Ivan Marsiglia - O Estado de S. Paulo
Vivida como paradoxo no mundo contemporâneo, a violência afeta nossa sensibilidade nos gestos mais banais do cotidiano, ao mesmo tempo que é ignorada em sua dimensão mais profunda e estrutural. Esse é o ponto central da argumentação do filósofo esloveno Slavoj Žižek em um livro que sai esta semana no Brasil.
Violência: Seis Reflexões Laterais (Boitempo Editorial) chega às livrarias no contexto favorável - e trágico - do linchamento da dona de casa Fabiane Maria de Jesus, de 33 anos, no Guarujá, após uma notícia falsa de crime nas redes sociais. Para o pensador que trafega entre o marxismo e a psicanálise, velho conhecido do público brasileiro, as irrupções de violência cada vez mais frequentes no mundo causam tanta perplexidade por seu aparente descolamento de uma realidade social "invisível" e ultraviolenta. "Por que só vemos a violência quando algo muda? E ela é invisível no que permanece?", pergunta Žižek na entrevista a seguir, concedida por telefone ao Aliás.
Na conversa, diante dos impasses de um mundo acelerado pela globalização e a revolução digital, o professor da Universidade de Liubliana prefere, como diz, levantar questões a esgrimir "velhas teorias totalizantes, sejam marxistas ou liberais". Para ele, é tempo de pensar e não de agir: "Antes de uma teoria sobre o que devemos fazer, precisamos de uma teoria que explique o que diabos está acontecendo".
Por que o tema da violência o interessou?
Eu vejo um paradoxo nos dias de hoje. De um lado, as pessoas têm se tornado, ao menos nos países desenvolvidos, cada vez mais sensíveis à violência. Não apenas em relação à sua manifestação física e direta, mas a qualquer comentário agressivo, gozação com alguém ou piada de conteúdo sexual considerado "sujo" - quase tudo hoje é "experienciado" como violência. Entretanto, para além dessa sensibilidade contemporânea que vê violência em tudo, há na vida real talvez mais violência do que nunca - só que de um tipo pouco percebido. Eu me refiro à violência simbólica a que, por exemplo, seja nos Estados Unidos, na Europa ou no Brasil, são submetidas as comunidades indígenas. Autoridades e mesmo cidadãos bem intencionados podem se referir a esses povos de maneira até respeitosa, ou manifestar suas preocupações sobre as condições de vida das crianças nativas. Só que o fazem de maneira paternalista, que nega a autonomia dessas pessoas. Trata-se de um tipo de violência invisível para a maior parte de nós.
Seu livro faz uma distinção entre a ‘violência subjetiva’ da criminalidade, dos homens-bomba, do terrorismo, e a ‘violência sistêmica ou objetiva’, das condições socio-econômicas. De que maneira uma se liga à outra?
Não digo que a violência sistêmica justifique a violência subjetiva. Nem acho que se alguém é vítima de algum tipo de colapso econômico pode sair por aí matando pessoas no escritório. Todos desejamos a paz, é óbvio. Porém, um fato que não podemos esquecer é que são os vencedores, os detentores do poder, por definição os maiores interessados na "paz". Para eles, essa palavra significa: "Mantemos nosso poder". Nesse sentido, é claro que Israel está sinceramente interessado em paz na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Mas um tipo de paz em que, em 30 ou 40 anos, não haja mais palestinos na região, totalmente assimilados por uma maioria israelense. Este é o problema para mim: "anseios de paz" onde o que existe, de fato, é violência. Claro que sou contra o terrorismo palestino que mata mulheres e crianças israelenses. Mas é preciso ter em mente que, ainda que nenhum protesto ou atentado terrorista ocorra na Faixa de Gaza, uma violência diária prossegue ali. Por que só vemos a violência quando algo muda? E ela é invisível no que permanece?
O Brasil vive um momento ambíguo. Estabilizou sua economia e avançou nos programas sociais, mas há tensão social e a violência não para de crescer. O que está havendo?
