domingo, 5 de março de 2017

As prisões da Lava-Jato - SÉRGIO MORO, VEJA


REVISTA VEJA

As críticas às vezes severas contra as prisões preventivas da operação não encontram fundamento nem na quantidade nem na extensão — e talvez só existam porque, atrás das grades, há presos ilustres



A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA e um escudo tanto contra condenações injustas como contra punições prematuras. Contra condenações injustas, a presunção de inocência exige, para uma condenação criminal, prova categórica, acima de qualquer dúvida razoável. Segue-se o velho ditado de que é preferível ter vários culpados soltos a um único inocente condenado. Contra punições prematuras, significa que a prisão, pena moderna por excelência, deve seguir-se ao julgamento, e não precedê-lo. Na última perspectiva, o principio também significa que as prisões antes do julgamento, ainda que não definitivo, as chamadas prisões preventivas, são excepcionais e devem ser longamente justificadas. Tem havido uma série de críticas a supostos abusos na decretação de prisões preventivas na Operação Lava-Jato. Escrevi este artigo para esclarecer alguns aspectos delas.

Existem atualmente sete acusados presos preventivamente na Operação Lava-Jato sem que tenha havido julgamento por sentença na ação penal. O total das prisões preventivas decretadas e bem maior, 79, mas elas foram paulatinamente revogadas ou substituídas por sentenças condenatórias. Apesar das discussões em torno dessa substituição, são diferentes a situação do preso provisório não julgado e a do preso provisório já julgado e condenado. Setenta e nove prisões preventivas, em quase três anos, e um número significativo, mas outros casos de investigações rumorosas, como a Operação Mãos Limpas, na Itália, envolveram um número muito superior de prisões provisórias, cerca de 800 nos três primeiros anos, entre 1992 e 1994, somente em Milão. De forma similar, 79 prisões preventivas em quase três anos é um número muito menor que o de prisões preventivas decretadas em um ano em qualquer vara de inquéritos ou em varas de crime organizado em uma das grandes capitais brasileiras.

Não procede, portanto, a crítica genérica as prisões preventivas decretadas na Operação Lava-Jato, pelo menos considerando-se a quantidade delas.

Também não procede a crítica à longa duração das prisões. Há pessoas presas. e verdade, desde março de 2014, mas nesses casos já houve sentença condenatória e, em alguns deles, até mesmo o julgamento das apelações contra a sentença. Quanto aos presos provisórios ainda sem julgamento, as prisões têm no máximo alguns meses, o que não é algo extraordinário na prática judicial, e não raramente os julgamentos tardam pela própria atuação da defesa, por vezes interessada em atrasar o julgamento para alegar junto a ouvidos sensíveis a demora excessiva da prisão provisória. Outra critica recorrente é que se prende para obter confissões. Entretanto, a maioria dos acusados decidiu colaborar quando estava em liberdade, e há acusados presos que resolveram colaborar e acusados presos que não colaboraram. Os dados não autorizam conclusão quanto à correlação necessária entre prisão e colaboração.

A questão real — e é necessário ser franco sobre isso — não é a quantidade, a duração ou as colaborações decorrentes, mas a qualidade das prisões, mais propriamente a qualidade dos presos provisórios. O problema não são as 79 prisões ou os atualmente sete presos sem julgamento, mas sim que se trata de presos ilustres. Por exemplo, um dirigente de empreiteira, um ex-ministro da Fazenda, um ex-governador e um ex-presidente da Câmara dos Deputados. Mas, nesse caso, as criticas às prisões preventivas refletem, no fundo, o lamentável entendimento de que há pessoas acima da lei e de que ainda vivemos em uma sociedade de castas, distante de nós a igualdade republicana.

Mesmo considerando-se as 79 preventivas e o fato de elas envolverem presos ilustres, é necessário ter presente que a Operação Lava-Jato revelou, segundo casos já julgados, um esquema de corrupção sistêmica, no qual o pagamento de propinas em contratos públicos consistia na regra do jogo. A atividade delitiva durou anos e apresentou caráter repetido e serial, caracterizando, da parte dos envolvidos, natureza profissional. Para interromper o ciclo delitivo, a prisão preventiva foi decretada de modo a proteger a ordem pública, especificamente a sociedade, outros indivíduos e os cofres públicos da prática serial e reiterada desses crimes.

Ocasionalmente, foram invocados outros fundamentos, como a necessidade de prevenir fuga ou a dissipação do produto do crime, ou de proteger a investigação contra a destruição ou a manipulação de provas. Cabe, nessa linha, lembrar que todos os quatro diretores da Petrobras presos preventivamente — e já condenados — mantinham milhões de dólares em contas secretas no exterior, não sendo possível ignorar, nesse caso, o risco de que fugissem ou, pior, de que, foragidos no exterior, ficassem como produto do crime. Apesar das genéricas críticas a supostos excessos nas prisões preventivas, a análise circunstanciada revela que todas estavam bem justificadas.

Para ficar em um exemplo, foi decretada, em junho de 2015, a prisão preventiva de dirigentes de um grande grupo empresarial. Os fundamentos foram diversos, mas a garantia da ordem pública estava entre eles, Posteriormente, tais dirigentes foram condenados criminalmente, embora com recursos pendentes. As criticas contra essas prisões foram severas, tanto pelas partes como por interessados ou desinteressados, que apontaram o suposto exagero da medida diante da prisão de "pessoas conhecidas". Posteriormente, dirigentes desse grupo empresarial resolveram colaborar com a Justiça e admitiram o pagamento sistemático de propinas não só no Brasil, isso por anos, mas também em diversos países no exterior, bem como a participação em ajustes fraudulentos de licitações da Petrobras. Mais do que isso: confirmaram a existência no grupo empresarial de um setor próprio encarregado do pagamento de propina (Departamento de Operações Estruturadas) e que este permaneceu funcionando mesmo durante as investigações da Lava-Jato, tendo sido desmantelado apenas com a prisão preventiva dos dirigentes, em junho de 2015.

O caso é bem ilustrativo do equívoco das criticas, pois o tempo confirmou ainda mais o acerto da prisão. Foi a prisão preventiva, em junho de 2015, que causou o desmantelamento do departamento de propinas do grupo empresarial, interrompendo a continuidade da prática de sérios crimes de corrupção. Assim não fosse, o departamento da propina ainda estaria em plena atividade. O tempo confirmou que não houve nenhuma violação da presunção de inocência na prisão preventiva de pessoas culpadas e que persistiam na prática profissional de crimes.

Isso não significa que a prisão preventiva pode ser vulgarizada, mas ilustra que, em um quadro de corrupção sistêmica, com prática serial, reiterada e profissional de crimes sérios, é preciso que a Justiça, na forma do direito, aja com a firmeza necessária e que, presentes boas provas, imponha a prisão preventiva para interromper o ciclo delitivo, sem se importar com o poder político ou econômico dos envolvidos.

Se a firmeza que a dimensão dos crimes descobertos reclama não vier do Judiciário, que tem o dever de zelar pelo respeito às leis, não virá de nenhum outro lugar.

Enfim, críticas à atuação do Poder Judiciário são bem-vindas, pois nenhuma atividade pública deve ser imune a elas. Entretanto, as criticas genéricas ás prisões preventivas na Lava-Jato não aparentam ser consistentes com os motivos usualmente invocados pelos seus autores. Admita-se que é possível que, para parte minoritária dos críticos, os motivos reais sejam outros, como a aludida qualidade dos presos ou algum desejo inconfesso de retornar ao status quo de corrupção e impunidade, mas, com esses, nem sequer e viável debater, pois tais argumentos são incompatíveis com os majestosos princípios da liberdade, da igualdade e da moralidade pública consagrados pela Constituição brasileira.

*Sergio Moro é juiz federal da 13a Vara Criminal em Curitiba, responsável pela condução da Lava-Jato

Futuro da Cedae ainda é incerto, OESP



Mesmo depois do aval da Alerj para a venda da estatal, governo fluminense ainda não decidiu qual modelo de privatização deve seguir


Vinicius Neder / RIO
05 Março 2017 | 03h00
A autorização dos deputados estaduais do Rio para o governo fluminense vender a Cedae, a estatal de águas e esgoto, foi só o primeiro passo do plano de recuperação fiscal do Estado. A privatização, cujas ações serão oferecidas em garantia para novos empréstimos da União de até R$ 3,5 bilhões, é uma das contrapartidas exigidas. Nos bastidores, há uma disputa em torno do modelo de venda. 
Uma das primeiras medidas da diretoria do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Maria Silvia Bastos, empossada em julho, foi criar um programa de privatização em saneamento. No início, a Cedae seria incluída, mas houve divergências entre o BNDES e o governo fluminense.

