segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Lá em cima( sugestão de pauta para Olimpiadas)

Entrevista. Katia Rubio

Para autora da maior pesquisa sobre o Brasil nas Olimpíadas, nada faz sentido enquanto o atleta não for o protagonista


Vitor Hugo Brandalise
25 Julho 2015 | 16h 00
São 38 círculos verdes, alguns grandes como aros de basquete, outros pequenos como bolinhas de tênis de mesa. Impressos em cartazes que tomam a parede de uma sala de reuniões da Escola de Educação Física e Esporte da USP, eles representam as modalidades esportivas das quais o Brasil participou em Olimpíadas. Ao redor deles há milhares de bolinhas bem menores. Cada uma contém, sem exagero, a importância de uma vida. Simbolizam os 1.796 atletas brasileiros que atuaram pelo país em Jogos Olímpicos. Em conjunto, os círculos na parede formam a mais completa pesquisa já realizada no Brasil sobre o assunto.
A responsável pelo trabalho é a professora Katia Rubio, de 52 anos, doutora pela Escola de Educação da USP, com pós-doutorado em psicologia social. Ao longo dos últimos 15 anos, ela e uma equipe de 20 acadêmicos vasculharam arquivos e redes sociais para encontrar todos os atletas brasileiros que participaram de Jogos Olímpicos. Entrevistaram 1.300 (cerca de 340 morreram e alguns preferiram não falar). “Em um caso levei seis anos até que o atleta aceitasse. Muitas vezes é difícil para esse ser poderoso, que levantou estádios, lembrar desses tempos”, conta a professora, cuja pesquisa, que mirava a alma do atleta, atingiu em cheio a sociedade. “O trabalho aponta a raiz do que chamamos de excelência. Por que há pessoas bem-sucedidas nas suas profissões? Porque elas resolveram sair da média, sendo melhores no que fazem. O desdobramento social disso são pessoas que mudam o mundo.”
Em busca. Fabiana Murer salta para conquistar a medalha de prata no Pan de Toronto
Em busca. Fabiana Murer salta para conquistar a medalha de prata no Pan de Toronto
O resultado da pesquisa, o livro Atletas Olímpicos Brasileiros (Sesi-SP Editora), será lançado em 25 de agosto. “Até aqui, mais de 100 atletas confirmaram presença, vai ser uma festa!”, comemorou Katia. Provocada, ela nem precisou se voltar à parede para apontar quais são as maiores bolas impressas ali. Dois círculos exatamente atrás dela (às quais ela apontou com perceptível desdém) simbolizam a modalidade que mais enviou atletas brasileiros aos Jogos: o futebol masculino. Sua pesquisa serviu para reforçar uma convicção. “Tem de deixar as Olimpíadas. Nesses 15 anos, vi respeito pelo espírito olímpico por parte de atletas de todas as modalidades. Adivinha quais disseram que era uma chatice e que a Vila Olímpica não chegava aos pés dos hoteis? Pouquíssimos jogadores de futebol atribuem significado ao evento. Que abram espaço para outros, então, em vez de ir para lá tirar selfie.”
No domingo em que termina o Pan, Katia colocou o torneio na raia devida. Tem serventia, sim. É esperado pelos atletas, sim. Mas sem ufanismos - o Pan indica o que o nome já diz: a posição em relação a outros atletas das Américas. “Mas por que não seria importante para eles saberem onde estão? Falar mal é fomentar uma discussão de quem tem interesse em desvalorizar o esporte olímpico.”
O que faz com que um garoto ou garota dedique a juventude para tentar virar um herói?
É um desejo que nasce a partir da criação de diferentes referenciais. Se a gente for remontar a genealogia desse desejo, há sempre um atleta anterior. Então, é incrível, porque o Flávio Canto (judoca, medalha de bronze na Olimpíada de Atenas-2004) fala que o gesto do Joaquim Cruz (medalha de ouro nos 800 metros, em Los Angeles-1984) com a bandeira em 84 o fez desejar ser atleta, mesmo que não fosse do atletismo, mas ele queria ter aquele gesto. O Hudson (de Souza, três medalhas de ouro em pan-americanos) também fala do Joaquim Cruz. A figura do atleta é tão enigmática e misteriosa que racionalmente é difícil dizer por que um cara deseja. Mas é uma força maior do que a própria razão.
Por quê?
Porque ele simplesmente quer. Minha pesquisa mostra que esse desejo de querer é a raiz daquilo que a gente chama de excelência. Por que é que você tem pessoas bem-sucedidas nas suas profissões? Porque elas resolveram sair da média, sendo as melhores no que fazem. E veja: essa competição não necessariamente está relacionada com competir contra alguém. Mas é antes de tudo uma competição consigo mesmo. Uma insatisfação eterna com aquilo que já se tem e o desejo de ter mais. Infelizmente, na nossa cultura, isso é tomado como ganância. Como arrogância. Agora, do ponto de vista humano, individual, é excepcional, porque, quando ele fala “eu quero ser o melhor”, o desdobramento social disso são as pessoas que transformam o mundo. E, para o esporte, são pessoas que transformam o esporte. Então, quem são os atletas olímpicos? São aqueles que se inspiraram em alguém, que sonharam em fazer o que alguém já fez, mas que não podiam apenas fazer de novo. Tinham de fazer mais.
O que diferencia um atleta olímpico?
Ele se apoia mais em uma força interior. O atleta que compete contra o outro nem sempre chega lá. Isso de se conhecer é fundamental, porque senão ele vai sempre lutar contra o que está fora dele. E em grande parte dos casos o adversário está dentro do próprio sujeito. É o medo, a insegurança. O Joaquim Cruz me contou que sentia uma ansiedade que ele chamava de dragão. Até identificar esse inimigo ele teve uma úlcera. Anos se passaram até ele domar o dragão e, no dia em que descobriu o problema, as coisas aconteceram. É bonito ver um sujeito que se determina a buscar um objetivo e para isso resolve se olhar no espelho. Ele para de jogar a responsabilidade fora e busca em si e nas suas limitações os elementos para se superar. E aí então o discurso de que falta estrutura deixa de ser prioritário e ele passa a buscar outros elementos.
A responsabilidade é toda do atleta?
Não. Em um sistema neoliberal, isso cairia como uma luva. Mas não me refiro ao “yes you can”, porque esse é um discurso pronto. A gente não pode usar esse desejo maior do sujeito que conseguiu chegar lá mesmo sem condições para encobrir um sistema falho, que alija crianças do esporte. Enquanto o atleta não tiver a atenção do protagonista, nada faz sentido.
Os atletas opinam em decisões no esporte?
Eles são excluídos da maioria das decisões. O esporte se origina na mão dos donos dos meios de produção, e ali fica, com estrutura autoritária. A carta olímpica foi escrita em 1894 e é um dos documentos em que menos se mexeu no século 20. O salto com vara feminino entrou para o programa olímpico em 2000. O boxe feminino entrou em 2012. Porque mulher não devia praticar esporte. Isso já mostra como a estrutura olímpica é monolítica. 
Qual a consequência disso?
Uma falta de cuidado e de respeito ao próprio atleta. Se a gente o entende como protagonista, ele deveria estar incluído nas decisões. Assim ele poderá opinar de dentro sobre o que é melhor para o esporte. Da forma como está hoje, a palavra do atleta pouco importa, porque para os dirigentes o que ele tem que fazer é ser o cachorro que corre atrás da lebre. Do ponto de vista do atleta, ele melhoraria a segurança, as condições de treino e da competição. Os dirigentes querem ver o espetáculo gerar dinheiro. E aí pouco importa, por exemplo, se as meninas estão confortáveis em um uniforme. O que o dirigente quer é fazer a menina ser gostosa para vendê-la na TV e ter mais espaço comercial. Não se preocupa com mais nada.
O que sua pesquisa mostra sobre o fim da carreira de um atleta? 
Há uma diferença na forma de encarar o esporte por um atleta da fase do amadorismo (antes dos anos 1970) e do profissionalismo. Enquanto você vivia o amadorismo, o atleta sabia que o desejo era aquele, ir à Olimpíada. Quando ele realizava esse desejo, adeus, bye bye. Atletas como Manoel dos Santos (bronze na natação em Roma-1960) e Tetsuo Okamoto (bronze na natação em Helsinque-1952) falaram nas entrevistas que eles poderiam ter ido a outra edição, se quisessem. Mas o desejo estava realizado. Então chega, é hora de estudar e ter uma profissão. Com a passagem para o profissionalismo há um distanciamento da formação necessária para o pós-carreira. O cara está 24 horas envolvido no esporte. Entrevistei um número considerável de atletas deprimidos. Porque o atleta é o único ser humano que morre duas vezes. Primeiro para a carreira, depois para a vida.
Quando acaba a carreira, para onde o atleta vai hoje?
Ele consegue ir até onde se preparou para chegar. Quando deixa o esporte, o atleta fica quase que como num redemoinho. Alguns conseguem sair de dentro dele. O Gustavo Borges (quatro vezes medalhista olímpico) é um exemplo, ele faz da natação a sua vida ainda hoje, mas com uma metodologia própria. Tem uma rede de escolas. E há aqueles que vão parar lá embaixo. E do olho do redemoinho o cara não sai. Cunhei o termo pós-atleta, porque não existe ex-atleta. O atleta carrega dentro de si essa identidade. As marcas dessa condição ficam impressas como cicatrizes, naquele que se dedicou a defender o país durante décadas. Por isso deve ser beneficiado depois de se aposentar. Não existe nada pior para a imagem do esporte do que um pós-atleta olímpico derrotado pela vida.
Qual é uma forma de melhorar a transição?
Seria uma gestão de carreira parecida com uma orientação vocacional. Ele precisa descobrir outras vocações. O ser humano é perito em adaptação. Só que esse cara foi educado na disciplina para só enxergar aquilo e não ver mais nada. É preciso oferecer opções, por meio de políticas públicas. Austrália, Cuba e Suécia são países que têm um projeto de transição para os pós-atletas, considerando o fato de eles serem inspiradores. Para os jovens, é fazê-lo estudar ao longo da carreira. 
Dos 1.796 atletas brasileiros, 342 são medalhistas. Qual a importância de contar a história dos que não venceram?
Primeiro, porque eles são a maioria. Você vê o esforço, a dedicação, a determinação e aí vem o adversativo. Eu fiz isso e isso, mas... porém... E, depois, é importante falar da derrota porque ela é a sombra da nossa sociedade. No sistema produtivo que a gente vive, perder é muito mais do que só deixar de ter alguma coisa. O que significa a derrota para a sociedade contemporânea, que não admite a tristeza, a depressão, o silêncio? Não refletimos mais sobre a derrota. Tem que ser comoo livro de autoajuda: você é sempre o responsável pelo que faz. Do ponto de vista do atleta, significa ter de ganhar a qualquer custo. E aí vale a imoralidade no sentido de trapaça e, no extremo, o doping. 
A que conclusões você chegou sobre os técnicos brasileiros?
Ficou claro o quanto há técnicos brasileiros despreparados para atuarem com atletas olímpicos. Eles falam: “Você classificou, parabéns! Mas jamais vai superar um americano. Campeão olímpico não vai ser”. É preciso formar os técnicos, pois não são só figuras de autoridade. A criatura tem que superar o criador e essa marca de superação se chama excelência.
Passaram-se 64 anos da participação da primeira mulher brasileira numa Olimpíada à primeira medalha. O que isso indica?
Isso é resultado de uma política que impediu as mulheres de acessar o esporte, no governo Vargas. Entrevistei três atletas não olímpicas da geração de 70 do vôlei, que ainda sentiam o reflexo desse descaso. Para elas, esse projeto não realizado é como um filho que não nasceu. No livro eu conto a história de Aída dos Santos (única mulher da delegação brasileira em Tóquio-1964), que foi sem uniforme para desfilar e para competir. Quando se lesionou na pista, quem a atendeu foi o médico cubano. Até a sapatilha foi emprestada. E ainda assim terminou em quarto lugar, não foi ao pódio por uma unha! Quão importante é divulgar essas trajetórias? São marcas não só desses atletas, mas de nossa história. E encontram eco quando alguém fica sabendo delas. A Aída é mãe da Valeskinha (medalha de ouro no vôlei feminino em Pequim-1998).
O que a superexposição de atletas femininas como musas simboliza para o esporte feminino hoje? Neste Pan muito se falou do que houve com a atleta Ingrid Oliveira.
Estamos aprendendo a lidar com as redes sociais, que amplificam a informação. Mas há outra reflexão. Da mesma forma que foi uma batalha insana para as mulheres conseguirem espaço, quem comanda também se apropriou dessa imagem para manter a posição. A gente deixa as mulheres participarem, mas não queiram ser dirigentes. Aí começou a batalha para assumir esses papéis. Há interesse em desqualificar a mulher e uma das formas de desqualificá-la é usá-la como objeto. A musa, a gostosa dos jogos. E a atleta? Que atleta é essa? Diz respeito à desqualificação do feminino numa sociedade falocêntrica. Não posso admitir que uma mulher pense, seja boa no que faz e ainda seja bonita. Claro, há ainda mais dificuldades por conta de mulheres que assumem esse papel.
Outro episódio foi a continência de atletas militares no pódio. Como analisa esse gesto?
