quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

As coisas mudam - ROBERTO DAMATTA


ESTADÃO - 06/01


Em 1972, fui a uma conferência de antropologia no Cairo. No decorrer desse encontro de “sábios”, muita gente que eu conhecia exclusivamente de livro e idealizava como gênio tornou-se desgraçadamente humana. Eu os havia estudado, mas nas margens do faraônico Nilo – eles se transformaram em concorrentes, tangenciando uma familiar burrice.

Exceto a curiosidade de conhecer o professor Sol Tax (1921-1995), um dos modernizadores da antropologia americana e organizador do encontro, eu sabia que o alvo da reunião – produzir livros sobre todas as sociedades tribais do mundo – era muito ambicioso e muito americano. Mas, por trás disso, havia o Egito, o Cairo do cinema, as tais danças do ventre e a minha juventude.

No hotel Shepheard, vi um sujeito baixinho, energético e extremamente simpático que me recebeu dizendo: “Você deve ser o nosso homem do Brazil...” (com “z” mesmo). Sol era o dono da bola. Ao seu lado, estava o arqueólogo argentino Rex Pederneiras e um colega egípcio, Hassam Said. Registrei-me e quando soube do interesse de Rex nas danças do ventre, saímos com a desculpa de “conhecer a vida no Cairo”.

Said nos levou a um salão no qual bailarinas maravilhosas, saídas do Jardim das Delícias praticavam a nobre arte da dança do ventre. Apreciei o espetáculo assistido por um El Said intoxicado de orientalismo, tomei um uísque e vi como Rex, instigado pelo nosso companheiro egípcio, bebericava umas seis ou sete taças chá de menta. No dia seguinte, eu tinha ressaca, eles diarreia.

Comentei com Sol Tax, e dele recebi um conselho bíblico ou, quem sabe, talmúdico, inesquecível: em terras pouco conhecidas, coma muito pão!

Em 1977, fiz uma palestra em Chicago e visitei Sol Tax. Fui recebido com muito carinho e alegria. Informado das dificuldades da ditadura militar, o mestre me questionou sobre o Brasil. Externei pessimismo e preocupação. Ouvi o seguinte: “Eu vivi o macarthismo. Também passei por uma Alemanha alucinada pelo Holocausto e uma Europa em guerra. Tenha paciência: as coisas mudam, Roberto”.

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Em 1849, o grande Richard Wagner que, para o não menos grandioso Claude Lévi-Strauss, teria sido o verdadeiro inventor da análise estrutural dos mitos, decretou a que a Nona Sinfonia, de Beethoven, havia exaurido essa forma musical. Mal sabia ele que, depois disso, Brahms escreveria quatro sinfonias; Tchaikovski, seis; Dvorak, nove; Mahler, dez; Havergal Brian, 32 e Alan Hovhaness – para pararmos uma longa lista roubada de um belo ensaio de Alen Ross, lido na New Yorker –, 67!

As sinfonias continuam. Perderam seu viés teatral, são ouvidas em CD. Mas, como os mitos, elas dialogam entre si.

Do mesmo modo, o populismo-sebastianista, que garante riqueza e bem-estar para todos sem que ninguém perca coisa alguma, retorna e hoje está em cheque e choque. Como distribuir eleitoralmente sem destrambelhar a economia? Como fazê-lo pensando no Brasil e não no poder? Como substituir a formula “cuidar aos pobres”, para, por meio de escolas, saneamento, moradia e, sobretudo, igualdade cívica, mudar a vida dos menos favorecidos? O lulopetismo prometeu progresso, mas o resultado foi regresso – recessão e inflação. Isso para não falar na mendacidade como moda a qual, como as antigas sinfonias, ganharam em vigor e virtuosismo imaginativo.

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O Brasil em crise e os nossos zilionários calados. Quando a vida aperta, os pobres gritam e os ricos se calam, diz um ditado. Escrevi algumas vezes que a tradição brasileira de “políticas públicas” inspirava-se na “caridade”. Numa virtude teologal que, ao lado da fé e da esperança, fazem parte de um quadro religioso. O resultado é uma sociedade na qual cada qual todos sabem o seu lugar e tanto os ricos quanto os ideologicamente iluminados continuam falando dos pobres, mas garantindo suas famílias.

A caridade tem sido implacavelmente canibalizada pela política do ‘dar para receber’. Nosso surto petrolífero não resultou na filantropia de uma Fundação Rockefeller ou Ford, mas numa ponte amigável entre políticos e operadores organizados em locupletarem-se, debaixo da velha fachada de remediar uma desigualdade que os programas do governo perpetuam.

Vejam o contraste. Mesmo nesta era estadunidense de pikketys, de capitalismo narcisista e de aumento vergonhoso de desigualdade, a filantropia segue firme com os Bill Gates e os Mark Zuckerberg abrindo mão de parte do seu dinheiro. Aqui os ricos viram pobres e culpam o Estado... ou a polícia. Lá, eles assumem o seu lugar e, para a surpresa dos que imaginam que os capitalistas não conhecem o seu próprio sistema, discutem o lado negativo do capitalismo. Lá, o federalismo e a ética individualista do mercado e da competição revelam os defeitos do todo. E, como são os indivíduos que fazem a sociedade, os milionários tentam corrigi-la com a filantropia. Aqui, como partimos do centro e do todo, esquecemos do papel (e da responsabilidade) das partes. E, como quem “cuida” do sistema é o “governo” e não cada um de nós, esquecemos como os muito ricos podem contribuir para essa crise cuja causa jaz exatamente no controle indiscutível do sistema por uma elite que cabe num dedal.

Quando a vida aperta, os pobres gritam e os ricos se calam, diz um ditado

A hemorragia do Banco Central - MONICA DE BOLLE


ESTADÃO - 07/01

Para impedir que a desvalorização do real se transformasse em pesadelo inflacionário ainda pior do que o aumento de quase 11% dos preços em 2015, o Banco Central acaba de anunciar prejuízo de 1,5% do PIB, ou cerca de R$ 90 bilhões de reais no ano passado.

A perda deve-se à forma como a autoridade monetária brasileira intervém nos mercados de câmbio desde 2013, usando os chamados swaps cambiais. Nessas operações, o Banco Central entrega ao investidor a variação do dólar em relação ao valor futuro predeterminado no contrato e em troca recebe a variação dos juros de mercado no mesmo período. Como as operações são efetuadas em moeda doméstica, não há perda de reservas. Ou assim nos dizem.

Em 2013, quando essas operações se avolumaram, o motivo era oferecer proteção aos investidores contra as bruscas oscilações do câmbio vinculadas ao fim dos estímulos monetários excepcionais nos EUA. Na época, o temor dos mercados de que a liquidez internacional se esvaísse diante da mudança de postura do Federal Reserve (Fed) induziu fortes desvalorizações de moedas emergentes, entre elas do real. Contudo, quando o tumulto acabou, nosso BC não se fez de rogado. Continuou a prover “proteção” aos investidores, embora estivesse ficando cada vez mais claro que o intuito verdadeiro era conter o deslizamento da moeda brasileira. Contenção que fez o estoque total de swaps cambiais alcançar cerca de US$ 120 bilhões. Como o real só sofreu desvalorizações nos últimos tempos, ao estoque considerável somaram-se as perdas aviltantes. Aviltantes posto que são forma perversa de tentar esconder o óbvio: o câmbio flutuante do Brasil quase não flutua. Ou, quase não flutua de acordo com as pressões existentes no mercado. Finge-se que o instrumento para controlar a inflação ainda são os juros, enquanto a hemorragia cambial só aumenta.

A perda de 1,5% do PIB registrada no ano passado é apenas parte das verdades escondidas. A outra parte é o mito de que dispomos de reservas de cerca de US$ 370 bilhões. Se interpretarmos os estoque de US$ 120 bilhões em swaps como um fluxo negativo de capitais que ainda não se concretizou, nossas reservas são de US$ 250 bilhões, ou 30% menores do que nos dizem.

Diante do estado lastimável da economia brasileira, a hemorragia haverá de continuar. Com ela, as verdades escondidas, cada vez mais nítidas.

*Pesquisadora do Peterson Institute for Internacional Economics

Folia de reis - VINICIUS TORRES FREIRE


FOLHA DE SP - 07/01

Ontem foi Dia de Reis. Em vez de levar presentes, alguns reis do capital foram a Brasília pedir dinheiro para suas empresas arrebentadas. Teve-se notícia do que o rei do PT, Lula, disse na primeira sessão de tutela de Dilma Rousseff neste ano: quer medidas "concretas" de estímulo econômico.

Nada de novo sob a poeira e o sol do Planalto.

A fila de empresas pedintes vai aumentar. Assim como a de Estados e prefeituras quebrados. Minas Gerais não tem dinheiro para pagar o salário de servidores. Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Distrito Federal e Paraná estão na pindaíba.

Siderúrgicas e montadoras querem dinheiro. A venda de veículos caiu 26,5% em 2015. A associação dos vendedores estima que caia outros 6% neste 2016, o quarto ano seguido de ruína. Ao anunciar as más novas, vazou também que o governo prepara um pacotinho de ajuda.

Pacotinho, diminutivo, pois o ministro Jaques Wagner (Casa Civil) diz que não haverá "pacotes", medidas "bombásticas" ou "grandes notícias". Não vai sair "coelho da cartola", afirmou, com aquelas vogais graves e extensas como o mar que quebra na praia da tranquilidade de Caymmi ("é boniiito, é boniiiito...").

O coelhinho da Páscoa ou do Carnaval das montadoras, por exemplo, não teria subsídios. Isto é, o governo não doaria dinheiro dos impostos para fábricas e compradores de carros. Mas sempre é possível disfarçar subsídios por meio de crédito facilitado.

O governo vai facilitar empréstimos? Não faz sentido, pois o Banco Central arrocha o crédito faz anos, com a intenção declarada e frustrada de conter a inflação. Dado que não faz sentido, é possível que Dilma Rousseff adote a ideia.

O pacotinho pode ser algo mais incrementado. Insinua-se que haveria uma espécie de taxa ou seguro para financiar a compra de carro novo, colocando os muito velhos no rolo.

No que diz respeito à "retomada do crescimento", tanto faz. Até remendo setorial com privilégios está difícil de fazer. As siderúrgicas, por exemplo, estão na lama porque a construção civil entrou em colapso, assim como a venda de bens duráveis, como carros, entre os motivos imediatos.

A construção civil afunda porque os governos não têm dinheiro para obras, porque as maiores empreiteiras foram enfim pegas na roubança, por causa da ruína na Petrobras. Afunda porque não há crédito ou coragem de tomar dinheiro emprestado para comprar casa, também porque os juros estão altos. O mercado imobiliário afunda. O preço do metro quadrado dos imóveis em São Paulo caiu 8% em 2015, em termos reais, segundo o índice Fipe-ZAP.

Enfim, o colapso da construção é um aspecto do colapso do investimento das empresas em capital (máquinas, equipamentos, instalações produtivas), que cai desde 2013. O governo federal cortou 40% do valor do investimento "em obras" em 2015, pois de 2012 a 2014 administrou o dinheiro público de modo irresponsável, incompetente e fraudulento.

A venda de veículos afunda porque houve uma bolha inflada pelo governo, porque se antecipou muito consumo, porque os juros estão altos, porque as empresas não investem, porque a renda do trabalho parou de subir, porque as pessoas estão com medo do futuro depois da passagem do furacão Dilma.