Entrevista. Katia Rubio
Para autora da maior pesquisa sobre o Brasil nas Olimpíadas, nada faz sentido enquanto o atleta não for o protagonista
Vitor Hugo Brandalise
25 Julho 2015 | 16h 00
São 38 círculos verdes, alguns grandes como aros de basquete, outros pequenos como bolinhas de tênis de mesa. Impressos em cartazes que tomam a parede de uma sala de reuniões da Escola de Educação Física e Esporte da USP, eles representam as modalidades esportivas das quais o Brasil participou em Olimpíadas. Ao redor deles há milhares de bolinhas bem menores. Cada uma contém, sem exagero, a importância de uma vida. Simbolizam os 1.796 atletas brasileiros que atuaram pelo país em Jogos Olímpicos. Em conjunto, os círculos na parede formam a mais completa pesquisa já realizada no Brasil sobre o assunto.
A responsável pelo trabalho é a professora Katia Rubio, de 52 anos, doutora pela Escola de Educação da USP, com pós-doutorado em psicologia social. Ao longo dos últimos 15 anos, ela e uma equipe de 20 acadêmicos vasculharam arquivos e redes sociais para encontrar todos os atletas brasileiros que participaram de Jogos Olímpicos. Entrevistaram 1.300 (cerca de 340 morreram e alguns preferiram não falar). “Em um caso levei seis anos até que o atleta aceitasse. Muitas vezes é difícil para esse ser poderoso, que levantou estádios, lembrar desses tempos”, conta a professora, cuja pesquisa, que mirava a alma do atleta, atingiu em cheio a sociedade. “O trabalho aponta a raiz do que chamamos de excelência. Por que há pessoas bem-sucedidas nas suas profissões? Porque elas resolveram sair da média, sendo melhores no que fazem. O desdobramento social disso são pessoas que mudam o mundo.”
O resultado da pesquisa, o livro Atletas Olímpicos Brasileiros (Sesi-SP Editora), será lançado em 25 de agosto. “Até aqui, mais de 100 atletas confirmaram presença, vai ser uma festa!”, comemorou Katia. Provocada, ela nem precisou se voltar à parede para apontar quais são as maiores bolas impressas ali. Dois círculos exatamente atrás dela (às quais ela apontou com perceptível desdém) simbolizam a modalidade que mais enviou atletas brasileiros aos Jogos: o futebol masculino. Sua pesquisa serviu para reforçar uma convicção. “Tem de deixar as Olimpíadas. Nesses 15 anos, vi respeito pelo espírito olímpico por parte de atletas de todas as modalidades. Adivinha quais disseram que era uma chatice e que a Vila Olímpica não chegava aos pés dos hoteis? Pouquíssimos jogadores de futebol atribuem significado ao evento. Que abram espaço para outros, então, em vez de ir para lá tirar selfie.”
No domingo em que termina o Pan, Katia colocou o torneio na raia devida. Tem serventia, sim. É esperado pelos atletas, sim. Mas sem ufanismos - o Pan indica o que o nome já diz: a posição em relação a outros atletas das Américas. “Mas por que não seria importante para eles saberem onde estão? Falar mal é fomentar uma discussão de quem tem interesse em desvalorizar o esporte olímpico.”
O que faz com que um garoto ou garota dedique a juventude para tentar virar um herói?
É um desejo que nasce a partir da criação de diferentes referenciais. Se a gente for remontar a genealogia desse desejo, há sempre um atleta anterior. Então, é incrível, porque o Flávio Canto (judoca, medalha de bronze na Olimpíada de Atenas-2004) fala que o gesto do Joaquim Cruz (medalha de ouro nos 800 metros, em Los Angeles-1984) com a bandeira em 84 o fez desejar ser atleta, mesmo que não fosse do atletismo, mas ele queria ter aquele gesto. O Hudson (de Souza, três medalhas de ouro em pan-americanos) também fala do Joaquim Cruz. A figura do atleta é tão enigmática e misteriosa que racionalmente é difícil dizer por que um cara deseja. Mas é uma força maior do que a própria razão.
