A alternância de partidos é desejável na democracia, até para eles não se estagnarem: todo governo longo sofre a usura do poder. Mas trocar um programa de governo pelo seu oposto, sem eleições, não é democracia. Mesmo que Dilma Rousseff fosse culpada de crime de responsabilidade, fazer a antiga oposição tomar o poder sem o aval dos eleitores fere a ética básica da política. Tenho que começar por esta ressalva, porque não estamos vendo apenas a chegada da direita ao Planalto, mas sua chegada sem a legitimidade da soberania popular.
A segunda ressalva é: a direita democrática só chegou lá se subordinando à direita não democrática, e mesmo à extrema-direita, que chamo “direita comportamental”, intolerante, às vezes homófoba. Personagens como Cunha, Bolsonaro, Feliciano foram decisivos para a troca de presidente. E não é verdade que “primeiro tiramos Dilma, depois Cunha e outros”. Porque quem tirou Dilma foram os políticos, foi a direita que concorre às eleições (e perdeu as últimas). Mas Cunha só foi retirado porque o Supremo lhe deu o tiro de misericórdia, e é o que acontece com seus companheiros. A esquerda perdeu o poder por uma decisão política. Mas não foi a política, seja a do Congresso seja a dos que foram à rua pedir o impeachment, que afrontou os acusados de direita. Se estes forem destituídos e condenados, não será por causa dos manifestantes de direita. Terá sido apesar do silêncio ou passividade deles. Isso enfraquece a direita democrática, ou o caráter democrático da direita. É pena, uma democracia não existe sem direita e esquerda.
Daí, o que temos? Nas democracias, é legítimo e mesmo normal se alternarem governos de esquerda e de direita. A esquerda defenderá maior tributação e mais programas sociais – é o que se diz. Já a direita vai querer menos tributos, menos controle estatal, mais liberdade para o empresário atuar e para o cidadão gastar seu dinheiro. Mas parte disso é uma lenda. Na Escandinávia, como na Alemanha, Holanda e França, perdura um Estado de bem-estar social, mesmo quando os governos tendem à direita. Estes podem cortar certas despesas, mas não atacam o princípio mesmo do Welfare. (Para verem como isso funciona, leiam o artigo Going Dutch). Já nos Estados Unidos e Reino Unido, mesmo os democratas e trabalhistas mantêm uma política de poucos direitos trabalhistas, iniciada por Reagan e Thatcher. Aqui no Brasil, por sinal, o maior aumento porcentual da tributação ocorreu com Fernando Henrique, que elevou os impostos de 24 a 34% do PIB. Não foi a esquerda que fez isso.
Mas a alternância é necessária. Evita o desgaste que um período prolongado no governo causa. No momento, temos dois grandes problemas no País. Um deles é a corrupção, o outro a recessão econômica. Em que medida esquerda e direita são responsáveis por eles? E o que podem fazer contra eles? O retrocesso econômico é o verdadeiro problema, que derrubou Dilma. Mas a corrupção é a retórica que domina nosso discurso político há pelo menos quatrocentos anos. Foi-se a colônia, acabou a monarquia, a república oligárquica virou de massas, mas nossa percepção do mundo político continua um samba de uma nota só: chamar o outro de corrupto. Converter o adversário político em criminoso, isto é, em inimigo desprezível. Será muito difícil melhorar o debate, as eleições, os próprios governos enquanto continuarmos neste tosco maniqueísmo, do qual só saímos, de vez em quando, para jogar todos no mesmo saco. Precisamos, nós eleitores, de uma educação política melhor e que aceite a diferença e a alternância.
Seja como for, no quesito corrupção, a direita não se sai melhor que a esquerda – basta ver o volume de acusações que tem vindo a público depois da troca de governo. Ou basta ler os editoriais que pedem que toleremos os maus políticos que ora nos governam, porque seria o preço a pagar pela redenção econômica. (Como eu dizia, a questão “é a economia, estúpido”, para retomar a expressão do homem que levou Bill Clinton à Casa Branca).
Já na economia, o que se nota é uma mudança sensível no discurso desde a posse do governo interino. O que antes aparecia como ruim agora é apresentado como péssimo. As medicinas amargas então sugeridas foram substituídas por cirurgias, pior, por amputações. O Congresso que achava pavorosa uma meta fiscal inferior a R$100 bilhoes de déficit aprova um déficit de R$ 170 bilhões. Tudo o que é ameaça paira sobre programas sociais, enquanto a cobrança de impostos de quem pode – um IPVA e um IPTU de alíquotas progressivas, uma nova faixa no imposto de renda pessoa física – nem é posta em discussão. Estamos entrando numa área cinzenta, em que economias imediatas podem gerar prejuízos bem maiores.
Darei dois exemplos. Primeiro, reduzir gastos na saúde. Se cortarmos a prevenção, agravaremos as doenças futuras. O que economizarmos no início das doenças, pagaremos multiplicado quando elas se instalarem – ou, pior, quando deixarem a pessoa seriamente limitada em sua capacidade de viver e de trabalhar. Segundo, reduzi-los na educação. Quando fui ministro da Educação, divulguei os dados mais completos que já saíram sobre a alfabetização no Brasil, obra do Inep e seu então presidente Chico Soares. Mostramos que aos 8 anos de idade, depois de 3 anos na escola, 57% das crianças da rede pública não sabem o necessário de aritmética (22% não leem direito, 35% não escrevem direito). Mais da metade não atingiu o que devia! E isso, apesar de um plano nacional de alfabetização na idade certa, inspirado no modelo que deu certo no Ceará do governador, depois ministro, Cid Gomes. Vejam que economia porca o Brasil fez, durante quase cinco séculos, na educação: ela resulta em mais da metade das crianças privadas de futuro. Foi somente no governoItamar Franco, faz meros vinte anos, que começou um real empenho na educação básica para todos.
Continuamos atrasados. E repito, é uma péssima economia limitar a capacidade de termos, todos, a saúde e a educação necessárias para viver bem – e trabalhar com qualidade. Mas é o que a limitação do aumento das despesas com saúde e educação aos índices de inflação, proposta pela equipe econômica, vai causar. Os gastos com saúde sobem mais que a inflação, qualquer um sabe. E falta universalizar uma saúde e uma educação decentes.
É essa a direita no poder? Nem em pesadelo consigo imaginar Angela Merkel tomando medidas tais. E o ministro da Educação da Coreia do Sul, pasta que lá é tão importante que seu titular é o vice-primeiro-ministro, me disse num dos três encontros que tivemos no ano passado: “Quanto vivemos nossa crise mais grave, não cortamos na educação. Porque para sair da crise é preciso melhorar, não piorar, a educação”. Detalhe: o partido dele é de direita.
Seria bom nossa direita chegar ao liberalismo, isto é, à igualdade de oportunidades. E para isso a chave está na boa saúde e na boa educação para todos. Por enquanto, ela está bem longe disso.
RENATO JANINE RIBEIRO, ex-Ministro da Educação, é professor titular de Ética e Filosofia Política na USP. Recebeu o prêmio Jabuti de melhor ensaio em 2001.
TAGS