O atleta segue à risca durante anos um tipo de treinamento que foi dado a ele. Ao transpor para a estrutura militar, marcada por rígida hierarquia, na minha opinião, tem a ver com disciplina. Conheço muito atleta que dá serviço no quartel, principalmente da Marinha e do Exército. É quase um reflexo bater continência diante da bandeira. Na entrega de prêmios, esses atletas vão com o uniforme da sua arma. Muitos começaram a praticar esporte no quartel. Então, para mim, é uma falsa discussão. O João do Pulo (bronze em Montreal-1976 e Moscou-1980), e muitos do pentatlo moderno, do tiro, do atletismo. No começo do esporte brasileiro ou o cara era aristocrata ou era militar. Os civis médios não tinham acesso a esporte. Guilherme Paraense, a primeira medalha de ouro olímpica brasileira (em Antuérpia-1920) era tenente, por exemplo. 
Um Pan-Americano, para o atleta, é um meio e não um fim?
Para alguns atletas isso é quase tão importante quanto a Olimpíada. Há modalidades que não são olímpicas, como os patins, na qual o Brasil acabou de conquistar quatro medalhas. Como desconsiderar esse torneio? O Pan é importante e indica justo o que a competição diz: a posição desse atleta dentro das Américas. Ponto. É bom para o atleta se posicionar, saber que ele é o melhor de São Paulo, do Brasil, da América do Sul. Ele pode encontrar forças para melhorar. Avaliar se isso é mais ou menos do que outra competição é desmerecer o esforço de quem treina e fomentar uma discussão de quem quer desvalorizar o esporte olímpico.
O Ministério dos Esportes divulgou que espera que o Brasil fique entre os 10 maiores medalhistas na Olimpíada de 2016. Qual sua opinião sobre isso?
Depende do critério. Já estão querendo contar medalha de esporte coletivo como se cada atleta fosse uma medalha. Aí fica fácil. Eu digo que estatística é a arte de torturar o número para que ele prove o que você quer. O Comitê Olímpico Internacional nem reconhece quadros de medalhas. Esses quadros são invenção de jornalistas americanos, em 1952, para alimentar a rivalidade com a URSS. Eu adoraria fazer um quadro de medalhas por IDH. Ou por PIB. Mas, como se pode mudar o critério como o governo bem entender, tem toda chance de ficar entre os dez. Até entre os cinco, por que não?

‘Não me puna com brutalidade’, Alias


Revolta com morte de Sandra Bland é sinal do mais poderoso movimento social dos últimos 50 anos nos EUA


Os Estados Unidos têm infinitas distrações, mas neste momento a atenção do país está concentrada na morte de Sandra Bland. Bland era uma mulher negra de 28 anos, moradora de Chicago, que recentemente conseguiu emprego na faculdade texana onde um dia estudou. Enquanto guiava por uma autoestrada no Texas, um policial estatal do mesmo Texas a obrigou a encostar o carro por ela não ter acionado a seta ao mudar de pista. Quando o policial pediu que Bland se livrasse do cigarro, ela o desafiou e xingou. Ele então a ameaçou com uma arma imobilizadora, ordenou que ela saísse do carro, a empurrou para o chão e apoiou o joelho nas suas costas enquanto a algemava. O policial a deteve e a prendeu na cadeia local. Três dias depois, Bland foi encontrada enforcada com um saco de lixo de plástico em volta do pescoço.
Alguns imediatamente acusaram a Polícia Estadual do Texas de assassinato, mas a questão se ela foi morta ou se matou, como a polícia alega, é basicamente irrelevante. Minha teoria, considerando o que ela havia escrito meses antes em sua página do Facebook - que estava muito deprimida -, é que a polícia a isolou numa cela de prisão, a humilhou e ameaçou, e que ela se matou de terror e desespero. A questão não é se ela foi assassinada. É, antes de tudo, que ela jamais deveria ter sido detida e encarcerada por uma infração menor de trânsito. E não devia ter sido aterrorizada. Os policiais que a detiveram e atormentaram é que deveriam ser presos e encarcerados.

Quem explica? Joelho nas costas, algema nos pulsos e uma morte suspeita: tudo por mudar de pista sem sinalizar
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Há 10 anos apenas, um incidente como a prisão injustificada e a morte de Sandra Bland nas mãos da polícia provavelmente nem teria chegado aos jornais locais, que dirá à mídia nacional. O fato de ter chamado a atenção e causado a indignação que causou é testemunho de um desenvolvimento recente notável que não se via igual desde os protestos contra a guerra e pelos direitos civis dos anos 1960. Ocorre neste país um movimento por reforma judicial que é o movimento social mais poderoso e bem-sucedido em 50 anos.
