20 de maio de 2014 | 2h 06
José Renato Nalini* - O Estado de S.Paulo
Este, que é o grande jornal brasileiro, promoveu uma série de entrevistas com economistas para que encarassem os desafios do próximo governo. Autoridades consagradas e respeitadas ofereceram suas receitas para o generalizado mal-estar que contamina todos os setores da vida nacional. Entre as propostas de imprescindível reforma figuram a tributária, a da Previdência e a trabalhista, além da reforma política, sem a qual as anteriores não prosperarão. Ninguém, todavia, se deteve sobre uma reforma que, em profundidade e consistência, ainda não se fez: a reforma da Justiça brasileira.
Será que não tem impacto econômico o funcionamento de um sistema de Justiça que produziu quase 100 milhões de processos, atravancando todos os juízos e tribunais da República? Será que desapareceu o "custo Brasil" da Justiça a, primeiro, amedrontar e, depois, afugentar o investimento externo?
Ainda estes dias recebi uma comitiva de magistrados da China. Depois de esclarecerem que o Brasil não precisa temer seu país, cuja tradição histórica é pacifista, quiseram saber alguma coisa do funcionamento da máquina judiciária. Disseram que o Brasil convida o empresário chinês a investir no Brasil. Mas, depois que ele chega aqui e se surpreende com a burocracia, fica perplexo com a facilidade com que se discutem no Judiciário questões que já foram acordadas nos contratos. Mas a maior surpresa é a de que um juiz suspende o cumprimento da avença e o outro libera. Na segunda instância, um tribunal mantém a decisão do primeiro juiz, mas outro colegiado a substitui pela decisão do segundo. E assim vão, de um polo a outro, até vencerem as quatro instâncias e as dezenas de possibilidades recursais de reapreciação do mesmo tema. Culminaram por indagar: "Mas a lei não é a mesma?".
Como explicar aos chineses que nossa Constituição é dirigente e principiológica, abriga valores antagônicos, cuja conciliação só é possível se adotarmos estratégias denominadas otimização, ponderação, racionalidade, proporcionalidade e outros instrumentos do neoconstitucionalismo? Eles são sedutores exercícios de sofisticada elaboração doutrinária, a redundar em eloquentes posturas jurisprudenciais. Mas justificam a validade de todo e qualquer ato decisório, desde que bem fundamentado. Será que os chineses conseguem absorver a complexidade de um Brasil que se converteu no território livre da hermenêutica?
Penso haver lugar para refletir sobre a excessiva judicialização, que priva a sociedade de capacidade de dialogar e de ser protagonista de seus próprios interesses, em lugar de se conformar com a posição de objeto da vontade do Estado-juiz. Também seria interessante questionar o sistema normativo, prolífico e complicado, insuscetível de uma consolidação, pois o Brasil não tem condições de definir o que está vigendo ou não. Há pouco tempo deixamos de concluir todo ato normativo em sentido estrito com a expressão "revogam-se as disposições em contrário", sem especificar quais seriam tais dispositivos.
Será que o processo, concebido como instrumento de realização do justo concreto, não se tornou preponderante em nosso sistema? Quem é que poderia calcular a porcentagem de decisões, em todos os níveis e em todos os ramos da Justiça, que terminam apenas processualmente, deixando intacto ou ainda mais agravado o conflito originador da demanda? Os sociólogos e antropólogos poderiam explicar se há razão de ser para que, em Estados-Nação mais adiantados, o ofendido lance um repto ao ofensor dizendo "vou levá-lo à Justiça" ou "vamos nos encontrar no tribunal", enquanto no Brasil é o infrator que diz ao lesado "vá procurar seus direitos!"?.
Como explicar que alternativas tais quais os juizados especiais, cujos parâmetros são a oralidade, a singeleza, a preferência pela conciliação e a rapidez, sejam contaminadas pelo único defeito consensual da Justiça convencional, ou seja, a sua invencível lentidão? Qual seria a razão pela qual se oferece uma resistência clara ou disfarçada a soluções informais, como a conciliação, a mediação, a negociação, a transação e tantas outras, como se a única opção para quem se sente injustiçado fosse o burocratizado, complicado e demorado processo judicial?
É racional que os processos findos devam ser conservados por tempo além do razoável ou por toda a eternidade, com isso onerando um orçamento já sacrificado pela crônica insuficiência de recursos financeiros, desviando verbas preciosas para armazenar papel velho? Qual o argumento que superaria a inafastável constatação de que os seres humanos são destinados a voltarem ao pó e que, sob essa concepção, o papel é mais importante, porque terá duração infinita? Existe explicação convincente para a preservação de modelo judicial que distribui milhares - ou mesmo milhões - de ações praticamente idênticas, entre centenas de julgadores de igual nível hierárquico, e que não haja consenso entre eles, para que o interessado não seja surpreendido por essa álea hoje existente? A depender da distribuição, o resultado será um. Se intervier a sorte, a resposta será outra e em sentido contrário.
Resiste a uma plausibilidade em termos de eficiência admitir longos ou mesmo intermináveis conflitos de competência, ou seja, discussões sobre qual Justiça ou qual julgador de um mesmo tribunal é o "competente" para decidir, se o que interessa à parte é somente uma resposta à sua pretensão? Um observador isento e provido de sensatez encontrará muitas outras questões a serem analisadas no funcionamento da Justiça brasileira. Todas elas talvez suscetíveis de merecerem tratamento mais adequado. Justiça é serviço estatal, sustentado pelo povo, para resolver seus problemas. Não precisa ser mais complicado do que isso.
Seria recomendável que O Estado de S. Paulo, sempre pioneiro no enfrentamento das grandes questões nacionais, também se interessasse pela inadiável profunda reforma estrutural da Justiça brasileira. Dela adviria um salto qualitativo para a própria saúde da República.
*José Renato Nalini é presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário