SÉRGIO AUGUSTO - O ESTADO DE S.PAULO
19
Junho 2016 | 06h 00 - Atualizado: 19 Junho 2016 | 06h 00
O ensaísta americano David Rieff tem
uma receita de como devemos lidar com o passado: ‘esquecer o que deve ser
esquecido e seguir em frente’
Sérgio
Augusto
Ainda faltavam três dias para o
“direito do esquecimento” na Internet ser oficializado pela União Europeia,
quando usuários do Twitter do lado de cá do Atlântico o exerceram,
legitimamente, clicando rapidinho a tecla delete para evitar que a blogosfera inteira
tomasse conhecimento das barbaridades que a chacina de Orlando lhes havia
“inspirado”– e as congelasse na rede para todo o sempre. Mas pelo menos duas
delas vazaram, melando as intenções dos perpetradores.
O primeiro vazamento foi uma façanha
da atriz Mia Farrow. Antes que o vice-governador do Texas, o republicano Dan
Patrick, talvez aconselhado por algum assessor dotado de bom senso ou menos
homofóbico que o chefe, apagasse uma postagem debochando do que acabara de
ocorrer em Orlando, a ex-senhora Woody Allen reproduziu-a em sua página no
Twitter. “A gente colhe o que semeia”, arrematava o post do governador, depois
de reduzir a carnificina a uma punição divina. O segundo vazamento ocorreu aqui
mesmo, quase que simultaneamente ao providenciado por Mia Farrow e com igual
presteza propagado pelas redes sociais. “Um muçulmano matando todo mundo em uma
boate gay. A cabeça do Jean Wyllys já explodiu?”, caçoava o post, logo deletado
por seu signatário, um neto do general Figueiredo e sócio de Donald Trump num
empreendimento hoteleiro, sem contudo a rapidez necessária. Mas talvez seja
bom, sobretudo para o interessado em explodir a cabeça de Wyllys, que a mórbida
zombaria, apesar de compartilhada por quase uma centena de internautas, já
tenha sido esquecida.
Por reconhecer o apagamento de
inconveniências e impulsivas asneiras como uma virtude a ser cultivada na era
digital, o austríaco Viktor Mayer-Schönberger escreveu Delete:
The Virtue of Forgetting in the Digital Age.
Mais que um incentivo à autocensura, é uma defesa do “esquecimento social”. Os
seres humanos evoluem com o tempo e não merecem ser cobrados para sempre por
informações “inescapáveis” expostas e arquivadas na Internet, argumenta o
professor, que a dada altura compara a rede ao memorioso Funes inventado por
Borges. A memoriosa Internet, como o personagem de Borges, se lembra de tudo –
exceto daquilo que, por espontânea ou estimulada vontade, deletamos.
Esquecer tem sido um dos verbos
transitivos de maior trânsito no mercado editorial este ano, envolvendo ou não
a memória da web. O mais recente livro a entrar na pilha é um ensaio de 158
páginas, escrito por David Rieff. Nada a ver com o poder mnemônico da Internet.
O esquecimento analisado e louvado em In
Praise of Forgetting, editado em maio pela Yale
University Press, diz respeito à memória histórica e suas ironias (daí o
subtítulo: Historical Memory and Its Ironies). E, por extensão, aos efeitos benéficos da
filtragem que lhe possamos impor.
Com tanta demagogia passadista a
perturbar o planeta (do canhestro bolivarismo à reencarnação de Joana D’Arc
como inimiga dos imigrantes na França), o ensaio de Rieff já nasceu diacrônico
e ainda mais relevo ganhou com a ascensão ao minarete político de Donald Trump
e suas ameaças messiânicas.
Famoso por ser filho de Susan Sontag,
pelo afinco com que cobriu, como jornalista, a guerra nos Bálcãs nos anos 1990
e pela seriedade de seus estudos sobre a fome, as intervenções armadas dos EUA,
a crise do humanitarismo internacional e os exilados cubanos em Miami, Rieff não
contesta mas questiona o mais conhecido aforismo do filósofo George Santayana
(“Aqueles que esquecem o passado estão condenados a repeti-lo”), com mais de um
século de existência e crescente prestígio desde o fim da Segunda Guerra.
Na versão original, em inglês, língua
na qual o espanhol Santayana foi criado, o verbo esquecer está implícito na
locução “those who cannot remember” (aqueles que não conseguem lembrar),
dificuldade ou impossibilidade contra a qual, segundo Rieff, não deveríamos
despender tanta energia. Sua receita: esquecer o que deve ser esquecido e
seguir em frente. Simplifiquei-a, mas basicamente é isso.
Se é injusto, ou mesmo imoral,
esquecer o que outros sofreram no passado e imprudente desprezar as lições que
aqueles sofrimentos nos legaram, mais danoso ao presente e ao futuro, segundo
Rieff, é a sacralização de horrores e glórias, muitas imaginárias e forjadas
por interesses políticos ou impostas pelas armas, que o tempo levou, mas não
apagou.
Paul Ricoeur, um dos inúmeros
pensadores contemporâneos que foram citados no livro, acreditava na memoração
como dever moral e político, que da memória de sofrimentos do passado extraímos
uma vital e infalível lição moral, sintetizada em duas palavras: “Nunca mais”.
Mais afinado com a proverbial frase de abertura do romance The
Go-Between (O Mensageiro), de L.P. Hartley, em que o passado é
definido como “um país estrangeiro, onde as pessoas agem de forma diferente”,
Rieff desmonta o “nonsense sentimental” de certa memória coletiva com dados
históricos precisos e incontestáveis.
O genocídio dos armênios pelos
turcos, 100 anos atrás, não evitou o extermínio de judeus durante a Segunda
Guerra, nem Hiroshima e Dresden, nem os assassinatos em massa que precederam a
criação de Bangladesh, nem a matança de milhões de cambojanos pelo Khmer Rouge,
nem a carnificina na Bósnia, nem o banho de sangue em Ruanda, e por aí vai,
passando pelas milenares hostilidades no Oriente Médio, a Guerra Civil
espanhola, o 11 de Setembro. Até chegar a Guerra da Síria.
Mesmo reconhecendo a relevância dos
pactos nacionais e das leis de anistia que afinal trouxeram a paz e não mais
desgraças, como habitualmente ocorre, e defendendo sem transigência a punição
de criminosos de guerra, Rieff consegue conciliar De Gaulle e Nietzsche (e sua
tese sobre o “esquecimento ativo” como antídoto às destrutivas relembranças
movidas a rancor e ressentimentos). Oui, De Gaulle.
Quando o pragmático De Gaulle aceitou
a independência da Argélia, um de seus conselheiros lembrou-o de que muito
sangue fora derramado na guerra contra os argelinos. “Nada seca mais rápido que
o sangue”, respondeu-lhe o general, e seguiu em frente.
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