Por quê?
Porque ele simplesmente quer. Minha pesquisa mostra que esse desejo de querer é a raiz daquilo que a gente chama de excelência. Por que é que você tem pessoas bem-sucedidas nas suas profissões? Porque elas resolveram sair da média, sendo as melhores no que fazem. E veja: essa competição não necessariamente está relacionada com competir contra alguém. Mas é antes de tudo uma competição consigo mesmo. Uma insatisfação eterna com aquilo que já se tem e o desejo de ter mais. Infelizmente, na nossa cultura, isso é tomado como ganância. Como arrogância. Agora, do ponto de vista humano, individual, é excepcional, porque, quando ele fala “eu quero ser o melhor”, o desdobramento social disso são as pessoas que transformam o mundo. E, para o esporte, são pessoas que transformam o esporte. Então, quem são os atletas olímpicos? São aqueles que se inspiraram em alguém, que sonharam em fazer o que alguém já fez, mas que não podiam apenas fazer de novo. Tinham de fazer mais.
O que diferencia um atleta olímpico?
Ele se apoia mais em uma força interior. O atleta que compete contra o outro nem sempre chega lá. Isso de se conhecer é fundamental, porque senão ele vai sempre lutar contra o que está fora dele. E em grande parte dos casos o adversário está dentro do próprio sujeito. É o medo, a insegurança. O Joaquim Cruz me contou que sentia uma ansiedade que ele chamava de dragão. Até identificar esse inimigo ele teve uma úlcera. Anos se passaram até ele domar o dragão e, no dia em que descobriu o problema, as coisas aconteceram. É bonito ver um sujeito que se determina a buscar um objetivo e para isso resolve se olhar no espelho. Ele para de jogar a responsabilidade fora e busca em si e nas suas limitações os elementos para se superar. E aí então o discurso de que falta estrutura deixa de ser prioritário e ele passa a buscar outros elementos.
A responsabilidade é toda do atleta?
Não. Em um sistema neoliberal, isso cairia como uma luva. Mas não me refiro ao “yes you can”, porque esse é um discurso pronto. A gente não pode usar esse desejo maior do sujeito que conseguiu chegar lá mesmo sem condições para encobrir um sistema falho, que alija crianças do esporte. Enquanto o atleta não tiver a atenção do protagonista, nada faz sentido.
Os atletas opinam em decisões no esporte?
Eles são excluídos da maioria das decisões. O esporte se origina na mão dos donos dos meios de produção, e ali fica, com estrutura autoritária. A carta olímpica foi escrita em 1894 e é um dos documentos em que menos se mexeu no século 20. O salto com vara feminino entrou para o programa olímpico em 2000. O boxe feminino entrou em 2012. Porque mulher não devia praticar esporte. Isso já mostra como a estrutura olímpica é monolítica.
Qual a consequência disso?
Uma falta de cuidado e de respeito ao próprio atleta. Se a gente o entende como protagonista, ele deveria estar incluído nas decisões. Assim ele poderá opinar de dentro sobre o que é melhor para o esporte. Da forma como está hoje, a palavra do atleta pouco importa, porque para os dirigentes o que ele tem que fazer é ser o cachorro que corre atrás da lebre. Do ponto de vista do atleta, ele melhoraria a segurança, as condições de treino e da competição. Os dirigentes querem ver o espetáculo gerar dinheiro. E aí pouco importa, por exemplo, se as meninas estão confortáveis em um uniforme. O que o dirigente quer é fazer a menina ser gostosa para vendê-la na TV e ter mais espaço comercial. Não se preocupa com mais nada.
O que sua pesquisa mostra sobre o fim da carreira de um atleta?
