18 de maio de 2014 | 2h 10
Flávia Scabin
contaminação de ex-trabalhadores expostos a substâncias tóxicas na fábrica do grupo, em Cosmópolis (SP). A empresa disse que vai recorrer.
Tem sido cada vez mais recorrente a condenação de empresas pelo Judiciário por práticas de violações sistemáticas de direitos, especialmente em relação aos impactos provocados por grandes empreendimentos que afetam as comunidades locais e a casos envolvendo a presença de trabalho escravo nas diferentes cadeias produtivas.
A condenação pela Justiça do Trabalho de Paulínia das empresas Eli Lilly do Brasil e Antibiótico do Brasil há duas semanas é mais um exemplo que deve ser compreendido nesse contexto. Nesse caso, as empresas foram condenadas a pagar integralmente o tratamento de todos os trabalhadores que passaram pelo menos 6 meses na fábrica do grupo em Cosmópolis (região de Campinas), e também de seus filhos, pela exposição a substâncias tóxicas depositadas indevidamente em seu terreno, ao que se estimou o valor de R$ 1 bilhão em indenizações.
Tanto nesse caso quanto na mais recente decisão tomada pela Justiça do Trabalho de São Paulo contra a Zara, que responsabilizou a empresa por violações em toda a sua cadeia de produção, há muito mais em jogo do que as relações trabalhistas podem indicar, considerando as dimensões e o número de pessoas envolvidas. Essas decisões trazem a discussão da responsabilização das empresas para o campo dos Direitos Humanos.
De fato, a aprovação pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, em junho de 2011, dos Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos e a sua adoção por 193 países, incluído o Brasil, já foi um sinal relevante de que os Estados, a quem exclusivamente se reputava violações a direitos humanos, podem não ser mais considerados os únicos vilões.
Essas decisões, aqui consideradas em conjunto, têm em comum o desafio de lidar com casos de violações sistemáticas de direitos, seja porque envolvem toda uma cadeia de produção, como foi o caso da Zara, seja pela extensão dos seus efeitos no espaço e no tempo, como costuma ocorrer em casos de contaminação ambiental, a exemplo da Eli Lilly.
Nesses casos, persiste um padrão de desafios para a supressão de violações que incluem desde a dificuldade para a identificação e responsabilização dos que causam violações até a dificuldade na produção de provas - porque nem sempre é tão simples correlacionar uma doença depois de passados anos da exposição à substância tóxica, como também não é simples associar a extinção de um sítio de pesca de comunidade indígena a uma grande empreendimento sendo construído ali próximo.
O caso da Eli Lilly não foi diferente. Nos autos do processo, se reconhece diversas vezes a dificuldade de se apurar a relação entre a presença dos contaminantes no subsolo e lençol freático do terreno e os casos de diabete, confusão mental, ansiedade, entre outros, que acometem os trabalhadores do local. Na sentença, inclusive, menciona-se que o processo chegou a ser suspenso algumas vezes "em razão da dificuldade de se identificar perito capaz de auxiliar o Juízo", o que denota que a Justiça brasileira não está preparada para lidar com essa complexidade.
Apesar disso, considerando a capacidade de suprir violações, a decisão dada pela Justiça de Paulínia pode ser compreendida como um importante precedente. Desde 2008, foram diversas ações individuais propostas e julgadas relativamente à mesma contaminação em Cosmópolis até que a ação coletiva proposta pelo Ministério Público do Trabalho fosse analisada pela Justiça do Trabalho de Paulínia. Mesmo havendo, em parte desses casos, a condenação da empresa à indenização pelos danos causados a determinado trabalhador, isso não afetou a rotina de outros tantos trabalhadores desenvolvendo suas atividades no mesmo local. Tomando esse fato em consideração e a capacidade da empresa de conhecer os efeitos da contaminação ambiental, a Justiça do Trabalho de Paulínia estendeu os efeitos de obrigar o pagamento de tratamento de saúde integral para qualquer trabalhador que, em qualquer condição, tivesse passado seis meses no terreno, ainda que a esse tivesse sido negado o direito a indenização em processo individual. Isso, além de obrigar a empresa a suspender as operações nos locais do terreno que viessem, com o apoio do Ministério Público do Trabalho, ser demarcados como impróprios para o trabalho.
No caso da Zara, apesar de a condição de trabalho análogo à escravidão ter sido verificada em empresa terceirizada, pesou ao juiz da 3ª Vara do Trabalho de São Paulo "a tamanha desproporção no poderio econômico entre fornecedora e compradora", o que o fez concluir que essa não poderia ter "controles tão frouxos da conduta de seus fornecedores".
Como afirma Charles Sabel, os tribunais desempenham um papel importante quando removem organizações da sua zona de conforto. Neste sentido, as decisões judiciais podem provocar mudanças mesmo para atores que não estão diretamente envolvidos no caso em julgamento, seja porque os impacta indiretamente ou porque projeta um efeito simbólico que influencia e muda a direção de decisões futuras.
Com casos como esse, o Judiciário sinaliza para as empresas de que é preciso se reorganizar no sentido da adoção de ações preventivas que estão, inclusive, um pouco além dos seus próprios muros, e de que as suas análises de risco dos negócios já não podem mais ser feitas sem consideração a todo um contexto de intervenção e de sua esfera de influência.
FLÁVIA SCABIN É PROFESSORA, PESQUISADORA DO GRUPO DE DIREITOS HUMANOS, EMPRESAS DA ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO , DA FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS