quarta-feira, 14 de maio de 2014

Economista Thomas Piketty faz crítica admirada do capitalismo


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Quando o Muro de Berlim caiu, em 1989, Thomas Piketty tinha 18 anos, o que o poupou do debate intelectual sobre as virtudes e os vícios do comunismo, que durou décadas na França.
Segundo ele, mais reveladora foi a viagem que fez com um amigo à Romênia no início dos anos 1990, após a queda da União Soviética.
"Quando vi aquelas lojas vazias, aquelas pessoas fazendo fila inutilmente na rua, ficou claro que nós precisamos de propriedade privada e instituições de mercado, não só por uma questão de eficiência econômica, mas também pela liberdade individual."
Mas o desencanto com o comunismo não significa que Piketty deu as costas para o legado intelectual de Karl Marx.
Como o alemão, ele é um crítico ferrenho das desigualdades econômicas e sociais produzidas pelo capitalismo desenfreado —as quais, para ele, se agravarão. "Sou de uma geração que jamais teve atração pelo Partido Comunista. De certa maneira, isso facilita retomar com frescor essas grandes questões sobre capitalismo e desigualdade."
Em seu novo livro de 700 páginas, "Capital in the Twenty-First Century" [O Capital no Século 21], Piketty, 42, desmonta teses sobre a benevolência do capitalismo e prevê desigualdade crescente em países industrializados, com impacto sobre valores democráticos como justiça e equidade.
O livro, que está na lista dos mais vendidos do "New York Times", pretende ser um retorno ao tipo de história econômica e economia política escrito no passado por Marx e Adam Smith.
A obra se empenha em compreender sociedades ocidentais e as regras econômicas que as sustentam. E em seu decorrer, ao desmascarar a ideia de que "a riqueza ergue todos os barcos", Piketty desafia governos democráticos a lidarem com o abismo crescente entre ricos e pobres.
Piketty cresceu em um lar impregnado de política. Seus pais, esquerdistas, participaram das manifestações em 1968 que sacudiram a França tradicional.
Mais relevantes e importantes, disse ele, são as "experiências fundamentais" de sua geração: o colapso do comunismo, a degradação do Leste Europeu e a Guerra do Golfo. Tais eventos o incitaram a tentar entender um mundo no qual ideias econômicas tinham consequências tão nefastas.
Piketty entrou na elitista École Normale Supérieure aos 18 anos. Sua dissertação de doutorado sobre a teoria da redistribuição da riqueza, concluída quando ele tinha 22 anos, ganhou prêmios.
Então ele se mudou para os Estados Unidos, para lecionar no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), mas se decepcionou com o estudo de economia americano e voltou para a França.
"Percebi rapidamente que havia pouco empenho para coletar dados históricos sobre renda e riqueza, então comecei a fazê-lo".
Com a ajuda dos potentes computadores atuais, suas conclusões se baseiam em séculos de estatísticas sobre o acúmulo de riqueza e o crescimento econômico em países industriais desenvolvidos.
Elas também são enunciadas de maneira simples: a taxa de crescimento da renda do capital é várias vezes maior que o ritmo do crescimento econômico.
Isso significa que uma parcela comparativamente decrescente vá para a renda ganha com salários, os quais raramente aumentam mais rápido que a atividade econômica. A desigualdade aumenta quando a população e a economia crescem lentamente.
A desigualdade em si é aceitável, diz ele, à medida que incita a iniciativa individual e a geração de riqueza que, com a ajuda da taxação progressiva e outras medidas, ajuda a melhorar a situação de todos na sociedade.
"Não vejo problema na desigualdade, desde que ela seja de interesse comum", afirmou.
Porém, Piketty diz que a desigualdade extrema "ameaça nossas instituições democráticas". A democracia não significa apenas cada cidadão um voto, mas a promessa de oportunidades iguais.
A última parte do livro apresenta as ideias de Piketty sobre políticas públicas. Ele defende uma taxação global progressiva sobre a riqueza real (menos dívida), com os resultados decorrentes não entregues a governos ineficientes, mas redistribuídos para os que têm menos capital.
O livro tem despertado críticas, especialmente às prescrições políticas de Piketty, consideradas ingênuas. Ele recebe bem as críticas. "Certamente estou aguardando ansiosamente os debates."

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Quer moleza?

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Ora, não se aprende a ler Machado de Assis lendo menos do que Machado de Assis

10 de maio de 2014 | 16h 00

Sidney Chalhoub
"Trezentos mil exemplares! Pelas barbas do profeta!" Foi falando assim que me apareceu Brás Cubas em sonho um dia desses, impressionadíssimo com a notícia de que se publicaria em breve uma edição reformatada de O Alienista, feita "para facilitar a leitura" de jovens e adultos supostamente inexperientes para encarar ao vivo o bruxo do Cosme Velho. "Trezentos mil exemplares... Ora, não haverá trezentas leitoras para isso, quando muito trinta. Trinta? Talvez três". Percebi logo que Brás Cubas estava enciumado, carpindo-se diante do sucesso de Simão Bacamarte. Dei um muxoxo e acordei.
Quadrinhos: O clássico na clássica versão dos irmãos Fábio Moon e Gabriel Bá - Divulgação
Divulgação
Quadrinhos: O clássico na clássica versão dos irmãos Fábio Moon e Gabriel Bá
Corri à biblioteca, onde Machado de Assis permanece sempre à espreita, pronto para contar estórias. Pedi-lhe alguma sobre o trabalho de criação, fosse artística ou literária. Abriu-se o livro, na página inicial de O anel de Polícrates. Lá ia o Xavier, sujeito podre de rico - quer dizer, personagem que esbanjava ideias. Era uma vertigem encontrá-lo para dous dedos de prosa na Rua do Ouvidor, pois discorria logo sobre cousas possíveis e impossíveis, o livro que escreveria, o poema que trazia na cachola, um discurso político, a viagem à lua num balão que inventara, filosofia, teatro... Uma cascata de ideias e imagens, verdadeiro "saco de espantos".
Todavia, era impaciente, padecia da falta de "gestação indispensável à obra escrita". Varria o mundo com os olhos, clicava em todos os links, por assim dizer, mas não se fixava em qualquer um deles. Mais adiante veio mestre Romão, em Cantiga de Esponsais. Bom músico, ótimo sujeito e amado pelas beatas, porém vinha com o passo lerdo e os olhos no chão. Transformava-se, é verdade, ao reger a orquestra durante a missa. Uma energia derramava-se então por todo o seu corpo, ficava iluminado, "era outro". Murchava pouco depois do encantamento, a roer o fato de que não conseguia compor ele próprio as músicas que regia. Não era por falta de esforço. Sentava longas horas diante do cravo, a meditar com a vista no chão, a buscar no céu alguma inspiração. Mas ela não vinha, morreu esperando.
Xavier era a imaginação sem pernas; mestre Romão, as pernas que não logravam o caminho das musas. Há em Machado estórias para todos os gostos. Por isso logo aparece O Cônego ou a Metafísica do Estilo. Aposto que os leitores não sabem que as palavras têm sexo. Ademais, sexo sem preconceito. Vejam só, por exemplo, a busca constante do substantivo pelo adjetivo que lhe convém, sonho de casamento perfeito. O cônego Matias tinha de fazer o sermão numa festa próxima. Vossa Reverendíssima levava fama de destro nessas cousas, empenhava-se, fazia bonito.
Começou a escrever, tudo ia bem, até que o tal substantivo estacou, à espera do adjetivo seu parceiro. O cônego sofreu, mas insistiu, oferecia um adjetivo, riscava, trazia outro, deletava de novo, como se diz hoje em dia. Durou bastante o impasse. O cônego foi à janela, viu as árvores e o sol. O lado direito do cérebro continuou a negociar sempre com o esquerdo, até que o bom pastor voltou à mesa de trabalho. Estremeceu, o rosto dele se iluminou e a pena, "cheia de comoção e respeito, completa o substantivo com o adjetivo".
Dores e prazeres da criação. Não há nada definitivo neste mundo, nem estou aqui para ditar regras. Ao compilar tudo, pensando bem nas estórias que Machado contou, opino que talvez não seja mesmo uma boa ideia bulir com elas "para facilitar a leitura". Neste tempo nosso, difícil de entender como tantos outros, cheio de cliques, texting e links como nenhum outro, há quem sabe a necessidade de reservar algo para a leitura lenta, a fazer devagarinho, quase parando. Se parece cedo para ler Machado de Assis, não custa esperar mais um pouco. A vida pode ser longa quando se é jovem, ou mesmo adulto, pois as pílulas andam alongando muito a existência.
Se um romance machadiano ainda pode ser difícil, que se leia um conto ou uma crônica. Há tantos textos curtos dele, tão belos, tão cheios de ideias e de imaginação viva. Não se aprende a ler Machado de Assis lendo menos do que Machado de Assis. Nada prepara alguém para tal experiência, a não ser a professora ou outro mentor atento e apaixonado, capaz de compartilhar com os pupilos a incerteza dos sentidos e a música do estilo que constituem esses textos. Não se precisa tampouco de 300 mil exemplares. Pelas barbas do profeta! Trezentos mil! Se há uma biblioteca por perto, que sorte. Se não há biblioteca, há de haver um computador plugado na internet. Digite, por exemplo, www.machadodeassis.net. Os textos do bruxo estarão lá, romances e contos, com notas a decifrar alusões, a fornecer explicações úteis. Há outras opções, mas não as dou para não cansar a vista. Além disso, achei um conto, chamado Um Homem Célebre. Com licença, pois preciso lê-lo bem devagar.
SIDNEY CHALHOUB É HISTORIADOR, PROFESSOR TITULAR DA UNICAMP E AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS, DE MACHADO DE ASSIS HISTORIADOR (COMPANHIA DAS LETRAS) 

Ela está no meio de nós


Para filósofo esloveno, o medo da criminalidade e do terror oculta a ‘violência invisível’ das relações socioeconômicas

10 de maio de 2014 | 16h 01

Ivan Marsiglia - O Estado de S. Paulo
Vivida como paradoxo no mundo contemporâneo, a violência afeta nossa sensibilidade nos gestos mais banais do cotidiano, ao mesmo tempo que é ignorada em sua dimensão mais profunda e estrutural. Esse é o ponto central da argumentação do filósofo esloveno Slavoj Žižek em um livro que sai esta semana no Brasil.
Imagem retirada de vídeo que mostra Fabiane sendo arrastada - Reprodução
Reprodução
Imagem retirada de vídeo que mostra Fabiane sendo arrastada
Violência: Seis Reflexões Laterais (Boitempo Editorial) chega às livrarias no contexto favorável - e trágico - do linchamento da dona de casa Fabiane Maria de Jesus, de 33 anos, no Guarujá, após uma notícia falsa de crime nas redes sociais. Para o pensador que trafega entre o marxismo e a psicanálise, velho conhecido do público brasileiro, as irrupções de violência cada vez mais frequentes no mundo causam tanta perplexidade por seu aparente descolamento de uma realidade social "invisível" e ultraviolenta. "Por que só vemos a violência quando algo muda? E ela é invisível no que permanece?", pergunta Žižek na entrevista a seguir, concedida por telefone ao Aliás.
Na conversa, diante dos impasses de um mundo acelerado pela globalização e a revolução digital, o professor da Universidade de Liubliana prefere, como diz, levantar questões a esgrimir "velhas teorias totalizantes, sejam marxistas ou liberais". Para ele, é tempo de pensar e não de agir: "Antes de uma teoria sobre o que devemos fazer, precisamos de uma teoria que explique o que diabos está acontecendo".
Por que o tema da violência o interessou?
Eu vejo um paradoxo nos dias de hoje. De um lado, as pessoas têm se tornado, ao menos nos países desenvolvidos, cada vez mais sensíveis à violência. Não apenas em relação à sua manifestação física e direta, mas a qualquer comentário agressivo, gozação com alguém ou piada de conteúdo sexual considerado "sujo" - quase tudo hoje é "experienciado" como violência. Entretanto, para além dessa sensibilidade contemporânea que vê violência em tudo, há na vida real talvez mais violência do que nunca - só que de um tipo pouco percebido. Eu me refiro à violência simbólica a que, por exemplo, seja nos Estados Unidos, na Europa ou no Brasil, são submetidas as comunidades indígenas. Autoridades e mesmo cidadãos bem intencionados podem se referir a esses povos de maneira até respeitosa, ou manifestar suas preocupações sobre as condições de vida das crianças nativas. Só que o fazem de maneira paternalista, que nega a autonomia dessas pessoas. Trata-se de um tipo de violência invisível para a maior parte de nós.
Seu livro faz uma distinção entre a ‘violência subjetiva’ da criminalidade, dos homens-bomba, do terrorismo, e a ‘violência sistêmica ou objetiva’, das condições socio-econômicas. De que maneira uma se liga à outra?
Não digo que a violência sistêmica justifique a violência subjetiva. Nem acho que se alguém é vítima de algum tipo de colapso econômico pode sair por aí matando pessoas no escritório. Todos desejamos a paz, é óbvio. Porém, um fato que não podemos esquecer é que são os vencedores, os detentores do poder, por definição os maiores interessados na "paz". Para eles, essa palavra significa: "Mantemos nosso poder". Nesse sentido, é claro que Israel está sinceramente interessado em paz na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Mas um tipo de paz em que, em 30 ou 40 anos, não haja mais palestinos na região, totalmente assimilados por uma maioria israelense. Este é o problema para mim: "anseios de paz" onde o que existe, de fato, é violência. Claro que sou contra o terrorismo palestino que mata mulheres e crianças israelenses. Mas é preciso ter em mente que, ainda que nenhum protesto ou atentado terrorista ocorra na Faixa de Gaza, uma violência diária prossegue ali. Por que só vemos a violência quando algo muda? E ela é invisível no que permanece?
O Brasil vive um momento ambíguo. Estabilizou sua economia e avançou nos programas sociais, mas há tensão social e a violência não para de crescer. O que está havendo?
Esse é o paradoxo. Não tenho uma resposta completa para isso pois cada País tem suas peculiaridades históricas, mas um erro muito comum é pensar que a violência social emerge quando a situação está muito ruim e o sofrimento de não se poder mais viver vira revolta. Não é assim. Se você olhar para a maioria das rebeliões e revoltas pelo mundo elas ocorrem quando a situação está ficando melhor. São mudanças graduais que em dado momento explodem em esperanças de transformação e posteriormente terminam em expectativas frustradas. Foi assim na Revolução Francesa, no maoísmo chinês ou na Praça Tahrir. Não acho que a vida sob Mubarak no Egito era pior do que antes dele, e por isso explodiu a primavera árabe. Provavelmente para muita gente a vida tinha até melhorado, pois o regime de Mubarak teve relativo sucesso. É uma verdade simples e cruel: revoltas surgem quando a situação melhora, despertando novas expectativas populares. É por isso que não se deve esperar que ocorra nenhuma rebelião tão cedo na Coreia do Norte (risos). Talvez algo semelhante esteja em curso no Brasil, com protestos e reivindicações crescentes nas mesmas favelas que tiveram significativa melhoria nas condições de vida durante o governo Lula - ainda que tal "progresso" tenha sido contraditório.
O sr. menciona também a contradição de países com ‘enorme degradação ecológica e muita miséria humana’ que, apesar disso, figuram nos relatórios do Banco Mundial ou do FMI como ‘financeiramente sólidos’...
É incrível como para esses organismos a realidade não conta, o que conta é a situação do capital. Foi dessa maneira que se tratou a crise da Grécia. Veja como, apesar do avanço da globalização econômica, crescem os fundamentalismos mundo afora. O Irã, até alguns anos atrás, era considerado um modelo de sucesso na implementação de reformas liberais... Nos anos 50 e 60, os países árabes eram mais seculares do que são hoje. Até na Noruega, com todo o aparato de bem-estar social, vemos o racismo e o discurso do ódio crescerem. Há uma violência latente, e eu não acho que as esquerdas no mundo estejam preparadas para lidar com ela. O Ocuppy Wall Street gerou tanto entusiasmo, mas o que resultou de fato do movimento? Sou bastante pessimista nesse sentido.
As manifestações de rua no Brasil também perderam fôlego. Para alguns, por causa da repressão policial. Para outros, foi a violência dos black blocs que afastou as pessoas das ruas. É outro exemplo de disputa ideológica em torno da violência?
Evidentemente. E essa discussão serve para encobrir o que realmente interessa, que é, em primeiro lugar, entender por que os protestos emergiram no Brasil. E, em segundo, por que todas as tentativas de canalizar a energia mobilizada nas ruas em políticas e programas concretos fracassou. Esse é o grande problema, e não estou muito otimista em relação a ele. Vemos explosões de violência em toda a parte, como se algo diferente estivesse por emergir, mas sem que nenhuma delas resulte em uma perspectiva nova de futuro. Não quero soar como um marxista fora de moda, mas até Hollywood percebeu essa tendência perigosa, em filmes como Jogos Vorazes (2012, dirigido por Gary Ross) ou Elysium (2013, de Neill Blomkamp, com Matt Damos e Wagner Moura no elenco), nos quais o mundo do futuro é uma sociedade de classes extremamente violenta.
O economista francês Thomas Pikkety causou grande impacto com o livro O Capital no Século XXI, que mostra um processo de concentração crescente da riqueza no mundo, com consequências nefastas para o capitalismo. A desigualdade explica a violência?
Hoje, todos sabemos que a desigualdade está explodindo no mundo. Obviamente que muita gente considera isso aceitável, já que o que é ou não aceitável não pode ser objetivamente mensurado. Ele é determinado pelas convicções ideológicas de cada um. E aqui acho, de novo, que as esquerdas foram as grandes derrotadas. Mesmo os que fizeram esforços positivos para promover diretamente algum tipo de redução das desigualdades, como (Hugo) Chávez na Venezuela, conseguiram certo sucesso no início - incluindo no processo político pessoas que de nenhuma forma participavam dele. Lula também fez isso a sua maneira, o que é muito importante. Mas Chávez não pôde inventar um novo sistema socioeconômico. Organizou cooperativas, fez reformas aqui e ali, mas no longo prazo a coisa não funcionou.