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Uma pessoa próxima à administração da Cedae contou que, nas conversas iniciais, ainda durante a licença do governador Luiz Fernando Pezão (PMDB), quando o vice Francisco Dornelles (PP) estava em exercício, o BNDES sugeriu dois modelos. Em um deles, a área de concessão da Cedae seria dividida em quatro. No segundo modelo, a estatal seguiria com o tratamento de água, e somente a distribuição seria concedida ao setor privado. 
Após a aprovação da lei na Alerj, o deputado André Corrêa (DEM), que deixou a Secretaria estadual do Ambiente para voltar ao parlamento e ajudar o governo nas votações, declarou mais de uma vez que o Estado defenderia esse segundo modelo. A fonte próxima à Cedae lembrou, porém, que a distribuição é a atividade do setor de saneamento que tem as maiores margens de lucro.
Parceria. Setores do governo fluminense defendem um terceiro modelo, que estava em andamento em 2015, antes de a crise se agravar: uma parceria público-privada (PPP) para investimentos na coleta e tratamento de esgoto em 11 cidades da região metropolitana, a maioria na Baixada Fluminense. Nesse caso, a empresa privada trabalharia junto da Cedae. 
Segundo a assessoria de imprensa da Secretaria de Desenvolvimento Econômico Energia Indústria e Serviços, agora incorporada à Secretaria da Casa Civil, esse modelo de PPP para o saneamento da Baixada Fluminense está pronto, mas falta aprovação final no Conselho Gestor das PPPs do Estado. Com a privatização da Cedae, o processo está suspenso.
Pelo projeto de PPP já finalizado, a empresa privada que vencesse a licitação ficaria responsável pelas obras de infraestrutura para coleta e tratamento de esgoto. Todo o acréscimo de receita, para a Cedae, com os serviços nessas áreas seria direcionado para um fundo, que remuneraria a concessionária. A fonte próxima à Cedae ouvida pela reportagem lembrou que esse modelo tornaria a estatal mais lucrativa e valorizada no mercado.
A questão é que nem mesmo a participação do BNDES na definição do modelo de privatização da Cedae está garantida. Uma fonte que pediu anonimato disse que, na primeira versão do termo de compromisso do plano de recuperação, o governo federal tinha colocado que a operação deveria ser estruturada pelo banco de fomento, mas o Rio pediu para retirar essa exigência e foi atendido.
Modelos. Semana passada, o BNDES lançou seis editais de licitação para contratação de serviços de consultora para a estruturação de projetos de participação privada no saneamento para Amapá, Alagoas, Maranhão, Pará, Pernambuco e Sergipe, que fazem parte do grupo de 18 Estados que aderiram ao programa de privatização da instituição de fomento. Essas consultorias definirão qual modelo será adotado em cada caso – venda da companhia estadual, PPP ou concessão de parte dos serviços, por exemplo. 
A expectativa do superintendente da Área de Desestatização do BNDES, Rodolfo Torres, é que os modelos estejam prontos para lançar licitações no início de 2018. O executivo negou que esteja certo que o banco de fomento fará o mesmo com o caso da Cedae no Rio, pois as discussões, por enquanto, estão entre o Estado do Rio e o governo federal. 
“Estamos aqui à disposição para executar a demanda que nos for colocada, seja pelo Estado do Rio ou pelo governo federal”, declarou Torres, em conferência por telefone com jornalistas. 

