RARAEL ABUJAMRA, ALUÍSIO ANTONIO MACIEL NETO - O ESTADO DE S.PAULO
28 Novembro 2014 | 02h 03
No dia 29 de outubro a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado Federal aprovou duas propostas de alteração da Lei Antidrogas que causaram extrema preocupação no que concerne ao combate ao tráfico no País. São elas: 1) a criação de critério "quantidade de droga" para distinguir usuário e traficante; e 2) a ampliação da figura do "tráfico privilegiado", permitindo a redução de pena para traficantes com maus antecedentes, reincidentes e integrantes de organizações criminosas, ou flagrados com grandes quantidades de drogas.
Tais propostas seguem a mesma ideologia minimalista que tem influenciado a alteração das leis penais brasileiras nas últimas décadas. Desde o advento da Lei n.º 11.343/06, a política criminal empregada para o combate às drogas segue uma lógica inexplicável, prevendo cada vez mais benefícios para os traficantes.
Principal país latino-americano, o Brasil atingiu o posto de maior mercado consumidor na América do Sul e de dominante rota de tráfico para os demais continentes. Desde 2012 o Brasil já é considerado o maior mercado de crack do mundo e o segundo de cocaína (2.º Levantamento Nacional de Álcool e Drogas, Universidade Federal de São Paulo, 5/9/2012).
De acordo com o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes, o Brasil transformou-se na principal porta de saída de drogas para os demais continentes.
Contrariando o rigor da Constituição federal, uma "onda" liberalista impregnou as leis antidrogas, permitindo que traficantes respondam a processos em liberdade; mesmo quando condenados, recorram sem ser presos; recebam diminuição de suas penas em até dois terços e até substituição de penas privativas de liberdade por "penas alternativas", tais como prestações de serviços à comunidade, etc.
Nesse contexto, a primeira nova proposta pretende definir um critério objetivo de diferenciação entre usuários e traficantes. O projeto de lei presumirá ser usuário o cidadão que portar quantidade de drogas suficiente para consumo individual por cinco dias, baseado em recente pesquisa desenvolvida pela Fiocruz, que estipulou o padrão de uso diário de crack em 16 pedras (80 pedras em cinco dias) nas capitais e 11 pedras (55 pedras em cinco dias) nos demais municípios.
Para quem atua no combate ao tráfico de drogas, é certo que a proposta não trará nenhum efeito positivo para a sociedade honesta e trabalhadora. Isso porque baseada em equivocada filosofia de liberalismo penal, que tem um único objetivo: o esvaziamento do sistema carcerário.
Há tempos traficantes criaram novos "artifícios e estruturas criminais" para escapar da lei. O tráfico invadiu todos os municípios brasileiros e, valendo-se do uso torpe de crianças e adolescentes na linha de frente, seus agentes passaram a manter consigo apenas pequenas quantidades de drogas para venda, ocultando a maior quantidade em variados locais, dificultando assim, cada vez mais, a caracterização do tráfico quando de investigações e prisões policiais.
Ora, se essa é a realidade, será correto criar um limite dentro do qual "os mercadores do mal" poderão exercer sua mercancia ilícita sem serem incomodados? Ainda mais algo em torno de 80 pedras de crack? Será que o legislador sabe quanto valem 80 pedras de crack? Será que imagina que valem entre R$ 400 e R$ 800, ou seja, mais que um salário mínimo? Óbvio que não.
A Lei Antidrogas em vigor já confere os instrumentos para que o Poder Judiciário, com análise de cada caso concreto, possa efetuar a diferenciação necessária entre usuários e traficantes, tornando descabida a proposta de mudança legislativa, pois baseada em critérios presumidos e em questionáveis pesquisas de campo.
A segunda proposta amplia a causa de diminuição de pena - já existente desde 2006, por meio da qual desde que o traficante seja primário, de bons antecedentes e não se dedique às atividades criminosas, nem integre organização criminosa, possa ser beneficiado com redução de até dois terços de sua pena - também para traficantes com maus antecedentes e até mesmo reincidentes e integrantes de organizações criminosas, ou presos com grandes quantidades de drogas, sepultando qualquer atuação efetiva de combate ao narcotráfico. O referido benefício somente provocou o fortalecimento do tráfico de drogas, isso porque os criminosos estão plenamente cientes da brandura penal, que atualmente nem sequer os mantém atrás das grades.
A sociedade precisa saber que as últimas alterações promovidas na legislação penal buscam compensar, com adoção do mais puro liberalismo equivocado, a ineficiência estatal no investimento em infraestrutura, na criação de mais vagas no sistema prisional e no combate à criminalidade. A conta da incompetência estatal é paga por toda a sociedade, muitas vezes com a própria vida de seus cidadãos.
As duas propostas estão na contramão das soluções pretendidas. Agravarão a epidemia de drogas existente e a destruição de diversos lares e famílias brasileiros.
É preciso retomar o combate efetivo ao narcotráfico, com leis e instrumentos que confiram maior repressão à circulação de drogas no seio social, evitando a "escravização criminosa" de milhares de jovens pelos traficantes.
É fundamental o abandono dessa política penal tolerante com o criminoso, antes que ela, no jargão popular, mate o doente por inanição. Ou pior, na hipótese e pelo que se avizinha, por overdose de drogas.
TAMBÉM ASSINAM ESTE ARTIGO FERNANDO HENRIQUE DE MORAES ARAÚJO, LUCIANO GOMES DE QUEIROZ COUTINHO, JOSÉ REINALDO GUIMARÃES CARNEIRO, TOMÁS BUSNARDO RAMADÁN, TIAGO DE TOLEDO RODRIGUES, SILVIO DE CILLO LEITE LOUBEH, MARCUS VINICIUS MONTEIRO DOS SANTOS, CÁSSIO ROBERTO CONSERINO E LUÍS CLÁUDIO DAVANSSO.
TODOS SÃO PROMOTORES DE JUSTIÇA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO