sábado, 24 de maio de 2014

Quando se cai na real, a conversa sobre a Copa é outra


23 de maio de 2014 | 08:55 Autor: Fernando Brito
graficocopa
Com anos de atraso, a Folha publica hoje um levantamento feito pelos repórteres Gustavo Patu, Dimmi Amora e Filipe Coutinho que, como e diz nas conversas informais, “baixa a bola” dos “gastos absurdos com a Copa do Mundo”.
É o que dá ter raros momentos de jornalismo correto na mídia brasileira, porque não é nenhum “furo”, mas apenas a compilação de dados que são e sempre foram públicos.
A começar pela abertura do texto escrito pelos três:
Mesmo mais altos hoje do que o previsto inicialmente, os investimentos para a Copa representam parcela diminuta dos orçamentos públicos.
Alvos frequentes das manifestações de rua, os gastos e os empréstimos do governo federal, dos Estados e das prefeituras com a Copa somam R$ 25,8 bilhões, segundo as previsões oficiais.
O valor equivale a, por exemplo, 9% das despesas públicas anuais em educação, de R$ 280 bilhões.
Em outras palavras, é o suficiente para custear aproximadamente um mês de gastos públicos com a área.
E eles próprios se encarregam de dizer que nem sequer é assim, porque estes gastos diluíram-se pelos últimos sete anos e, sobretudo, porque uma parte ( a maior parcela, 32%) é feita com financiamentos de bancos públicos (quase toda do BNDES) e vai retornar.
Adiante falarei dela.
Bem, do gráfico publicado, conclui-se que o Governo Federal gastou R$ 5,8 bi diretamente com a Copa: R$ 2,7 bi na modernização e ampliação dos aeroportos, R$ 1,9 em segurança pública – quase tudo equipando, a fundo perdido, as polícias estaduais -, R$ 600 mil em portos, R$ 400 mil em telecomunicações  e R$ 200 milhões em gastos diversos.
Aeroportos e portos, além de serem serviços públicos essenciais ao desenvolvimento econômico, geram receitas de tarifas e concessões.
Nenhum tostão, como você vê, em estádios.
Do dinheiro dos estádios, um total de R$ 8 bilhões, perto da metade veio de financiamentos federais, através do BNDES, de duas formas: debêntures e empréstimos.
Debêntures são “letras” financeiras e, no caso do estádio, seus tomadores pagam 6,2%% de juros mais a inflação do período.
No caso dos empréstimos, os tomadores, além de oferecer garantias, têm de pagar  TJLP (taxa de juros de longo prazo), que de 2009 para cá variou entre 6,25% e 5%, mais  1,4% (taxa  BNDES + intermediação financeira), mais risco de crédito (até 4,18%), além da taxa que o o tomador pagará a o banco operar o crédito. No total, portanto, pagam juros muito semelhantes (em geral um pouco maiores, em alguns momentos frações de centésimo menores) que a taxa de juros com que o Governo capta dinheiro no mercado.
Isso quer dizer que não houve empréstimo subsidiado pelo Governo Federal?
Sim, houve,  maiores. E continuam existindo, independente de Copa.
São os recursos para obras de mobilidade urbana que, só nos empreendimentos ligados à Copa, receberam  R$ 4,4 bilhões.
Como é isso: o BNDES financia contrando TJLP + 2% no caso de o empréstimo ser tomado por Estados e Municípios ou por TJLP + 1% + risco de crédito de até 4,18% no caso do financiamento ser feito por empresa privada.
Convenhamos que  é uma forma muito mais adequada de o banco usar seus recursos em favor da população do que, como fez em 2002, aplicar R$ 281 milhões (R$ 1 bilhão, hoje, corrigidos pela taxa Selic) na Net, então propriedade dos Marinho (a família mais rica do Brasil), que estava enforcada de dívidas.
No caso dos Estados e Municípios, a grande maioria, boa parte dos gastos vem  das contrapartidas locais para obras de mobilidade (R$ 2,4 bi, ou 41%) e os restantes R$ 3,3 bilhões em gastos diretamente com obras dos estádios e com as do seu entorno (ruas, praças, pátios, passarelas).
Os números insuspeitos publicados pela Folha vêm na mesma linha daquilo que ontem se comentou aqui.
Tirando os gastos imprevistos de três governos estaduais (Sérgio Cabral , com o Maracanã, Agnelo Queiroz, com o Mané Garrinha e Aécio Neves-Anastasia como Mineirão, que começou as obras ainda na gestão do atual candidato do PSDB à Presidência), os outros dois estádios que custaram muito mais do que o inicialmente previsto, o Beira-Rio e o Itaquerão, foram  tocados pela iniciativa privada.
Há uma hidrofobia de direita implantada na mídia e em parte da classe média que eclipsa qualquer capacidade de exame racional dos fatos.
Se eu fosse um obtuso irracional, que não reconhecesse o direito de uma categoria profissional essencialíssima , como a dos professores, poderia dizer que se gastou muito mais que aquele “um mês”  de Educação que a Copa custou com as greves e paralisações (em geral, justas) do magistério.
E isso seria uma apelação, porque eu estaria colocando nos direitos dos professores a “culpa” das nossas históricas carências no setor.
Colocar na Copa a “culpa” pelos problemas da educação, da saúde, da assistência social, da habitação é, igualmente, uma estupidez.
Que só tem um fundamento, embora a maioria dos que fazem isso não o percebam: as eleições.

Não se procura emprego


23 de maio de 2014 | 2h 49

Celso Ming - O Estado de S.Paulo
O desemprego no Brasil alcançou em abril apenas 49 em cada mil trabalhadores, nível mais baixo em meses de abril desde 2002, quando começou a medição com a metodologia hoje adotada.
Já seria um dado intrigante, apenas se contraposto ao avanço econômico medíocre dos últimos quatro anos, à baixa disposição da indústria em contratar pessoal e à diluição do poder aquisitivo pela inflação.
Mas é ainda mais intrigante na medida em que esse recorde está sendo atingido não porque tenham aumentado os postos de trabalho no País, mas porque cada vez menos brasileiros se dispõem a procurar emprego.
Não falta quem diga, como o presidente da Fifa, Joseph Blatter, disse dia 16, que brasileiro não quer trabalhar. Como ninguém vive de vento e como essa queda do índice de ocupação é relativamente recente - porque quase sempre o desemprego foi mais alto do que é hoje - é preciso explicação.
Muito já foi dito sobre a necessidade de mais instrução e de mais treinamento prévio, exigências que vêm adiando a entrada dos jovens no mercado de trabalho. (Também segue sendo repisado que cada vez mais aposentados têm de continuar trabalhando porque os proventos da Previdência são insuficientes.)
Por outro lado, é notório o aumento de renda da população, graças em parte aos programas distributivos do governo. E, ainda, estão aí as conclusões das pesquisas de que, nos últimos 15 anos, pelo menos 30 milhões de brasileiros chegaram a segmentos mais altos de consumo.
Outra parte das explicações parece relacionada ao mais forte crescimento do segmento de serviços. Este não é apenas o setor que mais oferece empregos no Brasil, mas, também, o que mais proporciona remunerações extras por pequenas atividades, muitas vezes a quem já tem ocupação fixa. É a empregada doméstica que aceita serviços de faxina; é o eletricista que trabalha "por conta própria"; é o guardador de carros que ganha mais com o que faz do que se tivesse um emprego numa firma, onde o salário está sujeito a descontos de lei, além das despesas com transporte que, de resto, consome horas por dia, em trens ou ônibus cujos níveis de conforto conhecemos.
Por aí se vê, também, que, na percepção do brasileiro comum, ter um emprego firme nem sempre compensa. É também o que se pode chamar de "precarização do trabalho". Alguns analistas chamam a atenção para o tal fator de desalento, que leva o trabalhador a desistir de procurar emprego. Nenhum desses fatores isolados explica tudo. É na combinação entre eles que se pode procurar a explicação por esse fenômeno relativamente novo na economia.
Até agora, a queda ou a manutenção do desemprego em níveis tão baixos deixaram estressado o mercado de mão de obra e concorreram para elevar os custos do fator trabalho. Mas já é acentuada a desaceleração da atividade econômica, a ponto de atingir em cheio até mesmo o setor de serviços. É uma pulsação bem mais fraca que pode voltar a acelerar os índices de desemprego.

terça-feira, 20 de maio de 2014

Por que não a Justiça? (pauta Nalini)

20 de maio de 2014 | 2h 06

José Renato Nalini* - O Estado de S.Paulo
Este, que é o grande jornal brasileiro, promoveu uma série de entrevistas com economistas para que encarassem os desafios do próximo governo. Autoridades consagradas e respeitadas ofereceram suas receitas para o generalizado mal-estar que contamina todos os setores da vida nacional. Entre as propostas de imprescindível reforma figuram a tributária, a da Previdência e a trabalhista, além da reforma política, sem a qual as anteriores não prosperarão. Ninguém, todavia, se deteve sobre uma reforma que, em profundidade e consistência, ainda não se fez: a reforma da Justiça brasileira.
Será que não tem impacto econômico o funcionamento de um sistema de Justiça que produziu quase 100 milhões de processos, atravancando todos os juízos e tribunais da República? Será que desapareceu o "custo Brasil" da Justiça a, primeiro, amedrontar e, depois, afugentar o investimento externo?
Ainda estes dias recebi uma comitiva de magistrados da China. Depois de esclarecerem que o Brasil não precisa temer seu país, cuja tradição histórica é pacifista, quiseram saber alguma coisa do funcionamento da máquina judiciária. Disseram que o Brasil convida o empresário chinês a investir no Brasil. Mas, depois que ele chega aqui e se surpreende com a burocracia, fica perplexo com a facilidade com que se discutem no Judiciário questões que já foram acordadas nos contratos. Mas a maior surpresa é a de que um juiz suspende o cumprimento da avença e o outro libera. Na segunda instância, um tribunal mantém a decisão do primeiro juiz, mas outro colegiado a substitui pela decisão do segundo. E assim vão, de um polo a outro, até vencerem as quatro instâncias e as dezenas de possibilidades recursais de reapreciação do mesmo tema. Culminaram por indagar: "Mas a lei não é a mesma?".
Como explicar aos chineses que nossa Constituição é dirigente e principiológica, abriga valores antagônicos, cuja conciliação só é possível se adotarmos estratégias denominadas otimização, ponderação, racionalidade, proporcionalidade e outros instrumentos do neoconstitucionalismo? Eles são sedutores exercícios de sofisticada elaboração doutrinária, a redundar em eloquentes posturas jurisprudenciais. Mas justificam a validade de todo e qualquer ato decisório, desde que bem fundamentado. Será que os chineses conseguem absorver a complexidade de um Brasil que se converteu no território livre da hermenêutica?
Penso haver lugar para refletir sobre a excessiva judicialização, que priva a sociedade de capacidade de dialogar e de ser protagonista de seus próprios interesses, em lugar de se conformar com a posição de objeto da vontade do Estado-juiz. Também seria interessante questionar o sistema normativo, prolífico e complicado, insuscetível de uma consolidação, pois o Brasil não tem condições de definir o que está vigendo ou não. Há pouco tempo deixamos de concluir todo ato normativo em sentido estrito com a expressão "revogam-se as disposições em contrário", sem especificar quais seriam tais dispositivos.
Será que o processo, concebido como instrumento de realização do justo concreto, não se tornou preponderante em nosso sistema? Quem é que poderia calcular a porcentagem de decisões, em todos os níveis e em todos os ramos da Justiça, que terminam apenas processualmente, deixando intacto ou ainda mais agravado o conflito originador da demanda? Os sociólogos e antropólogos poderiam explicar se há razão de ser para que, em Estados-Nação mais adiantados, o ofendido lance um repto ao ofensor dizendo "vou levá-lo à Justiça" ou "vamos nos encontrar no tribunal", enquanto no Brasil é o infrator que diz ao lesado "vá procurar seus direitos!"?.
Como explicar que alternativas tais quais os juizados especiais, cujos parâmetros são a oralidade, a singeleza, a preferência pela conciliação e a rapidez, sejam contaminadas pelo único defeito consensual da Justiça convencional, ou seja, a sua invencível lentidão? Qual seria a razão pela qual se oferece uma resistência clara ou disfarçada a soluções informais, como a conciliação, a mediação, a negociação, a transação e tantas outras, como se a única opção para quem se sente injustiçado fosse o burocratizado, complicado e demorado processo judicial?
É racional que os processos findos devam ser conservados por tempo além do razoável ou por toda a eternidade, com isso onerando um orçamento já sacrificado pela crônica insuficiência de recursos financeiros, desviando verbas preciosas para armazenar papel velho? Qual o argumento que superaria a inafastável constatação de que os seres humanos são destinados a voltarem ao pó e que, sob essa concepção, o papel é mais importante, porque terá duração infinita? Existe explicação convincente para a preservação de modelo judicial que distribui milhares - ou mesmo milhões - de ações praticamente idênticas, entre centenas de julgadores de igual nível hierárquico, e que não haja consenso entre eles, para que o interessado não seja surpreendido por essa álea hoje existente? A depender da distribuição, o resultado será um. Se intervier a sorte, a resposta será outra e em sentido contrário.
Resiste a uma plausibilidade em termos de eficiência admitir longos ou mesmo intermináveis conflitos de competência, ou seja, discussões sobre qual Justiça ou qual julgador de um mesmo tribunal é o "competente" para decidir, se o que interessa à parte é somente uma resposta à sua pretensão? Um observador isento e provido de sensatez encontrará muitas outras questões a serem analisadas no funcionamento da Justiça brasileira. Todas elas talvez suscetíveis de merecerem tratamento mais adequado. Justiça é serviço estatal, sustentado pelo povo, para resolver seus problemas. Não precisa ser mais complicado do que isso.
Seria recomendável que O Estado de S. Paulo, sempre pioneiro no enfrentamento das grandes questões nacionais, também se interessasse pela inadiável profunda reforma estrutural da Justiça brasileira. Dela adviria um salto qualitativo para a própria saúde da República.
*José Renato Nalini é presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo.