Ora, não se aprende a ler Machado de Assis lendo menos do que Machado de Assis
10 de maio de 2014 | 16h 00
Sidney Chalhoub
"Trezentos mil exemplares! Pelas barbas do profeta!" Foi falando assim que me apareceu Brás Cubas em sonho um dia desses, impressionadíssimo com a notícia de que se publicaria em breve uma edição reformatada de O Alienista, feita "para facilitar a leitura" de jovens e adultos supostamente inexperientes para encarar ao vivo o bruxo do Cosme Velho. "Trezentos mil exemplares... Ora, não haverá trezentas leitoras para isso, quando muito trinta. Trinta? Talvez três". Percebi logo que Brás Cubas estava enciumado, carpindo-se diante do sucesso de Simão Bacamarte. Dei um muxoxo e acordei.
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Quadrinhos: O clássico na clássica versão dos irmãos Fábio Moon e Gabriel Bá
Corri à biblioteca, onde Machado de Assis permanece sempre à espreita, pronto para contar estórias. Pedi-lhe alguma sobre o trabalho de criação, fosse artística ou literária. Abriu-se o livro, na página inicial de O anel de Polícrates. Lá ia o Xavier, sujeito podre de rico - quer dizer, personagem que esbanjava ideias. Era uma vertigem encontrá-lo para dous dedos de prosa na Rua do Ouvidor, pois discorria logo sobre cousas possíveis e impossíveis, o livro que escreveria, o poema que trazia na cachola, um discurso político, a viagem à lua num balão que inventara, filosofia, teatro... Uma cascata de ideias e imagens, verdadeiro "saco de espantos".
Todavia, era impaciente, padecia da falta de "gestação indispensável à obra escrita". Varria o mundo com os olhos, clicava em todos os links, por assim dizer, mas não se fixava em qualquer um deles. Mais adiante veio mestre Romão, em Cantiga de Esponsais. Bom músico, ótimo sujeito e amado pelas beatas, porém vinha com o passo lerdo e os olhos no chão. Transformava-se, é verdade, ao reger a orquestra durante a missa. Uma energia derramava-se então por todo o seu corpo, ficava iluminado, "era outro". Murchava pouco depois do encantamento, a roer o fato de que não conseguia compor ele próprio as músicas que regia. Não era por falta de esforço. Sentava longas horas diante do cravo, a meditar com a vista no chão, a buscar no céu alguma inspiração. Mas ela não vinha, morreu esperando.
Xavier era a imaginação sem pernas; mestre Romão, as pernas que não logravam o caminho das musas. Há em Machado estórias para todos os gostos. Por isso logo aparece O Cônego ou a Metafísica do Estilo. Aposto que os leitores não sabem que as palavras têm sexo. Ademais, sexo sem preconceito. Vejam só, por exemplo, a busca constante do substantivo pelo adjetivo que lhe convém, sonho de casamento perfeito. O cônego Matias tinha de fazer o sermão numa festa próxima. Vossa Reverendíssima levava fama de destro nessas cousas, empenhava-se, fazia bonito.
Começou a escrever, tudo ia bem, até que o tal substantivo estacou, à espera do adjetivo seu parceiro. O cônego sofreu, mas insistiu, oferecia um adjetivo, riscava, trazia outro, deletava de novo, como se diz hoje em dia. Durou bastante o impasse. O cônego foi à janela, viu as árvores e o sol. O lado direito do cérebro continuou a negociar sempre com o esquerdo, até que o bom pastor voltou à mesa de trabalho. Estremeceu, o rosto dele se iluminou e a pena, "cheia de comoção e respeito, completa o substantivo com o adjetivo".
Dores e prazeres da criação. Não há nada definitivo neste mundo, nem estou aqui para ditar regras. Ao compilar tudo, pensando bem nas estórias que Machado contou, opino que talvez não seja mesmo uma boa ideia bulir com elas "para facilitar a leitura". Neste tempo nosso, difícil de entender como tantos outros, cheio de cliques, texting e links como nenhum outro, há quem sabe a necessidade de reservar algo para a leitura lenta, a fazer devagarinho, quase parando. Se parece cedo para ler Machado de Assis, não custa esperar mais um pouco. A vida pode ser longa quando se é jovem, ou mesmo adulto, pois as pílulas andam alongando muito a existência.
Se um romance machadiano ainda pode ser difícil, que se leia um conto ou uma crônica. Há tantos textos curtos dele, tão belos, tão cheios de ideias e de imaginação viva. Não se aprende a ler Machado de Assis lendo menos do que Machado de Assis. Nada prepara alguém para tal experiência, a não ser a professora ou outro mentor atento e apaixonado, capaz de compartilhar com os pupilos a incerteza dos sentidos e a música do estilo que constituem esses textos. Não se precisa tampouco de 300 mil exemplares. Pelas barbas do profeta! Trezentos mil! Se há uma biblioteca por perto, que sorte. Se não há biblioteca, há de haver um computador plugado na internet. Digite, por exemplo, www.machadodeassis.net. Os textos do bruxo estarão lá, romances e contos, com notas a decifrar alusões, a fornecer explicações úteis. Há outras opções, mas não as dou para não cansar a vista. Além disso, achei um conto, chamado Um Homem Célebre. Com licença, pois preciso lê-lo bem devagar.
SIDNEY CHALHOUB É HISTORIADOR, PROFESSOR TITULAR DA UNICAMP E AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS, DE MACHADO DE ASSIS HISTORIADOR (COMPANHIA DAS LETRAS)
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