que marcam tantos histriões da direita: de Trump e Bolsonaro, Luciano Hang e Matteo Salvini. São vários Coringas surfando na onda da revolta popular para atingir seus próprios objetivos pessoais de poder.
O filme, contudo, não chancela a mentalidade do Coringa. O ressentimento dele tem causas imaginárias, falsas. Os ricos e poderosos das finanças e da mídia —“o sistema”— que ele quer destruir não são tão maus assim. O problema real não é tanto a exploração de classe quanto a negligência em prestar serviços sociais adequados. Gotham City precisa de reforma, não revolução.
A convulsão nas ruas é compreensível, mas só vai piorar as mazelas que a produziram. O problema é que a política decorre não da realidade, e sim da percepção da realidade. E enquanto as legiões de palhaços continuarem desamparadas, e portanto presas fáceis para Coringas variados, continuaremos a sofrer com seus tiros e seus votos. O filme, mais do que trazer algum perigo novo, só pinta em cores fortes o que fermenta nos corações.
Joel Pinheiro da Fonseca
Economista, mestre em filosofia pela USP.

Avante, rumo à estupidez total!, FSP

Juiz que critica Lei do Abuso ou faz política, ou vinha cometendo abuso, ou não honra a toga

Começo esse texto parafraseando o juiz de Goiás que colocou na rua alguns presos, entre eles um suspeito de homicídio qualificado, com base na Lei de Abuso de Autoridade que nem em vigor ainda está.
"Avante Brasil, rumo à impunidade total", escreveu em uma de suas sentenças Inácio Pereira de Siqueira, de Jataí, acrescentando à sua anunciação do Apocalipse que nos resta apenas "assistir ao deprimente quadro pintado pelo Congresso Nacional, ao prestar, como de costume, um desserviço ao povo brasileiro".
A função de um magistrado é decidir na estrita observância da lei, com independência e o máximo senso de justiça. Juiz que solta ou prende com suposto medo de uma lei futura, ou mesmo após ela entrar em vigor, ou está fazendo proselitismo político de quinta, ou vinha, de fato, cometendo abusos, ou não honra as calças, quer dizer, a toga que veste.
Sergio Moro, em 2016, em sessão de debate sobre o projeto de lei que trata do abuso de autoridade - Alan Marques - 1º.dez.2016/Folhapress
A nova lei estabelece pena de até quatro anos para quem decrete ou deixe de relaxar prisões "manifestamente ilegais". Que se insurja todo o Estado democrático de Direito se, lá na frente, ladinos usarem esse texto para tentar livrar criminosos. O que temos até agora, porém, é que atos ilegais serão considerados ilegais.
Supõe-se, assim, que os indignadões estejam a fazer ação política. E sob a vênia do ex-juiz Sergio Moro, para quem a nova lei pode inibir juízes de cumprir o seu dever legal. Togado que se sinta, de fato, inibido de cumprir o seu dever por causa disso deveria fazer outra coisa da vida. 
Felizmente, há decisões como a de Shamyl Cipriano, de Porto Velho, ao negar pedido com base na nova regra. O texto poderia embasar alguma lei de abuso da malandragem. 
"Advogado que profere ameaça contra um juiz para o caso de indeferir seu pedido está promovendo um ataque contra o Estado democrático de Direito na medida em que criminaliza a diferença de pensamentos e quer um Poder Judiciário atuando por receio de consequências pessoais. A vida adulta exige de todos nós maturidade e equilíbrio suficientes para respeitar a discordância."
Ranier Bragon
Repórter especial em Brasília, está na Folha desde 1998. Foi correspondente em Belo Horizonte e São Luís e editor-adjunto de Poder.

Matem o mensageiro, FSP

Ninguém ama o mensageiro que traz más notícias”. A frase é de Sófocles. Não conheço nenhuma lista de universais humanos que inclua a disposição de tomar o portador de más notícias como causa dos infortúnios, mas essa propensão é tão disseminada que poderia figurar entre as tendências indeléveis de nossa espécie. Além de Sófocles, escreveram sobre isso Plutarco, Shakespeare e Freud —para ficar só nos clássicos.
Em tempos modernos, quem melhor desempenha o papel de mensageiro é a mídia. É frequentemente ela que dá publicidade às notícias que podem causar dano a políticos. É sempre tensa, portanto, a relação entre governantes e a imprensa independente.
Se ataques de Bolsonaro à Folha são compreensíveis no plano psicológico, não têm a menor sustentação quando se adota a perspectiva da lógica. Reportagem de Camila Mattoso e Ranier Bragon, que motivou crítica presidencial, mostra que a PF relata a existência de documentos que sugerem que verbas do esquema de candidatas laranja tenham sido usadas para abastecer as campanhas de Bolsonaro e do ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio.
Em momento algum o jornal atribuiu a Bolsonaro a autoria de nenhum ilícito eleitoral e nem sugeriu que ele tivesse conhecimento de irregularidades, imputações que poderiam justificar uma negativa veemente por parte do presidente. Assim, a menos que se imagine que Bolsonaro tenha o dom da onisciência e saiba tudo o que se passou em sua campanha, ele próprio não pode ter certeza de que não ocorreram impropriedades.
A posição coerente, se ele de fato nada deve, seria pedir investigações rigorosas, que o isentassem de participação em qualquer tipo de fraude (o prazo para uma ação de cassação de mandato em tese já se esgotou e não deveria assombrá-lo).
Bolsonaro, porém, prefere culpar o mensageiro, como o fazem dirigentes desde tempos imemoriais.
 


Hélio Schwartsman
Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".