Lições violentas, Karnal OESP


Qualquer quebra na ordem do mundo parece liberar a energia acumulada nos indivíduos
Leandro Karnal
05 Março 2017 | 02h00
Acho que nós, humanos, idealizamos nossa espécie. A violência é o eixo definidor das nossas relações. Ela foge ao controle e acha novas formas de se manifestar com a mesma engenhosidade com que buscamos limites à destruição. 
Thomas Hobbes, filósofo inglês, havia pensado que a guerra de todos contra todos era parte constitutiva das sociedades. Concebeu esta ideia em Paris, onde tutorava o futuro Carlos II, ambos fugindo da violenta guerra civil que assolava a Inglaterra. Um mundo hostil gerou seu raciocínio sobre nossa cólera. Para evitar a destruição total, argumentava, surgia o Estado, a entidade que conteria todos por monopolizar a violência. O Leviatã, título de sua obra mais conhecida, publicada apenas dois anos depois de seu retorno da França, era o maior monstro de todos os oceanos. A anomalia aquática era uma metáfora bíblica: no topo do poder das criaturas existiria esse ser, que, com seu tamanho e potência, estabeleceria a paz possível. A guerra de todos contra todos seria detida pelo Estado forte, o Leviatã. 
A violência e o mal podem ser descritos como derivados da queda do homem e da ação malévola do demônio. Na primeira família humana, a mais próxima de Deus e com contato direto com o Criador, existiam quatro pessoas: dois desobedientes (Adão e Eva) e um assassino (Caim). Setenta e cinco por cento dos membros da nossa matriz familiar cometeram infrações graves. Começamos mal. Apesar de os textos sagrados conterem, tradicionalmente, páginas violentas e até incitação ao ódio, o esforço de muitas religiões é na direção de controlar a natureza “degenerada” da nossa espécie. Mas, numa lógica de pensarmos o mundo a contrapelo, como sugeria Walter Benjamin, se precisamos conter a violência é porque, sem a mordaça, a tendência da boca é gritar e morder. 
Uma utilidade tradicional de entidades religiosas organizadas é concentrar o mal e a violência em atividades e ideias que possam ser focadas, nas quais a destruição não se alastre. É o caso de uma cruzada ou de um auto de fé que, diga-se de passagem, era muito popular na Idade Moderna. Até hoje, espetáculos de luta, “pegadinhas” que ridicularizam vítimas, acidentes na estrada, filmes de guerra, histórias trágicas: tudo funciona dentro da catarse sedutora da violência. 
Nosso mundo costuma pensar no nazismo como a encarnação perfeita da violência. Os horrores do holocausto endossam a ideia. Ao analisar o que dizia um famoso oficial hitlerista em seu julgamento por crimes de guerra, nos anos 1960, Hannah Arendt refletiu que o mal não era algo excepcional que atacaria seres sádicos e malévolos. O mal não seria um salto ou uma quebra de humanidade. O mal era... banal. Adolf Eichmann, alvo do estudo da filósofa, era bom pai de família e exemplar na convivência diária. Esse homem, dominantemente calmo e organizado, ordinário em muitos aspectos, foi responsável pela morte de centenas de milhares de seres humanos. A ação era monstruosa, o indivíduo era comum. O incômodo da leitura de Eichmann em Jerusalém é que sentimos a violência como próxima de nós. A pior das conclusões é que é muito fácil de se repetir.

Os americanos chamam de blue line (metáfora advinda da cor azul do uniforme da polícia de lá) a frágil linha que separa a sociedade ordeira da barbárie violenta. A polícia, a lei, o sistema de costumes e de regras garantidos pela punição seriam reforço dessa fronteira tênue que aparta, de forma invisível e delicada, a coesão social do horror. Ou seja, nossa sociedade caminha em paz como um elefante numa loja de cristais.
O que ocorreu no Espírito Santo, em fevereiro de 2017, foi a ruptura da blue line. A coerção entrou em colapso e, como nosso mundo tem pouco consenso, o pandemônio mesmerizou o País. Houve a desordem óbvia de bandidos estimulados pela falta de repressão. Houve o menos claro surto de saques feitos por cidadãos comuns até aquele instante. Hobbes e Arendt comeram moqueca capixaba lamentando tudo, mas entreolhavam-se com muxoxo indisfarçável: “Eu não disse?”.
Não se trata de algo brasileiro ou exclusivo do mundo tupiniquim. Entre 13 e 14 de julho de 1977, Nova York ficou sem energia elétrica. O que se seguiu foi uma noite de pânico e de incêndios, saques e estupros. Qualquer quebra na ordem do mundo parece liberar a energia acumulada nos indivíduos e nos grupos. Um ato racista dos policiais de Los Angeles, em 1992, trouxe à tona a mesma barafunda. Novidade? Uma cena no convento de São Domingos em Lisboa, em 1506, originou um terrível massacre de judeus em Portugal. Um cristão-novo tentou convencer que a luz que parecia ser celestial a iluminar o crucifixo era um prosaico raio que entrava de forma natural pela janela. Foi massacrado junto de milhares de outras pessoas. Era mês de peste. O populacho clamava por um bode expiatório.

Um rio de ódio flui, perene, sob águas superficialmente calmas. Um gesto ou uma frase fazem toda a máscara da paz desabar. Pulsão de morte freudiana? Caráter primitivo da nossa espécie? Mal oriundo da queda do primeiro homem? Tentação demoníaca? Força do rito catártico da tribo? Cada um dá uma causa distinta ao mesmo efeito. 
As explosões de violência são a constante da história humana. No momento em que eu uso explosão de violência, já estou tentando caracterizar como algo excepcional. Explosões de paz seria a melhor expressão. Há poucos momentos de harmonia na história. Tocar avena e tanger a harpa em um campo florido com cordeiros balindo é um sonho árcade. Não morreremos hoje, ao menos. Bom domingo a todos vocês!