Juliana Sayuri, de O Estado de S. Paulo
Uma overdose de polêmica tomou conta de São Paulo nos últimos dias por causa de medidas do programa de incentivo à internação de dependentes químicos, bancado pelo governo do Estado.
No meio desse caminho, tinha uma pedra: o crack. De um lado, viu-se o drama dos aprisionados pela droga e dos familiares desesperados por ajuda. De outro, muita controvérsia em torno da internação forçada - vista ou como política de saúde pública ou como "limpeza urbana" dos frequentadores das cracolândias.
Diante da complexidade da questão, o Aliás conversou com dois especialistas: os psiquiatras Dartiu Xavier da Silveira e Ana Cecília Marques, ambos professores da Unifesp. Eles têm opiniões divergentes e defendem posições a partir de sua experiência de campo. Em um ponto, porém, concordam: do jeito que está, a tragédia brasileira do crack não pode mais ficar.
Leia abaixo a entrevista com Ana Cecília Marques:
Dra. Ana Cecília, nessa semana o governo paulista iniciou o programa de incentivo à internação de dependentes de crack. Como a sra. vê a adoção da internação compulsória?
O crack é o principal desafio para nós, especialistas em drogas. É uma droga com alto potencial para sensibilizar o cérebro, ligando a chave do "quero mais". Nisso, há diversos fatores a considerar. Primeiro: o crack ativa um mecanismo compulsivo de consumo - o padrão binge - e por isso é muito difícil controlar e propor tratamentos. Segundo: o crack não é a única substância consumida pelos dependentes, pois muitos são poliusuários - misturam crack com álcool, maconha, tabaco - e é preciso fazer uma desintoxicação detalhada nesses casos. Terceiro: nossas ações de tratamento atuais, como observei na cracolândia por dois anos, não são adequadas. Tentamos tratar esses dependentes como tratamos usuários de outras drogas, mas é muito diferente. O crack é singular. Assim, tentamos intervenções ineficazes, pois a síndrome de abstinência é totalmente adversa. E quarto: quem está no crack já está muito mal, quer dizer, já perdeu vários vínculos com a sociedade e a família. Nem todos, claro. Mas há um distanciamento da família, mesmo os que moram sob o mesmo teto, pois o crack cria uma espécie de isolamento. Isso porque o indivíduo perde os poderes cognitivos e o próprio pensamento fica comprometido. E, assim, certamente se afasta da família. Por isso é tão difícil tratar quem está na rua, quem já não tem mais laços com ninguém. Então, considero que a internação compulsória pode ajudar esses indivíduos em situação de rua. Faria toda a diferença ter um lugar para se desintoxicar e aprender sobre a própria dependência química. Mas a questão é o que vem depois.
O que deveria vir depois?
Precisamos de uma rede. Não adianta só internar. Em determinado momento, o dependente sairá da internação, não é? E aí? Aonde irá? Quem irá ajudá-lo a cuidar dessa doença crônica depois? Afinal, estamos falando de uma doença crônica, quer dizer, incurável. O tratamento só atinge a estabilização da doença - aí se incluem crackeiros, fumantes, maconheiros, etc. O indivíduo precisa se tratar ao longo da vida. Precisa da família no entorno. E de recursos para ter uma vida humana, uma vida "normal".
Isso não estigmatiza o dependente?
Lógico que não. O hipertenso é estigmatizado? O diabético é estigmatizado? Não. Ninguém que tem uma doença crônica é estigmatizado. E, na minha opinião, dependência não se trata apenas com uma abordagem simples. É preciso uma rede de cuidados - recuperar o corpo e a mente, voltar a trabalhar. Após o tratamento, precisamos garantir o acesso aos medicamentos, à dieta, aos exames complementares. Se não tivermos isso, não adianta internar. E a questão é que não estamos preparados para isso. Não temos nem médicos especialistas para se dedicar ao dependente, que dirá uma equipe multidisciplinar especializada para abordar a família e promover a reinserção do dependente na sociedade.
Em termos realistas, como está essa rede atualmente em São Paulo?
Ainda está muito frágil. Na verdade, ainda precisa ser reorganizada regionalmente, ampliando os recursos para as microrregiões de São Paulo, ampliando o treinamento de equipes multidisciplinares. A bem da verdade, essa rede ainda precisa ser montada. E ainda não conheço nenhum levantamento nacional que registre um modelo de tratamento ideal no Brasil.
O programa paulista diz que a internação compulsória visa apenas à ‘exceção da exceção’. Focando uma parcela tão pequena dos dependentes de crack, o que se pode esperar dessa iniciativa?
Estamos falando dos "fim de linha", dos "vulnerabilidade 100%", dos desprovidos de qualquer chance de viver. Se um desses dependentes tiver uma convulsão na rua, ele morre. E quem é esse cara? É um zumbi. Também há adolescentes, crianças, gestantes, jovens, e outros adultos com transtornos mentais graves. Não sei ao certo o que se espera dessa iniciativa, teria que me teletransportar para a mente de um desses políticos e juristas para responder isso. Mas penso que a medida pode salvar vidas, sim. Sou médica, logo devo falar a partir do meu lugar. E se a Justiça e o governo entraram em campo, vejo benefícios. Não faria como uma medida única. Também não digo que se deva internar todo mundo, afinal essa iniciativa é para uma minoria.
O governador Geraldo Alckmin se surpreendeu com as internações nesses primeiros dias. A procura realmente superou as expectativas?
Eu já esperava muitas internações, pois é a amostra populacional mais vulnerável e mais grave, que demanda uma intervenção complexa e intensiva. A diferença é que sou médica especialista. E ele é o governador, um gestor público que precisa lidar com bandidos, construções, drogas, rodovias etc. Ele vê o macro, eu vejo o micro.
Também ocorreram internações voluntárias e buscas pelo programa.
É positivo, mas só se tiver avaliação e orientação para cada caso. Pois nem todo mundo que procura o Cratod (Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas) realmente precisa de internação. A medida criou uma expectativa, mas é preciso frisar que a internação é indicada para uma minoria. O diferencial é que essa amostra (da cracolândia) provavelmente precisaria ser internada, na maioria.
Outros especialistas criticam a medida argumentando que a internação compulsória é um sistema de isolamento social, não de tratamento. O que a sra. pensa disso?
Discordo. Não é isso. É preciso entender que esses indivíduos já perderam tudo. Queremos dar alguma dignidade a eles, para decidirem mudar de vida. Internados, eles vão sair da dor da síndrome de abstinência, vão ter novas chances. E eles não têm mais autonomia para decidir se devem ser internados ou não. A droga altera a capacidade de crítica desses indivíduos. O crack age no córtex pré-frontal, que constantemente analisa a realidade e forma o pensamento. Com a dependência, essa capacidade está comprometida. E estamos falando de dependência grave, que já provocou sequelas no cérebro. Ainda mais na rua, esses dependentes não têm mais vínculos sociais. Eles precisam dessa oportunidade para receber um bom tratamento, para poder olhar o outro lado da história.
A internação forçada (involuntária ou compulsória) traz bons resultados?
Nem sempre, mas não por causa da internação. Falta o resto. Isso é importante: internação não é tratamento. É um pedacinho do tratamento. Para nós, tratamento quer dizer internar e desintoxicar. Para outros, quer dizer ambulatório, naqueles Caps-AD (Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas) desatualizados. Nós analisamos a efetividade de um tratamento após dois anos. Só então poderemos dizer se deu certo ou não. E cada caso é um caso.
Há diferenças entre o Cratod (iniciativa estadual) e os Caps (iniciativa municipal)?