O sr. também critica iniciativas de cunho liberal como a filantropia ou a ‘responsabilidade social’ das empresas. Chega a dizer que esses são os principais inimigos do movimento progressista. Não é um exagero?
Claro que coloco esse ponto de maneira provocativa. É evidente que é melhor que Bill Gates gaste parte de seus bilhões no tratamento de doenças na África do que não fazer nada. O que quero dizer é que não acho que, globalmente, essa seja a solução. A desigualdade cresce cada vez mais e os ricos tentam manter a situação sob controle dando uma parte do que ganham para os desfavorecidos? No fundo, essa é uma maneira de reproduzir a situação que gerou essa desigualdade brutal. Também não digo que devamos abolir o sistema capitalista mundial. O que estou dizendo - e, nesse sentido, sou um comunista - é que os problemas do mundo hoje são "problemas dos comuns". O que todos compartilhamos não pode ser privatizado. A ecologia é um problema desse tipo pois a natureza é nosso meio comum - e a crise ecológica só pode ser resolvida por meio de regulações globais, acima dos interesses dos Estados nacionais. Questões de fundo sobre manipulações biogenéticas também. Ou da propriedade intelectual de interesse público. Uma empresa privada não pode decidir isoladamente sobre tais temas. É impressionante como, até hoje, neoconservadores americanos insistem na tecla de que a crise financeira de 2008 foi o resultado do excesso de gastos públicos dos países. Não foi! Ela aconteceu precisamente por causa da desregulação do capitalismo internacional. Ou seja, estamos lidando com um nível de problemas que o "mercado" ou sistema liberal capitalista não terá condições de resolver sozinho. E o pior é ver que, cada vez mais, países combinam sistemas capitalistas extremamente bem-sucedidos com estruturas políticas autoritários. China, Singapura, mesmo a Coreia do Sul. A democracia hoje está ameaçada por esse novo fórum de capitalismo autoritário.
O sr. também não se diz muito otimista em relação ao que chama de ‘cyberdemocracia’. Não vê potencial emancipatório na internet?
Eu vejo, e é por isso que respeito gente como Julian Assange e Edward Snowden. Respeito, mas não idealizo. Já ficou clara a dupla mão que a internet representa: de um lado, maior poder de organização e atuação dos indivíduos; de outro, o controle desses mesmos indivíduos por parte de governos e corporações. Eis a lição triste que Snowden nos deu: mesmo nas democracias liberais em que você se sente subjetivamente livre ainda assim está sujeito à possibilidade de controle absoluto.
Diante desses impasses, o sr. diz no livro que, ‘às vezes, não fazer nada é a melhor coisa a se fazer’. Por causa disso, o professor da New School for Social Reserch de Nova York, Simon Critchley, o chamou de ‘Hamlet esloveno’, paralisado pela dúvida sobre cometer ou não um ato violento que modifique a realidade. O que achou da crítica?
Eu nunca disse que nós não deveríamos fazer nada. E sempre que tenho a chance de agir, me engajo. O que disse foi outra coisa, mais simples, até senso comum. Há coisas pragmáticas que podemos fazer. Por exemplo, nos EUA, o sistema público de saúde aprovado por Obama é um progresso importante. Mas existem dilemas fundamentais sobre os quais é preciso refletir antes de tomar posição. Para alguns, basta aplicar antigos conceitos marxistas e tudo será solucionado. Mas o que é, por exemplo, a classe trabalhadora hoje? Aquele "velho proletariado" que trabalha com emprego fixo em uma grande companhia é quase uma classe privilegiada atualmente - diante do trabalho precarizado por toda a parte. Eu acredito no pensamento. Acho que é preciso mergulhar e analisar a situação. Eu não sei o que está acontecendo hoje no mundo, e as velhas teorias totalizantes sejam marxistas ou liberais não dão mais conta da realidade. Antes de uma teoria sobre o que devemos fazer, precisamos de uma teoria que explique o que diabos está acontecendo.