Há muito que pessoas vêm tentando reformar o sistema de justiça criminal - “Não me puna com brutalidade”, cantou Marvin Gaye há quase 45 anos -, mas esse esforço só se transformou num movimento no ano passado, quando Michael Brown foi baleado e morto por um policial em Ferguson, Missouri. A morte de Brown atiçou o ódio que já fora sentido na morte de Eric Garner, um mês antes, nas mãos da polícia da Cidade de Nova York. Muitos exemplos gritantes de brutalidade policial se seguiram: o tiro nas costas de Walter Scott por um policial na Carolina do Sul, o assassinato pela polícia de um garoto negro que brincava num balanço em Cleveland; a morte de um suspeito chamado Freddie Gray dentro de uma viatura policial. Todas essas vítimas eram negras. Nenhuma delas havia cometido um crime.
À medida que esses incidentes eram conhecidos, outros foram revelados, e cada um causava mais indignação e protestos. Foi nessa atmosfera que prosperou o impulso por uma reforma judicial. Os EUA encarceram mais pessoas per capita do que qualquer outro país no mundo. Atualmente, 2,4 milhões de americanos estão presos. A maioria deles são negros.
Parte da razão para essas punições absurdamente duras para crimes não violentos é, como alguns têm apontado, a chamada Guerra às Drogas, que transformou a posse e/ou venda de drogas numa forma de terrorismo doméstico.
Entretanto, uma razão mais geral é o fato de que o sistema judicial não se modernizou ao longo do tempo. As penas de prisão draconianas começaram com Reagan e atingiram seu auge com Clinton. Naquela época, os índices de criminalidade estavam muito altos. Atirar um garoto na prisão por três a cinco anos por furto numa loja não perturbava a consciência de ninguém - embora devesse. Agora, os índices estão atingindo níveis baixos recordes. As pessoas já não se sentem ameaçadas como se sentiam. Elas estão abertas a mudanças.
Estão abertas também a ver os fatos sociais feios que levaram à explosão da população prisional - 700% em 40 anos. Um desses fatos é que a sociedade não dá a mínima para os pobres e, em especial, para os negros pobres. É mais fácil guardá-los em prisões do que nutri-los e encaminhá-los para universidade e emprego. A sociedade quer sentenças de prisão longas. Caso contrário, ela teria de investir em saúde e educação para os pobres. Por dispendioso que seja manter pessoas presas, é mais barato do que cuidar delas e protegê-las como cidadãs livres.
Agora, porém, a reforma judicial está ganhando fôlego. Quase todo dia o New York Times traz uma matéria sobre comissões de liberdade condicional incompetentes, a falta de programas de reabilitação de drogados em prisões, a crueldade de fianças exageradas para pobres acusados de um crime e à espera de julgamento, o uso excessivo do confinamento solitário, condições prisionais que lembram campos de concentração, pessoas inocentes enviadas à prisão que ali apodrecem por serem pobres demais para ter acesso a um bom advogado ou mesmo a amigos com formação superior que saibam como interceder ou junto a quem interceder. Um jovem negro chamado Kalief Browder foi mandado para a notória prisão de Rikers Island, em Nova York, quando tinha 16 anos por ter roubado uma mochila, embora ele nunca tivesse sido julgado nem condenado pelo delito. Ele passou quase dois daquele anos em confinamento solitário. Finalmente solto no ano passado, tentou começar vida nova, mas seus anos de sofrimento pesaram demais, e ele se matou.
São histórias como a de Browder que estão impulsionando o movimento pela reforma judicial que, curiosamente, tem o apoio tanto de eminentes liberais como de eminentes conservadores. Os liberais querem mais humanidade nos sistemas judicial e penal, e os conservadores veem no encarceramento em massa um desperdício de recursos públicos, além de um exemplo de governo grande muito ambicioso, e governo grande é seu particular bicho-papão.
Por conta dessa cooperação bipartidária, muita coisa foi conseguida. A Cidade de Nova York relaxou recentemente os requisitos de fiança para delitos menores. As populações prisionais foram reduzidas em muitos Estados, incluindo muitos dos chamados “Estados vermelhos” (com inclinações republicanas), onde os sentimentos de lei e ordem são tradicionalmente fortes. Na Califórnia, alguns crimes menores foram rebaixados à condição de contravenções. Há movimentos para limitar o uso do confinamento solitário e para reformar políticas irracionais de concessão de condicional.
