domingo, 29 de janeiro de 2012

Fronteira social e fronteira de serviço

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sobre o Haiti

Haitianos acabam como personagens involuntários da mitologia de um povo supostamente simpático e gentil com os que vêm de fora

28 de janeiro de 2012 | 16h 00
Omar Ribeiro Thomaz, antropólogo, é professor do IFCH/Unicamp e Sebastião Nascimento, sociólogo, é pesquisador da Flensburg-Universität (Alemanha)
O governo brasileiro celebrou o segundo aniversário do devastador terremoto haitiano com o anúncio de medidas ainda mais severas para coibir a já difícil entrada de haitianos no País. Criando um perverso precedente, é a primeira vez, desde a 2ª Guerra, que se impede a uma nacionalidade específica solicitar a proteção do refúgio. Canais oficiais e semioficiais de divulgação foram mobilizados para reempacotar medidas que vinham sendo preparadas para reforçar a seletividade migratória no Brasil como se fossem uma resposta imediata à vexatória cobertura da imprensa internacional sobre a situação calamitosa dos haitianos impedidos de deixar a região fronteiriça. Dentro ou fora do País, poucos acreditaram na narrativa oficial que apresentava restrições arbitrárias como se de concessões generosas se tratasse.
O tumulto pela entrada de pouco mais que 3.500 haitianos no País ao longo dos últimos dois anos é, no mínimo, caricatural, tendo em vista não somente o volume dezenas de vezes maior de imigrantes europeus no mesmo período, mas também a dimensão centenas de vezes mais ampla da diáspora haitiana em outros países da América Latina. O Brasil nunca foi e segue não sendo destino preferencial de uma migração cuja dinâmica o Itamaraty e outros ministérios insistem em ignorar. Há por volta de 3 milhões e meio de haitianos espalhados por dezenas de países em três continentes, todos abrigando comunidades consideravelmente maiores e infinitamente mais bem acolhidas que no Brasil.
Logo após o terremoto, apoiando-se numa opinião pública francamente solidária, o governo brasileiro havia anunciado projetos ambiciosos de intercâmbio e formação de quadros haitianos em áreas estratégicas como a saúde e a educação, para os quais dotações orçamentárias foram rapidamente aprovadas, mas cuja execução nunca aconteceu.
Em fevereiro de 2010, com grande fanfarra se anunciou que o Brasil ofereceria pelo menos 500 bolsas a estudantes da rede universitária haitiana, atingida de modo particularmente devastador pelo terremoto. Por todo o Brasil, universidades se ofereceram para recebê-los. Era crucial que viessem rapidamente, pois suas faculdades estavam em ruínas, seus estudos paralisados e a continuidade de sua formação seria decisiva para a reconstrução. Numa irônica coincidência, foram também cerca de 3.500 os estudantes que se candidataram, no que teria sido o maior programa de intercâmbio internacional da história da educação brasileira. Somente mais de um ano e meio após a tragédia é que, a duras penas, foi possível trazer, dos 500 anunciados, não mais que 80 estudantes, alguns dos quais já tiveram sua bolsa cancelada ou limitada, sem que o Ministério da Educação tenha sido capaz de oferecer quaisquer garantias de continuidade do programa.
Também na área da saúde, havia sido anunciada a construção de dez Unidades de Pronto Atendimento em Porto Príncipe, dotadas de anexos para a formação de agentes comunitários. Deveriam entrar em funcionamento ainda em 2010. Nenhuma sequer foi construída e apenas uma equipe haitiana formada por um médico e duas enfermeiras esforça-se por atuar sem sede definida.
Iniciativas como essas se viram transformadas - não no Haiti, mas em Brasília - em esquálidos arremedos dos projetos iniciais, que não obstante serviram para dar imensa visibilidade ao governo brasileiro. Sempre que se questionam as razões desse fracasso, a saída invariável dos responsáveis é culpar os próprios haitianos.
Nas fronteiras brasileiras não é diferente: nas vítimas de assaltos e estupros se veem potenciais criminosos e, nos que sucumbem a endemias amazônicas, possíveis vetores de "doenças haitianas". A missão sanitária enviada há pouco à fronteira chegou com dois anos de atraso, tarde demais para Carmelite Baptiste, de 30 anos, que morreu de dengue, doença inexistente no Haiti.
Aqui, o governo tenta repetir o que tem sido sua estratégia de maior sucesso no Haiti: blindar a opinião pública brasileira de informações fiáveis e negar aos haitianos a possibilidade de falarem por si. Se não tivessem sido impedidos de deixar o isolamento nas fronteiras amazônicas, já poderiam ter demonstrado como possuem sólida formação educacional, com curso secundário, técnico ou mesmo superior, dispostos a dar o melhor de si para enviar recursos a suas famílias no Haiti. Porém, acabaram por se transformar em personagens involuntários da farsesca tradição brasileira no trato dos estrangeiros: instituições e profissionais despreparados que recorrem à mitologia de um povo supostamente simpático e gentil aos que vêm de fora.
Ora, a antropofagia pode ser agradável para quem devora, mas não para quem deve pagar o preço da assimilação. Assim, o universo institucional revive uma tradição nacional tão vetusta quanto infame: a do favorecimento da imigração, sim, mas com alta seletividade, ao longo de uma história em que aos negros estrangeiros só se abririam as portas enquanto chegassem pelos porões do cativeiro.

Centro de cobiça



Para estudioso, o poder imobiliário ficou acima do interesse público na região, que é bem mais que uma cracolândia

28 de janeiro de 2012 | 16h 00 Aliás
Mônica Manir - O Estado de S.Paulo
No apartamento que levou 25 anos para pagar, o cientista político Lúcio Kowarick caminha lentamente, trazendo lá de dentro dois livros seus. Um deles, Viver em Risco, ganhou o Prêmio Jabuti 2010 na categoria Ciências Humanas. O outro, São Paulo: Novos Percursos e Atores, também da Editora 34, é trabalho recente e mote para esta entrevista, numa semana em que a cidade aniversariou, o Nova Luz empacou e o prefeito Gilberto Kassab escapou de uma chuva de ovos que lambuzou sua performance na Praça da Sé.
Kowarick orienta alunos na USP e já foi pesquisador visitante nas universidades de Londres, Paris e Oxford. No livro e na conversa, focou-se no centro de São Paulo, tratando especialmente de dois pontos: o estupendo valor de troca da região, que seguiria a lógica do lucro especulativo, e seu intenso valor de uso, local de trabalho e de moradia. Daí que afirma: "Não dá para falar em decadência". Para Kowarick, o centro não é território de transbordo, nem reduto de drogados, nem terra de ninguém. "No processo de renovação urbana, e apesar do discurso higienista, a população tem o direito de permanecer ali." Reconhecido por sua pesquisa nos anos 70 das periferias que nasciam e cresciam desassistidas pelo Estado, ele hoje estuda com afinco os cortiços da cidade e sua surpreendente população de 600 mil pessoas, tema de mais um artigo - quiçá outro livro - que está por vir.
Em liquidação?
"O centro da cidade tem um dinamismo, entende? Não é uma área de transbordo, pela qual a população simplesmente passa. Bem verdade que houve uma transferência do comércio de alto e médio padrão que existia ali para outras zonas, como a Faria Lima e a Paulista, e em seguida a Berrini e a Marginal do Pinheiros. Hoje o padrão de consumo é outro. A casa Mappin, que era de luxo, mudou de nome e tornou-se popular. Há um comércio de rua bastante grande e em certas regiões o metro quadrado vale muito, como na 25 de Março, com preços iguais aos de muitas lojas de shopping. Apesar de certo descaso da administração com o lugar, a Marta (Suplicy) levou a Prefeitura para o antigo prédio Matarazzo e uma série de secretarias para o entorno. O governo do Estado também começa a alocar serviços ali. As sedes dos bancos saíram, mas a concentração bancária continua forte na região. Isso gerou empregos. Não dá para falar em decadência.
Cortina de fumaça
"Houve uma quase premeditação de se dizer que a cracolândia era maior do que de fato era. Ela se resumia a uma zona bem pequena, a algumas ruas, e fizeram com que toda a área que supostamente passaria por um processo de reurbanização fosse chamada assim. É como se, de um foco pequeno, você contaminasse toda uma região para, enfim, se não deteriorar essa área, colocar os preços mais embaixo e facilitar uma intervenção. Agora, os interesses privados não têm se mostrado muito dispostos em intervir neste momento. Estão provavelmente esperando que o preço dos imóveis caia para poder comprar e revender por um valor bem mais alto.
Bate-se antes
"Olha, a nossa polícia é uma polícia violenta. Existe a polícia de controle, uma inovação importante, porém ainda muito reduzida. A proposta é livrar a cidade do que chamam de sujeira, da população pobre, miserável, de extrema baixa renda, dos consumidores de drogas. Claro que um morador de rua na porta de uma loja atrapalha o negócio do comerciante e ninguém quer um sem-teto na frente de casa. Mas não tem sentido usar gás lacrimogêneo e bala de borracha e ainda espancar uma população desvalida. Deviam amparar. A dispersão, no caso da cracolândia, compromete o trabalho de uma série de organizações que estão tentando tirar essas pessoas desse estado de decomposição física e mental.
Forças intrínsecas
"O Estado, nos seus vários níveis, não é neutro. Ele sofre pressão de grupos extremamente fortes que atuam dentro das burocracias estatais, nas secretarias, nas assembleias de vereadores. Isso é amplamente conhecido. E o poder imobiliário e financeiro é um deles. A população pobre, em comparação com esses grupos, tem pouca força relativa. Os movimentos sociais ficam na defesa, tentam conseguir um pouco aqui, um pouco lá, mas nunca o suficiente para impedir o que aconteceu em Pinheirinho, por exemplo. Ou fazer um projeto alternativo ao Nova Luz, que traz uma inovação complicada: a Prefeitura vende ao proprietário o direito de ele desapropriar. Estão dando ao sistema privado uma ingerência que a princípio é atributo, é direito e é dever do poder público. O interesse privado vai procurar o lucro, enquanto o público deveria procurar o bem do município. Não precisa pensar apenas na população de baixa renda, mas na mistura social, em várias faixas, que é a forma de convivência mais adequada.
Invasão x ocupação
"Se você falar em ‘invasão’ na frente do líder de um movimento social, é expulso daquele lugar. Eles dizem ‘ocupação’. É uma questão semântica. Ocupar implica o direito de estar lá. Invadir significa espoliar o direito do outro. Falando nisso, em novembro sete prédios foram ocupados simultaneamente no centro de São Paulo. A luta não é somente uma luta concreta, de conseguir este ou aquele favor. É uma luta ideológica. Se um interessado na Nova Luz vence nas palavras, se o seu discurso se torna hegemônico, se convence as pessoas de que é um projeto que deve ser feito, se tem a mídia a favor, os políticos a favor, o poder econômico a favor, ele consegue convencer a população de que vai higienizar a cidade. Essa ideia de limpeza é antiquíssima. Os primeiros interventores do município eram médicos higienistas, que combateram as febres, a varíola, a tuberculose.
Instrumentos à mão
"Historicamente, no Brasil, toda renovação urbana, na qual se demolem residências em péssimo estado e se levantam prédios em seu lugar, implica expulsão da população. A renovação aumenta o preço dos aluguéis e dos imóveis, o que torna impossível aos pobres se fixarem lá. Aliás, esse é um fenômeno que ocorre também na periferia. Se você tem uma área relativamente desprovida de serviços e estende até ela a rede de água e esgoto, há uma valorização que tende a expulsar para longe a população mais pobre. Ao mesmo tempo, entre 20% e 25% dos imóveis do centro de São Paulo estão vazios, sejam comerciais ou residenciais. Estão ociosos. Muitos têm problemas de herança, os herdeiros não conseguem se ajeitar, deixam de pagar o IPTU, o imposto sobe, os imóveis vão se deteriorando e acabam abandonados. O Estatuto da Cidade, que é muito forte, e o IPTU progressivo, que taxa os imóveis vazios, são instrumentos à mão para conter a especulação imobiliária e prover moradia para quem não a tem. Se fossem aplicados de maneira mais radical...
Outra casa, outra vida
"À parte o BNH, que foi uma política habitacional massiva voltada para a classe média-média, nunca houve algo do gênero para a população de baixa renda. O Minha Casa, Minha Vida engatinha, não gastam o dinheiro que foi alocado, é uma coisa que ainda não deslanchou. Mas no fundo é o seguinte: ou se financia a habitação para a classe pobre ou ela não tem dinheiro para pagar por isso. Não tem. Os programas existentes hoje exigem uma burocracia que atrapalha muito e ainda excluem grande parte da população. As experiências europeias são de ajudas subsidiadas, seja do setor privado, seja do setor público subsidiando o setor privado. A Paris do século 19, por exemplo, era uma miséria total. Veja Os Miseráveis, de Victor Hugo. Acabou isso. Depois da 2ª Guerra houve na França uma outra guerra, contra os cortiços, com renovação de bairros inteiros. Mas a população que morava lá tinha a prerrogativa de continuar lá. Não foi um processo de expulsão.
Varal caro
"Uma pesquisa antiga, de 1993, estima que 600 mil pessoas vivem em cortiços na capital. Os movimentos sociais calculam em 1 milhão atualmente. O cortiço, na verdade, já chegou a abrigar 60% da população da cidade, e hoje a especulação nesse espaço é absurda. Cálculo feito pelo engenheiro Luiz Kohara afirma que o metro quadrado dos cortiços vale três vezes mais que o metro quadrado de um apartamento normal no centro - lembrando que são três, quatro pessoas dividindo o mesmo aluguel num espaço exíguo e sob enorme promiscuidade. É um chuveiro para 20 pessoas, uma privada para 20 pessoas, a convivência é extremamente difícil, se ouve o barulho dos vizinhos, da televisão, das brigas... Ao mesmo tempo, em relação às favelas e à periferia, o cortiço é muito pouco estudado. Há quem more ali faz muito tempo, mas outros estão de passagem até conseguir um lugar melhor. Ou seja: é uma população difícil de ser medida, que ocupa principalmente casarões e paga aluguel combinado verbalmente, sem papel, sem compromisso, e portanto bastante alto.
Puxadinho, puxadinho meu
"A casa é um abrigo contra a intempérie do desemprego, do acidente de trabalho, da velhice, da doença. E sem dúvida é uma questão valorativa de ter algo seu, inclusive de mandar naquela coisa. Eu quero construir aqui, fazer um muro de arrimo ali, levantar um segundo andar, um puxadinho, trazer o conterrâneo que vai ajudar a construir. Depois vou comprar um terreno mais longe, vou fazer uma segunda casa. Porque tem essa mentalidade de a população poupar construindo num lugar longínquo, onde só tem mato, o sistema de transporte é ruim, o posto de saúde está a quilômetros, mas de repente as coisas vão chegando, e quem consegue ficar ali faz uma poupança, deixa algo para os filhos. E esse algo é um teto. Mas não pense que a autoconstrução é fácil. As pessoas trabalham muito nas horas extras, nos domingos, no fim de semana. Ter uma casa não é algo simples."

Tópicos: Lúcio Kowarick

sábado, 28 de janeiro de 2012

O rombo e o marisco



25 de janeiro de 2012 | 19h40
Celso Ming
O resultado das contas do Brasil com o exterior (exceto fluxos de capital) é negativo desde 2008. Mais do que isso, esse déficit vem crescendo e tende a aumentar.
Por enquanto, a cobertura desse rombo é feita, com folga, por meio da entrada de capitais de longo prazo – como se presume serem os Investimentos Estrangeiros Diretos (IEDs). Como são capitais de boa qualidade, digamos assim, não sujeitos a retiradas súbitas, caso dos capitais especulativos, não há, até onde a vista alcança, nenhum perigo de hemorragia de moeda estrangeira, o que deixaria a economia a descoberto.
ContasCorrentes2012.jpg
Além disso, as reservas externas são de US$ 353 bilhões, altas suficiente de modo a desencorajar movimentos de fuga de capitais – risco que pode correr uma economia que gasta mais do que fatura com o resto do mundo.
Em princípio, um país em desenvolvimento como o Brasil tende a ter déficits em Conta Corrente – conjunto de transações com o exterior que englobam o fluxo de mercadorias (comércio), de serviços (transportes, turismo, seguros, juros, royalties, etc.) e de transferências de dinheiro entre parentes.
Déficits crônicos em Conta Corrente refletem, em princípio, consumo interno de bens e serviços além do conveniente. O governo Dilma não trabalha com a hipótese de que essa forte elevação do consumo prejudique o equilíbrio das contas externas, por estar mais interessado em impedir a valorização excessiva do real (alta do dólar) – fator que pode tirar competitividade do produto nacional. Mais despesas pagas ao fornecedor externo impulsionam a demanda de moeda estrangeira no câmbio interno e, pela lei da oferta e da procura, atuam contra a alta do real – consequentemente, a favor do pretendido.
Mas, a longo prazo, a perspectiva de ampliação do rombo nas Contas Correntes com o exterior não é a maior tensão que prevalece sobre as contas externas. Dentro de alguns anos, o País expandirá substancialmente receitas no exterior com exportações de matérias-primas (sobretudo minério de ferro e celulose); alimentos (soja, café, milho, açúcar e carnes); e petróleo. A médio prazo, a tendência à alta dessas commodities deverá multiplicar receitas em moeda estrangeira e reforçar a valorização do real.
O marisco, que ficará entre o rochedo e as ondas, será a indústria, com cada vez mais dificuldades para competir não só lá fora, mas também aqui dentro.
O problema de fundo não é, como tantos pensam ingenuamente, o câmbio adverso, que encarece o produto nacional e barateia o importado. É, sim, a falta de competitividade do setor produtivo brasileiro (não só o da indústria, como mostra o caso do etanol). E, por trás dessa baixa competitividade, está o alto custo Brasil: imposto demais; infraestrutura cara e ruim; juro escorchante; a quarta mais onerosa eletricidade do mundo; Justiça ineficiente; excesso de encargos sociais sobre a folha de pagamentos; burocracia; etc.
E, decididamente, o governo Dilma não está fazendo o suficiente para enfrentar essa enorme debilidade da indústria.