Sim. Há mais profissionais especializados e treinados no Cratod. É o primeiro centro de referência da cidade, mas não sei como está funcionando atualmente. Trabalhei no Caps-AD da Sé de 2009 ao fim de 2010. Eu não tinha cargo de atendimento clínico, mas, por diversos momentos, precisei vestir o avental e atender as pessoas. Não podia ficar sentada na minha cadeirinha, pois senti que estava diante de uma guerra mesmo. Na cracolândia, tentamos ajustar nossas intervenções, mas precisávamos de mais recursos e mais medidas. Por exemplo, precisaríamos compor e treinar mais equipes multidisciplinares. Na época, também tentamos mudar o modelo, para conseguir atender mais pessoas. Partimos de um modelo com baixíssima taxa de adesão - com atendimentos mais individualizados e sem o protocolo "porta aberta", isto é, as pessoas precisavam agendar consultas e esperar. Implementamos a ideia da "porta aberta" e, assim, as pessoas eram recebidas por uma equipe clínica com psicólogo, enfermeiro e assistente social. Outra mudança: antes as pessoas eram atendidas e ficavam no Caps, com atendimento intensivo por até oito horas - se não melhorassem, eram encaminhadas ao pronto-socorro. Decidimos botar todo mundo para dentro, nos moldes de um hospital-dia para pacientes agudos. E sugeríamos internação para quem não tinha casa. Assim, tivemos muita adesão. Era interessante, pois muitos passaram a bater a nossa porta, buscando tratamento, já querendo parar com a droga. Estávamos propondo um modelo de transição, pois, na minha opinião, o modelo do Caps-AD não funciona para crack. Mas, depois disso, o convênio com a Unifesp foi desfeito. Até hoje não sei por quê.
Em visita a São Paulo, o atual prefeito de Bogotá, Gustavo Petro, disse que pretende implementar na capital colombiana uma medida de ‘oferta controlada de drogas’. Isso daria certo no Brasil?
Conheço a medida. Inglaterra e outros países europeus contam ou contaram com ela. Não daria certo no Brasil. Sou totalmente contra, pois o País não tem uma política de drogas que garanta essa medida. Para termos uma medida de vanguarda como essa - querer imitar a Inglaterra, imagine a pretensão desse colombiano -, precisaríamos da política inglesa, além de campanhas preventivas, centros controlados por pesquisadores e muitos médicos, equipes especializadas. No Brasil, viraria a casa da mãe joana. Não tem nada a ver. O Brasil não tem nada a ver com Holanda, Inglaterra, Portugal, com nenhum país que testou essa política. Não temos uma política assim até agora, pois o País nem sequer entende o que é a dependência de drogas. Estamos vivendo a segunda onda da epidemia do crack no Brasil - a primeira aconteceu na década de 1990. O crack atrai pelo apelo psicotrópico, a matéria-prima (a cocaína) e o preço. E está fora de controle: não temos campanhas de prevenção, nem modelos de tratamento, nem controle da oferta. A sociedade precisa parar para enfrentar o fenômeno. A política precisa passar a tratar o crack como doença crônica, com campanhas e programas específicos. E não temos isso. Mas, na minha opinião, não cabe política de redução de danos para nenhuma droga. Atualmente, essa medida é feita para a heroína, por exemplo, com a prima irmã (a metadona). No caso do crack, não conheço nenhuma medida alternativa. Fazer o quê? Dar meia pedra de crack? Só conheço tratamento, com abstinência, para desativar o mecanismo compulsivo. Talvez Dartiu (Xavier) conheça outra medida, pergunte a ele...
Se não temos campanhas, controle e modelos, não estamos começando pelo final? Quer dizer, com um programa de internação compulsória sem ter feito o básico antes?
Não temos nada, nem ações, nem campanhas. Precisamos de uma política de drogas pensada para as diferentes regiões, e com os países vizinhos também. Mas não podemos bancar o macaco. Para dar certo, precisamos elaborar nosso próprio modelo, considerando nossas realidades, nossos recursos e nossas necessidades. Precisamos de um comitê para articular o levantamento de recursos e das políticas municipais que estão dando certo - e adaptá-las, pois as diretrizes nacionais não valem para todas as regiões. Mas, antes de tudo, é preciso garantir o desejo político para isso. No ano passado, conversei com 4 mil prefeitos na Confederação Nacional dos Municípios, em Brasília. Eles dizem que 80% das cidades estão tomadas pelo crack. Quer dizer, todo político deve desejar uma política para dar fim ao crack. O presidente, o governador, o prefeito, todos precisam querer mudar esse quadro.