segunda-feira, 13 de agosto de 2018

O básico do ensino, editorial FSP

aís dá correta prioridade à educação, mas despesa pública é mal distribuída e ineficiente

A produtividade da economia nacional não avança por causa da baixa qualidade da educação pública e da carência de inovação nas empresas. É notório o mau desempenho do ensino público em testes internacionais. O Brasil amarga a 69ª colocação entre 127 nações listadas no Índice Global de Inovação.
Sob tais ângulos, soa alarmante a notícia de que a Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) sofrerá corteconsiderável em sua dotação para 2019, de quase R$ 4 bilhões neste ano para algo como R$ 3,3 bilhões.
O Conselho Superior da Capes, um órgão do MEC, propagou que a partir de agosto de 2019 estariam ameaçadas mais de 200 mil bolsas para educadores do ensino básico e para pesquisadores universitários.
Aula na Etesp, a primeira escola pública no ranking do Enem em São Paulo
Aula na Etesp, a primeira escola pública no ranking do Enem em São Paulo - Marcelo Justo / Folhapress
Ninguém duvida de que seria desastrosa, para muitos grupos de pesquisa, a suspensão dos pagamentos. Tampouco seria de interesse público que anos de investimento oficial anterior se perdessem com a interrupção de estudos.
O caso ilustra bem como o debate sobre educação e sobre ciência, tecnologia e inovação tende a ser focalizado por um prisma único —verbas estatais— e, com isso, pouco avança. Embora obviamente danosa, a grave restrição orçamentária que o país enfrenta impõe agora que se aprofunde, igualmente, a discussão quanto a sua eficiência.
Começando pelo ensino: o gasto público no Brasil fica entre 5% e 6% do Produto Interno Bruto, sem destoar da média dos mais desenvolvidos. E tem evoluído no sentido de dotar melhor a educação básica (níveis fundamental e médio) na comparação com o nível superior, antes muito mais privilegiado —uma antiga distorção.
A transição demográfica contribuirá para encorpar o desembolso por aluno, uma vez que, pelo IBGE, a população até 19 anos vai cair dos atuais 60,9 milhões para 57,2 milhões em 2030. Ainda assim, o dispêndio per capita demorará a alcançar os de sociedades mais ricas, ainda mais com o ritmo claudicante da economia brasileira.
Deve-se considerar, contudo, que nações com gastos inferiores ou similares por estudante —como México, Colômbia, Turquia, Chile e Argentina— obtêm notas superiores às de brasileiros no exame padronizado global Pisa.
A educação pública só deixará de ser medíocre com ampla reforma gerencial e pedagógica. Ela começa com a implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), uma carta de compromisso social com o que cada aluno tem direito de aprender e o professor tem dever de ensinar.
Como indica a experiência bem-sucedida da rede estadual do Ceará, o diretor de cada estabelecimento precisa ter autonomia para fazer obras e alocar recursos, inclusive humanos. A primeira condição para isso é que seja escolhido por mérito, não por indicação política, e premiado por desempenho.
Sem reduzir o alcance da estabilidade dos docentes e funcionários, o dirigente não terá meios de recompensar os melhores e tirar da linha de frente os piores.
Organizações sociais podem e devem ser mobilizadas, até mesmo para gerir escolas inteiras, como se faz em vários municípios para lograr a imprescindível multiplicação de creches e pré-escolas.
No plano da educação de nível superior, há que abandonar o paradigma de vínculo necessário com pesquisa científica e de expansão indiscriminada do sistema.
Em boa hora se pôs cobro à farra perdulária do financiamento estudantil e do programa Ciência sem Fronteiras. Agora cumpre focalizar os parcos recursos em centros de excelência, tanto em instituições de ensino tecnológico quanto em universidades de pesquisa.
Quanto aos gastos com pesquisa e desenvolvimento, a comunidade científica repete o mantra de que é necessário aumentá-los como proporção do PIB. Eles oscilam na marca de 1,3%, contra 2% a 3% em países desenvolvidos.

Atenta-se pouco para o fato de que as despesas governamentais no Brasil, de 0,6% do PIB, não discrepam do que se desembolsa nos EUA e na União Europeia. A divergência ocorre nos investimentos do setor empresarial, que lá somam o dobro ou o triplo.

Na ausência de condições realistas para ampliar o dispêndio público, resta melhorar sua eficácia, tornando mais exigente a concessão de bolsas de pesquisa e aperfeiçoamento. O montante deve acompanhar a disponibilidade de recursos, não a demanda crescente.

O salto de inovação só será dado quando o setor privado passar a investir mais. Isso não acontecerá enquanto as empresas não forem submetidas à competição internacional, com maior abertura da economia, e não se desonerarem da bizantina estrutura tributária que lhes drena a competitividade.
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A mística feminina, FSP

As mulheres e o problema que não tem nome

Na semana passada, entrei numa livraria para comprar uma sacola de carregar livros e descobri os novos títulos da coleção Penguin Modern. Uma série de 50 fascículos de baixo custo, ideais para a leitura rápida de contos, ensaios ou trechos de obras escritas por grandes autores do século 20. Dentre eles, várias mulheres com distintas trajetórias de vida, como a feminista negra Audre Lorde, a memorialista de origem cubana Anaïs Nin, a crítica cultural norte-americana Susan ​Sontag, a nossa Clarice Lispector e a ativista Betty Friedan, autora de “A Mística Feminina”, um estudo sobre a situação das mulheres americanas durante a década de 1950, que analisa o impacto da depressão econômica de 1929 e da Segunda Guerra Mundial no ressurgimento do ideal da mulher enquanto mãe, esposa e dona de casa.
A feminista norte-americana Betty Friedan (1921-2006), pioneira do movimento e autora do best-seller "A Mística Feminina", escrito em 1963
A feminista norte-americana Betty Friedan (1921-2006), pioneira do movimento e autora do best-seller "A Mística Feminina", escrito em 1963 - AFP
 
O volume de Friedan me chamou atenção pelo título, “The Problem That Has No Name” (o problema que não tem nome), e pela agilidade com que introduz o leitor a dois importantes capítulos de “A Mística Feminina”, em que a autora analisa as consequências socioemocionais de mulheres que abandonaram a escola e o mercado de trabalho pela promessa de felicidade de uma vida simples e dedicada ao lar.
Segundo Friedan, a principal consequência deste processo de retorno à domesticidade seria a sensação de que a simples realização de tarefas caseiras não satisfaria a ambição da mulher moderna, cuja educação estaria em descompasso com as demandas da vida doméstica. A autora teria chegado a essa conclusão ao entrevistar uma série de mulheres de todos os níveis sociais, as quais se diziam abaladas por um mal sem nome, mas que se manifestava à medida que elas se encontravam presas aos papeis de mães ou esposas, sem oportunidades para desenvolver a si próprias.
A autonomia da mulher e os obstáculos para a sua consecução é tema de várias obras literárias dos séculos 18 e 19. “Clarissa” (1748), de Samuel Richardson, ou “Middlemarch” (1871-2), de George Eliot, retratam o problemático ideal de feminilidade da época, bem como o esforço de suas heroínas para romper com os preconceitos sociais que lhes impedem de serem reconhecidas como iguais junto aos homens. Porém, nenhum autor foi capaz de expressar com tamanha fidelidade a aflição típica da mulher moderna e a descoberta da sua própria autonomia como o norueguês Henrik Ibsen
Em “Casa de Bonecas” (1879), a personagem Nora é uma mulher infantilizada pelo pai e pelo marido que aos poucos ganha consciência de si e do seu despreparo para a vida: “Eu sou a sua esposa-boneca, assim como em casa fui o brinquedo de papai e as crianças são os meus brinquedos. (...) Preciso educar-me (...) Tenho que fazer isso sozinha para compreender a mim mesma (...)”.
Para Friedan, o texto de Ibsen representa de maneira simbólica a verdadeira mensagem do feminismo de que a luta das mulheres por igualdade frente aos homens não se baseia em misandria, mas na necessidade de se reconhecer a mulher enquanto um ser humano em sua jornada de autoconhecimento. Assim, Nora diz ao marido: “Creio que antes de mais nada sou um ser humano, assim como você... ou pelo menos preciso tornar-me um”.
Apesar dos nossos avanços sociais e do amplo espaço concedido ao feminismo na mídia, acredito que as palavras de Nora repercutem até hoje, mesmo entre mulheres que se dizem empoderadas. Afinal, não existe verdadeiro empoderamento sem a gradual conquista de autoconhecimento e este demanda um caminho que, paradoxalmente, precisamos trilhar sozinhas se quisermos ajudar umas as outras.
Juliana de Albuquerque
Escritora, doutoranda em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.