Esse é o paradoxo. Não tenho uma resposta completa para isso pois cada País tem suas peculiaridades históricas, mas um erro muito comum é pensar que a violência social emerge quando a situação está muito ruim e o sofrimento de não se poder mais viver vira revolta. Não é assim. Se você olhar para a maioria das rebeliões e revoltas pelo mundo elas ocorrem quando a situação está ficando melhor. São mudanças graduais que em dado momento explodem em esperanças de transformação e posteriormente terminam em expectativas frustradas. Foi assim na Revolução Francesa, no maoísmo chinês ou na Praça Tahrir. Não acho que a vida sob Mubarak no Egito era pior do que antes dele, e por isso explodiu a primavera árabe. Provavelmente para muita gente a vida tinha até melhorado, pois o regime de Mubarak teve relativo sucesso. É uma verdade simples e cruel: revoltas surgem quando a situação melhora, despertando novas expectativas populares. É por isso que não se deve esperar que ocorra nenhuma rebelião tão cedo na Coreia do Norte (risos). Talvez algo semelhante esteja em curso no Brasil, com protestos e reivindicações crescentes nas mesmas favelas que tiveram significativa melhoria nas condições de vida durante o governo Lula - ainda que tal "progresso" tenha sido contraditório.
O sr. menciona também a contradição de países com ‘enorme degradação ecológica e muita miséria humana’ que, apesar disso, figuram nos relatórios do Banco Mundial ou do FMI como ‘financeiramente sólidos’...
É incrível como para esses organismos a realidade não conta, o que conta é a situação do capital. Foi dessa maneira que se tratou a crise da Grécia. Veja como, apesar do avanço da globalização econômica, crescem os fundamentalismos mundo afora. O Irã, até alguns anos atrás, era considerado um modelo de sucesso na implementação de reformas liberais... Nos anos 50 e 60, os países árabes eram mais seculares do que são hoje. Até na Noruega, com todo o aparato de bem-estar social, vemos o racismo e o discurso do ódio crescerem. Há uma violência latente, e eu não acho que as esquerdas no mundo estejam preparadas para lidar com ela. O Ocuppy Wall Street gerou tanto entusiasmo, mas o que resultou de fato do movimento? Sou bastante pessimista nesse sentido.
As manifestações de rua no Brasil também perderam fôlego. Para alguns, por causa da repressão policial. Para outros, foi a violência dos black blocs que afastou as pessoas das ruas. É outro exemplo de disputa ideológica em torno da violência?
Evidentemente. E essa discussão serve para encobrir o que realmente interessa, que é, em primeiro lugar, entender por que os protestos emergiram no Brasil. E, em segundo, por que todas as tentativas de canalizar a energia mobilizada nas ruas em políticas e programas concretos fracassou. Esse é o grande problema, e não estou muito otimista em relação a ele. Vemos explosões de violência em toda a parte, como se algo diferente estivesse por emergir, mas sem que nenhuma delas resulte em uma perspectiva nova de futuro. Não quero soar como um marxista fora de moda, mas até Hollywood percebeu essa tendência perigosa, em filmes como Jogos Vorazes (2012, dirigido por Gary Ross) ou Elysium (2013, de Neill Blomkamp, com Matt Damos e Wagner Moura no elenco), nos quais o mundo do futuro é uma sociedade de classes extremamente violenta.
O economista francês Thomas Pikkety causou grande impacto com o livro O Capital no Século XXI, que mostra um processo de concentração crescente da riqueza no mundo, com consequências nefastas para o capitalismo. A desigualdade explica a violência?
Hoje, todos sabemos que a desigualdade está explodindo no mundo. Obviamente que muita gente considera isso aceitável, já que o que é ou não aceitável não pode ser objetivamente mensurado. Ele é determinado pelas convicções ideológicas de cada um. E aqui acho, de novo, que as esquerdas foram as grandes derrotadas. Mesmo os que fizeram esforços positivos para promover diretamente algum tipo de redução das desigualdades, como (Hugo) Chávez na Venezuela, conseguiram certo sucesso no início - incluindo no processo político pessoas que de nenhuma forma participavam dele. Lula também fez isso a sua maneira, o que é muito importante. Mas Chávez não pôde inventar um novo sistema socioeconômico. Organizou cooperativas, fez reformas aqui e ali, mas no longo prazo a coisa não funcionou.
O sr. também critica iniciativas de cunho liberal como a filantropia ou a ‘responsabilidade social’ das empresas. Chega a dizer que esses são os principais inimigos do movimento progressista. Não é um exagero?
Claro que coloco esse ponto de maneira provocativa. É evidente que é melhor que Bill Gates gaste parte de seus bilhões no tratamento de doenças na África do que não fazer nada. O que quero dizer é que não acho que, globalmente, essa seja a solução. A desigualdade cresce cada vez mais e os ricos tentam manter a situação sob controle dando uma parte do que ganham para os desfavorecidos? No fundo, essa é uma maneira de reproduzir a situação que gerou essa desigualdade brutal. Também não digo que devamos abolir o sistema capitalista mundial. O que estou dizendo - e, nesse sentido, sou um comunista - é que os problemas do mundo hoje são "problemas dos comuns". O que todos compartilhamos não pode ser privatizado. A ecologia é um problema desse tipo pois a natureza é nosso meio comum - e a crise ecológica só pode ser resolvida por meio de regulações globais, acima dos interesses dos Estados nacionais. Questões de fundo sobre manipulações biogenéticas também. Ou da propriedade intelectual de interesse público. Uma empresa privada não pode decidir isoladamente sobre tais temas. É impressionante como, até hoje, neoconservadores americanos insistem na tecla de que a crise financeira de 2008 foi o resultado do excesso de gastos públicos dos países. Não foi! Ela aconteceu precisamente por causa da desregulação do capitalismo internacional. Ou seja, estamos lidando com um nível de problemas que o "mercado" ou sistema liberal capitalista não terá condições de resolver sozinho. E o pior é ver que, cada vez mais, países combinam sistemas capitalistas extremamente bem-sucedidos com estruturas políticas autoritários. China, Singapura, mesmo a Coreia do Sul. A democracia hoje está ameaçada por esse novo fórum de capitalismo autoritário.
O sr. também não se diz muito otimista em relação ao que chama de ‘cyberdemocracia’. Não vê potencial emancipatório na internet?
Eu vejo, e é por isso que respeito gente como Julian Assange e Edward Snowden. Respeito, mas não idealizo. Já ficou clara a dupla mão que a internet representa: de um lado, maior poder de organização e atuação dos indivíduos; de outro, o controle desses mesmos indivíduos por parte de governos e corporações. Eis a lição triste que Snowden nos deu: mesmo nas democracias liberais em que você se sente subjetivamente livre ainda assim está sujeito à possibilidade de controle absoluto.
Diante desses impasses, o sr. diz no livro que, ‘às vezes, não fazer nada é a melhor coisa a se fazer’. Por causa disso, o professor da New School for Social Reserch de Nova York, Simon Critchley, o chamou de ‘Hamlet esloveno’, paralisado pela dúvida sobre cometer ou não um ato violento que modifique a realidade. O que achou da crítica?
Eu nunca disse que nós não deveríamos fazer nada. E sempre que tenho a chance de agir, me engajo. O que disse foi outra coisa, mais simples, até senso comum. Há coisas pragmáticas que podemos fazer. Por exemplo, nos EUA, o sistema público de saúde aprovado por Obama é um progresso importante. Mas existem dilemas fundamentais sobre os quais é preciso refletir antes de tomar posição. Para alguns, basta aplicar antigos conceitos marxistas e tudo será solucionado. Mas o que é, por exemplo, a classe trabalhadora hoje? Aquele "velho proletariado" que trabalha com emprego fixo em uma grande companhia é quase uma classe privilegiada atualmente - diante do trabalho precarizado por toda a parte. Eu acredito no pensamento. Acho que é preciso mergulhar e analisar a situação. Eu não sei o que está acontecendo hoje no mundo, e as velhas teorias totalizantes sejam marxistas ou liberais não dão mais conta da realidade. Antes de uma teoria sobre o que devemos fazer, precisamos de uma teoria que explique o que diabos está acontecendo.