Há uma diferença na forma de encarar o esporte por um atleta da fase do amadorismo (antes dos anos 1970) e do profissionalismo. Enquanto você vivia o amadorismo, o atleta sabia que o desejo era aquele, ir à Olimpíada. Quando ele realizava esse desejo, adeus, bye bye. Atletas como Manoel dos Santos (bronze na natação em Roma-1960) e Tetsuo Okamoto (bronze na natação em Helsinque-1952) falaram nas entrevistas que eles poderiam ter ido a outra edição, se quisessem. Mas o desejo estava realizado. Então chega, é hora de estudar e ter uma profissão. Com a passagem para o profissionalismo há um distanciamento da formação necessária para o pós-carreira. O cara está 24 horas envolvido no esporte. Entrevistei um número considerável de atletas deprimidos. Porque o atleta é o único ser humano que morre duas vezes. Primeiro para a carreira, depois para a vida.
Quando acaba a carreira, para onde o atleta vai hoje?
Ele consegue ir até onde se preparou para chegar. Quando deixa o esporte, o atleta fica quase que como num redemoinho. Alguns conseguem sair de dentro dele. O Gustavo Borges (quatro vezes medalhista olímpico) é um exemplo, ele faz da natação a sua vida ainda hoje, mas com uma metodologia própria. Tem uma rede de escolas. E há aqueles que vão parar lá embaixo. E do olho do redemoinho o cara não sai. Cunhei o termo pós-atleta, porque não existe ex-atleta. O atleta carrega dentro de si essa identidade. As marcas dessa condição ficam impressas como cicatrizes, naquele que se dedicou a defender o país durante décadas. Por isso deve ser beneficiado depois de se aposentar. Não existe nada pior para a imagem do esporte do que um pós-atleta olímpico derrotado pela vida.
Qual é uma forma de melhorar a transição?
Seria uma gestão de carreira parecida com uma orientação vocacional. Ele precisa descobrir outras vocações. O ser humano é perito em adaptação. Só que esse cara foi educado na disciplina para só enxergar aquilo e não ver mais nada. É preciso oferecer opções, por meio de políticas públicas. Austrália, Cuba e Suécia são países que têm um projeto de transição para os pós-atletas, considerando o fato de eles serem inspiradores. Para os jovens, é fazê-lo estudar ao longo da carreira.
Dos 1.796 atletas brasileiros, 342 são medalhistas. Qual a importância de contar a história dos que não venceram?
Primeiro, porque eles são a maioria. Você vê o esforço, a dedicação, a determinação e aí vem o adversativo. Eu fiz isso e isso, mas... porém... E, depois, é importante falar da derrota porque ela é a sombra da nossa sociedade. No sistema produtivo que a gente vive, perder é muito mais do que só deixar de ter alguma coisa. O que significa a derrota para a sociedade contemporânea, que não admite a tristeza, a depressão, o silêncio? Não refletimos mais sobre a derrota. Tem que ser comoo livro de autoajuda: você é sempre o responsável pelo que faz. Do ponto de vista do atleta, significa ter de ganhar a qualquer custo. E aí vale a imoralidade no sentido de trapaça e, no extremo, o doping.
A que conclusões você chegou sobre os técnicos brasileiros?
Ficou claro o quanto há técnicos brasileiros despreparados para atuarem com atletas olímpicos. Eles falam: “Você classificou, parabéns! Mas jamais vai superar um americano. Campeão olímpico não vai ser”. É preciso formar os técnicos, pois não são só figuras de autoridade. A criatura tem que superar o criador e essa marca de superação se chama excelência.
Passaram-se 64 anos da participação da primeira mulher brasileira numa Olimpíada à primeira medalha. O que isso indica?
Isso é resultado de uma política que impediu as mulheres de acessar o esporte, no governo Vargas. Entrevistei três atletas não olímpicas da geração de 70 do vôlei, que ainda sentiam o reflexo desse descaso. Para elas, esse projeto não realizado é como um filho que não nasceu. No livro eu conto a história de Aída dos Santos (única mulher da delegação brasileira em Tóquio-1964), que foi sem uniforme para desfilar e para competir. Quando se lesionou na pista, quem a atendeu foi o médico cubano. Até a sapatilha foi emprestada. E ainda assim terminou em quarto lugar, não foi ao pódio por uma unha! Quão importante é divulgar essas trajetórias? São marcas não só desses atletas, mas de nossa história. E encontram eco quando alguém fica sabendo delas. A Aída é mãe da Valeskinha (medalha de ouro no vôlei feminino em Pequim-1998).
O que a superexposição de atletas femininas como musas simboliza para o esporte feminino hoje? Neste Pan muito se falou do que houve com a atleta Ingrid Oliveira.
Estamos aprendendo a lidar com as redes sociais, que amplificam a informação. Mas há outra reflexão. Da mesma forma que foi uma batalha insana para as mulheres conseguirem espaço, quem comanda também se apropriou dessa imagem para manter a posição. A gente deixa as mulheres participarem, mas não queiram ser dirigentes. Aí começou a batalha para assumir esses papéis. Há interesse em desqualificar a mulher e uma das formas de desqualificá-la é usá-la como objeto. A musa, a gostosa dos jogos. E a atleta? Que atleta é essa? Diz respeito à desqualificação do feminino numa sociedade falocêntrica. Não posso admitir que uma mulher pense, seja boa no que faz e ainda seja bonita. Claro, há ainda mais dificuldades por conta de mulheres que assumem esse papel.
Outro episódio foi a continência de atletas militares no pódio. Como analisa esse gesto?
O atleta segue à risca durante anos um tipo de treinamento que foi dado a ele. Ao transpor para a estrutura militar, marcada por rígida hierarquia, na minha opinião, tem a ver com disciplina. Conheço muito atleta que dá serviço no quartel, principalmente da Marinha e do Exército. É quase um reflexo bater continência diante da bandeira. Na entrega de prêmios, esses atletas vão com o uniforme da sua arma. Muitos começaram a praticar esporte no quartel. Então, para mim, é uma falsa discussão. O João do Pulo (bronze em Montreal-1976 e Moscou-1980), e muitos do pentatlo moderno, do tiro, do atletismo. No começo do esporte brasileiro ou o cara era aristocrata ou era militar. Os civis médios não tinham acesso a esporte. Guilherme Paraense, a primeira medalha de ouro olímpica brasileira (em Antuérpia-1920) era tenente, por exemplo.
Um Pan-Americano, para o atleta, é um meio e não um fim?
Para alguns atletas isso é quase tão importante quanto a Olimpíada. Há modalidades que não são olímpicas, como os patins, na qual o Brasil acabou de conquistar quatro medalhas. Como desconsiderar esse torneio? O Pan é importante e indica justo o que a competição diz: a posição desse atleta dentro das Américas. Ponto. É bom para o atleta se posicionar, saber que ele é o melhor de São Paulo, do Brasil, da América do Sul. Ele pode encontrar forças para melhorar. Avaliar se isso é mais ou menos do que outra competição é desmerecer o esforço de quem treina e fomentar uma discussão de quem quer desvalorizar o esporte olímpico.
O Ministério dos Esportes divulgou que espera que o Brasil fique entre os 10 maiores medalhistas na Olimpíada de 2016. Qual sua opinião sobre isso?
Depende do critério. Já estão querendo contar medalha de esporte coletivo como se cada atleta fosse uma medalha. Aí fica fácil. Eu digo que estatística é a arte de torturar o número para que ele prove o que você quer. O Comitê Olímpico Internacional nem reconhece quadros de medalhas. Esses quadros são invenção de jornalistas americanos, em 1952, para alimentar a rivalidade com a URSS. Eu adoraria fazer um quadro de medalhas por IDH. Ou por PIB. Mas, como se pode mudar o critério como o governo bem entender, tem toda chance de ficar entre os dez. Até entre os cinco, por que não?