O clímax do movimento por reforma judicial foi a visita que o presidente Obama fez à prisão federal El Reno em Oklahoma, há cerca de duas semanas. Foi a primeira vez que um presidente americano visitou uma prisão. Num discurso apaixonado e eloquente - um de seus melhores - Obama denunciou a dureza punitiva do sistema judicial e penal existente (e declarou, referindo-se aos prisioneiros da prisão, “Não fosse pela graça de Deus, seria eu”). Pouco depois, ele instruiu o Departamento de Justiça a rever a prática do confinamento solitário que é, seguramente, o aspecto mais sinistro do sistema penal americano.
Boa parte do ímpeto por trás dessas notáveis mudanças e tentativas de mudança veio do Marshall Project, uma organização sem fins lucrativos dedicada a usar o jornalismo para mudar os sistemas judicial e penal. O Marshall Project - nomeado depois de Thurgood Marshall, o grande magistrado da Suprema Corte americana, que era negro - faz parcerias com várias organizações noticiosas que veiculam matérias expondo a maneira desumana como as pessoas são punidas por violar a lei nos EUA.
Ajuda o fato de o editor-chefe do Marshall Project ser Bill Keller. Keller, que ganhou um Prêmio Pulitzer pela cobertura do colapso do comunismo na União Soviética e cobriu também o desmantelamento do apartheid na África do Sul, é ex-editor executivo do New York Times. Ele deixou um emprego de colunista no jornal para chefiar o Marshall Project. Eu o conheço um pouco e o visitei em seu escritório outro dia desses. Homem requintadamente centrado, com modos corteses, ele é animado também por fortes paixões e convicções. Tem alma de jornalista, uma simpatia instintiva para os desprovidos de poder e uma aversão instintiva pelo poder impositivo e autoritário. Embora possa ser espirituoso e mordaz sobre algumas concessões que dominam o jornalismo hoje em dia, ele fala das metas do Marshall Project com a tenacidade de um repórter. Ele se referiu a um artigo poderoso que o Marshall Project publicou recentemente sobre um homem a quem fora prometida liberdade condicional após 10 anos se ele aceitasse a prisão perpétua, mas que ficou 37 anos preso. Keller disse que o artigo fora selecionado pelo Washington Post, que o estampou na primeira página. Com isso, disse Keller, o homem agora está em liberdade condicional. “É muito gratificante publicar um artigo que muda coisas”, disse ele, os olhos azuis faiscando.
Embora esta seja apenas a aurora do movimento pela reforma judicial, e tudo possa acontecer - editores se cansarem de matérias sobre reforma prisional; a política mudar quando a Casa Branca mudar de mãos; a questão de quem pagará pelas alternativas ao sistema existente desencorajar possíveis apoiadores; a classe média branca não conseguir perceber como seus interesses se cruzam com o destino dos pobres e encarcerados -, o sentimento de gratificação de Keller foi, no atual contexto desse extraordinário movimento social, mais que plenamente justificado.
/ TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK

Ontem é hoje, por GILLES LAPOUGE - O ESTADO DE S. PAULO


O aniversário das grandes batalhas entrelaça o tempo cíclico das estações com o "never more" de nossas vidas


A Europa é um continente que recorda. Adora comemorações, aniversários e celebrações. Todo verão, de julho a setembro, mas também no outono e mesmo no inverno, ela reedita as grandes batalhas que marcaram sua tumultuada história.
Se passarem pela Áustria, poderão assistir à Batalha de Wagram, travada por Napoleão em 1809. Ou então, se chegarem até as Ardenas, verão milhares de soldados americanos, ingleses e alemães recomeçarem sem fim as batalhas de 1944, quando Hitler viveu seu derradeiro furor. A guerra mundial de 1914-18 também é um fantástico catálogo de batalhas, como Verdun, o Marne ou Les Éparges, que costumam ser reeditadas.
Às vezes, remontamos no passado longínquo. Reproduzimos até mesmo a Batalha de Bouvines, na qual, em julho de 1214 (isto é, há mil anos), o rei da França, Felipe Augusto, enfrentou três poderosas monarquias europeias - Otão IV de Brunsvique, o inglês João Sem-Terra e o português Fernando.

Saudades de uma peleja. Europeus encenam a Batalha de Ardenas, que marcou vitória contra os nazistas
Saudades de uma peleja. Europeus encenam a Batalha de Ardenas, que marcou vitória contra os nazistas

Essas batalhas fantasmas, essas batalhas mortas, exumadas do passado, como se exuma uma ossada do paleolítico ou um vaso da antiga Grécia, são executadas com um rigor escrupuloso. Os soldados, milhares, dezenas de milhares de soldados, são voluntários. Eles envergam os uniformes da época com um realismo alucinante, seguram arcabuzes ou fuzis de época. As enfermeiras têm os mesmos uniformes de então. Para as batalhas recentes, são encontrados automóveis de 1916 ou tanques de 1945. Supermercados gigantes de uniformes e de material antigo surgiram principalmente na Bélgica. Um tanque de guerra de 1944 americano ou alemão vale uma fortuna, mesmo se alugado.
Todos os “soldados” conhecem a batalha na ponta dos dedos: passaram o inverno recapitulando a história. O desenrolar do combate foi elaborado por velhos militares eruditos que prefeririam morrer a dar aos seus soldados fuzis de uma outra guerra. Cada gesto é a cópia de um gesto feito há 100, 500, às vezes mil anos. É o realismo! Nada de imaginação, nem de poesia! O embate terá de ser reproduzido - como um falsificador refaz um quadro de Rembrandt ou de Veronese.
Esses simulacros de batalhas inscrevem-se num vasto movimento de ressurreição do tempo perdido. Nostalgia! A Europa e principalmente a França são ávidas de aniversários. Celebram-se sem cessar datas passadas: o nascimento de um rei, sua morte, seu casamento, sua primeira gripe, a invenção do avião, da fotografia, um naufrágio, uma lei, a abertura de um bordel, o desmoronamento de uma igreja.
Neste verão, os organizadores não sabiam como estabelecer uma ordem para tantos aniversários. Era preciso encontrar um espaço para as batalhas de 1945, mas também um lugar para a última batalha de Napoleão, Waterloo, em 1815. Revivemos o momento em que os hussardos de Napoleão surpreenderam o pobre “soldado Ryan”.
Há uma fila de comemorações. Há um verdadeiro congestionamento de memórias. Os anos se misturam, se entrechocam. Cada dia é uma bonequinha russa. Se a abrirmos, encontraremos em seu interior cinco ou seis jornadas antigas. Não se pode arrancar uma folha de calendário sem topar com um domingo antigo, uma segunda-feira desaparecida. A véspera e o amanhã se sobrepõem. Os aniversários dão topadas entre si. A vontade é distribuir senhas, como nas repartições do seguro social. 
O tempo é o combustível comum a todas essas “reproduções de antigas batalhas”, a todos esses aniversários. Há o tempo circular que não morre jamais e retorna a cada ano ou a cada século, e o tempo linear, o tempo da História, que se consome, morre e jamais recomeça.
Algumas festas comemoram o tempo circular, o tempo natural, o tempo sem começo nem fim, um tempo ao mesmo tempo rápido e insubmergível, frágil e no entanto indelével, pois ele retorna no ano ou no século seguinte. É o tempo dos pagãos, mas também o dos filósofos gregos antigos, Parmênides ou Pitágoras, o tempo que percorre o quadrante do relógio e que recomeça a cada doze horas sua ronda eterna. Esse tempo do Eterno Retorno não quer conhecer nada da História, pois o tempo da História, justamente, não retorna jamais.
Ao contrário, outras comemorações, por exemplo as reconstituições de batalhas antigas, consomem o tempo histórico, ou seja, um tempo linear que é o de Heráclito (“Não nos banhamos duas vezes no mesmo rio”). A batalha de Waterloo ou a chegada de Cabral ao Brasil ou o suplício de Tiradentes aconteceram em dado momento e não se reproduzirão jamais. Mas o aniversário, a comemoração ou a reprodução de uma antiga batalha fazem reviver todos os anos acontecimentos que desapareceram irrevogavelmente. Os dois modelos de tempo - o linear e o circular - então se conjugam. Um aniversário realiza esse “tour de force”: ele entrelaça a doce, monótona e repetitiva ciranda das estações com o curso cego e irremediável da História, com o “never more” das nossas vidas.
Embora sejam incompatíveis, os dois modelos de tempo, o histórico e o circular, desempenham a mesma função. Arquimedes traça seus círculos (que procedem do atemporal) na cidade de Siracusa à qual a História acaba de atear fogo.
O caso de Jesus Cristo esclarece essas sutilezas. Jesus é um atleta do aniversário do aniversário, da comemoração. Está à vontade no tempo humano. No entanto, no início, teve dificuldade em penetrar nele. A própria data do seu nascimento é um segredo. Tácito, que é seu contemporâneo, assinala simplesmente que algo aconteceu no reinado de Tibério, lá, ao lado da Judeia, mas não sabe bem o quê.
Mas, em seguida, Jesus está muito à vontade no tempo circular. Jesus adora os aniversários ou, antes, seus fiéis o adoram. Ele se apodera do tempo redondo das estações, dos solstícios, dos equinócios e dos aniversários. Celebra o retorno regular do seu nascimento, de seu suplício, de sua ressurreição, da Páscoa, da ascensão, de seu reencontro com os peregrinos de Emaús. Cada domingo, há 2 mil anos, as igrejas e os templos reproduzem a subida aos céus de sua mãe, suas atribulações com Judas ou a sua crucificação, exatamente como no ano 2015 soldados voluntários reproduzem a Batalha de Wagram, de Waterloo ou das Ardenas. Há dois mil anos, Jesus Cristo diz todas as manhãs, ou todos os anos, a Lázaro: “Levanta-te e anda”.
Assim, à primeira vista, Cristo parece um especialista deste tempo, sempre recomeçado, que é o tempo das antigas civilizações, por exemplo, dos gregos, o de Parmênides ou de Pitágoras.
Mas Cristo é também um enérgico adepto do tempo irreversível, do tempo da História. Por quê? Sua vinda à terra quebrou o tempo antigo. Graças a Jesus, há um começo da história e haverá um fim, o apocalipse, o Juízo Final e o fim do mundo. A irrupção de Jesus, em certo momento do tempo, foi um acontecimento extraordinário que determinou o ano zero e que desenredou o tempo circular das antigas civilizações, substituindo-as pelo tempo mortal e irreversível da História.
Jorge Luis Borges teve a percepção disso: “Aristóteles nos diz que os pitagóricos professavam a crença, o dogma do Eterno Retorno que Nietzsche descobriria tempos mais tarde, ou seja, a ideia do tempo cíclico refutado por Santo Agostinho na Cidade de Deus. Santo Agostinho disse, empregando uma extraordinária metáfora, que a cruz de Cristo nos salvou do terrível labirinto circular dos estoicos”.
A análise de Borges é correta. No entanto, é incompleta. O grande cego de Buenos Aires se esquece de dizer que, se a Igreja de Jesus pôs em movimento o tempo linear, o tempo histórico, permanece igualmente uma grande produtora do tempo circular. É o que testemunham, sobre o tímpano das catedrais, a Roda da Fortuna assim como o retorno anual das mesmas missas, das mesmas cerimônias, Páscoa e Natal, Pentecostes e Todos os Santos, etc. Combinar os dois registros do tempo é o gênio do cristianismo. Teremos de escolher entre esses dois modelos de duração? Certamente, o tempo circular, o Eterno Retorno, tem seu encanto. É tranquilizador. Ele elimina o inesperado, a surpresa ou o desconhecido, e mesmo a morte, mas é monótono, destila um enfado infinito. Quando aprendeu que Nietzsche havia introduzido na filosofia o modelo do Eterno Retorno, Woody Allen se desmanchou em lágrimas e disse ao professor: “Então, terei de rever eternamente Holiday on Ice?”
O aniversário, a reprodução maníaca das antigas batalhas, são o ponto de articulação desses dois filósofos do tempo. Eles asseguram sua sutura. Combinam as figuras incompatíveis. É ali que floresce o seu gênio. Seu estofo é tecido com lãs e sedas de todas as cores. O que lhes confere seus moirés e suas seduções, suas complexidades, seus paradoxos e suas verdades.
O aniversário decorre de dois modelos de tempo. Ele nos ensina que o presente só existe porque morre, e que ele renasce no momento em que acreditamos que morreu, como de resto fez Jesus Cristo. Nas curiosas cerimônias que o aniversário fomenta, a memória e o esquecimento cessam de ser irreconciliáveis.
Todas as coisas, sempre, morrem e entretanto renascem. Cada instante é sem antecedentes e sem posteridade, mas ele jamais se apaga.
O passado, o presente e o futuro se confundem, tornam-se indiscerníveis uns dos outros. Todas as coisas se vão e todas retornam. Hoje pela manhã o sol nasceu há mil anos e se porá em seguida, em cinco milhões de anos, ou seja, há vinte séculos. O tempo é uma trágica linha reta. E é redondo como uma bola.
“Tudo está no presente, entenda isto”, escreve William Faulkner. “Ontem só acabará amanhã e amanhã começou há dez mil anos.” 
/ TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA