domingo, 8 de janeiro de 2012

A vez do 'ecoísmo'


É hora de o 'egossistema baseado no eu' dar lugar ao ecossistema de vários atores sociais, diz economista do MIT

08 de janeiro de 2012 | 3h 00
Carolina Rossetti - O Estado de S.Paulo

As mensagens de ano-novo dos líderes europeus deram o tom do que o continente pode esperar em 2012. A chanceler alemã Angela Merkel assustou com o anúncio de "um ano sem dúvida mais difícil". O presidente Nicolas Sarkozy lamentou a crise não superada e preparou os ânimos dos franceses, que "terão as vidas testadas mais uma vez". Já no Brasil, com um discurso na mão contrária, a presidente Dilma Rousseff prometeu mais emprego e maior crescimento, ainda que moderado. "Estamos transformando um momento de crise em oportunidade e entrando numa era de prosperidade", garantiu ela no rádio.
Diante de uma Europa em crise e consumida por interesses nacionais, é preciso reinventar - Jon Nazca/Reuters
Jon Nazca/Reuters
Diante de uma Europa em crise e consumida por interesses nacionais, é preciso reinventar
Na avaliação do economista alemão Otto Scharmer - que esteve em São Paulo em dezembro a convite do Instituto de Democracia e Sustentabilidade -, a presidente Dilma tem fundamento para algum otimismo. Enquanto os "egoísmos nacionais" consomem a Europa e a "paralisia política" atrapalha os Estados Unidos, ele calcula que o ano pode ser próspero por aqui. "Grandes países como o Brasil têm enormes oportunidades, mas aproveitá-las dependerá de um modelo econômico que leve em consideração os principais desníveis da sociedade atual: o ecológico, o social e o espiritual". Três fatores que identifica como pilares da crise global.
Otto mora hoje em Boston, dá aulas no Massachusetts Institute of Technology (MIT) e é fundador do Instituto Presencing, centro de pesquisas de inovação e empreendedorismo social e ambiental, sediado em Cambridge, nos Estados Unidos. Na esteira de um ano de agito nas ruas, o economista avalia que entramos numa era de ruptura. "Nosso desafio agora é conectar o mundo que está morrendo com o outro que está sendo parido, dolorosamente, e nesse processo, reinventar a economia, a educação e a democracia." Entenda como, a seguir.
A bolha agrícola

"O discurso da Europa e dos Estados Unidos é repleto de previsões sombrias. Na verdade, qualquer um que entenda o básico de economia e política levanta perspectivas desanimadoras na melhor das hipóteses. Então, o que está acontecendo? Vejo três tendências coincidindo. Primeiro, a ascensão dos Brics e o declínio relativo da Europa e dos Estados Unidos. Segundo, o temor de que a bolha financeira no Ocidente resulte numa década perdida, como a do Japão. E, terceiro, a ameaça de uma próxima bolha a estourar, a agrícola. A nossa produção de alimentos não é sustentável e levou à destruição de um terço das terras agricultáveis do mundo em 40 anos. Em paralelo, temos os egoísmos nacionais na Europa e a paralisia política entre republicanos e democratas nos Estados Unidos, o que impossibilita ao sistema político em ambos os continentes chegar a respostas adequadas em relação a essas tendências. Toda crise é um grande momento de oportunidade, mas, enquanto nos apegarmos ao passado, estamos apenas fazendo mais do mesmo.

1,5, 2,5 e 3
"Não acho que seja uma questão de otimismo ou de pessimismo. O que precisamos é de um novo modelo de pensamento econômico que vá além do falso discurso que vemos atualmente no Norte e no Sul. Esse discurso é o debate do século 20 entre os que são 'mais mercado' versus os 'mais governo'. A resposta, naturalmente, não está nessa dualidade. E sim em como podemos fortalecer a capacidade empresarial de inovar em grande escala. Como podemos reinventar o velho Estado de bem-estar do século 20 para que o governo permita a atividade empreendedora em vez de subsidiar a sua ausência? Grandes países como o Brasil têm enormes oportunidades, mas aproveitá-las dependerá da adoção de um novo modelo econômico que leve em consideração os três principais desníveis da sociedade de hoje: o ecológico, o social e o espiritual. Ou seja, como nos relacionamos com a natureza, com os outros e com nós mesmos. Resumo isso em três números: 1,5, 2,5 e 3. O primeiro representa a crise ecológica. Apesar de termos um só planeta, degradamos nosso capital natural numa escala brutal, usando os recursos de um planeta e meio, só para manter o nível atual de consumo. O desequilíbrio se manifesta nos desastres naturais, na escassez dos lençóis freáticos, nos preços de alimentos que dispararam. O segundo número representa a crise social. Há 2,5 bilhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza. O 3 dá a magnitude da crise espiritual e expressa as taxas crescentes de depressão, exaustão e suicídio. No ano 2000, de acordo com a Organização Mundial de Saúde, três vezes mais pessoas se suicidaram em relação àquelas que foram assassinadas. Políticas econômicas cegas a essas três divisões vão trazer sofrimento às suas populações e aos outros, mais cedo ou mais tarde. Na maioria dos casos, mais cedo.
Política de portas abertas

"Sinto que vivo em dois mundos. Um é o dos indicadores pessimistas que listei. Nele, as pessoas reagem às notícias com negação ou cinismo. Não sou depressivo porque vivo também num outro mundo, onde me conecto com os movimentos sociais, os empreendedores, os inovadores. Eles estão nos governos e no setor privado, começam com projetos pequenos, protótipos, ideias que vão amadurecendo e, às vezes, viram incríveis histórias de mudança. De uns anos para cá, o Brasil iniciou sua nova história. O país é uma inspiração, não só em termos de crescimento econômico. Também criou um novo paradigma de desenvolvimento, mais inclusivo. Outro exemplo concreto é a Indonésia. Depois dos atentados em Bali, em 2005, muitos achavam que o país ia se transformar no próximo Afeganistão e, basicamente, explodir numa guerra civil. Não aconteceu. Em vez disso, houve uma transição pacífica para a democracia. Como? Pela reinvenção do processo político e implementação de um modelo mais descentralizado de gestão, mais conectado com as demandas da população. Na Província de Bojonegoro, que tive a oportunidade de visitar esse ano, funcionários do governo se encontram semanalmente com a comunidade e são cobrados pela população. O que se fez ali foi fechar o ciclo de feedback entre governo e comunidade, eliminando uma comunicação mediada pela corrupção por uma de diálogo. Foi uma maneira de reinventar o processo democrático e fazer política com portas abertas.

Lições do ano velho
"Em 2011, vimos pessoas de todo o mundo se levantando contra instituições arcaicas baseadas na exclusão, como as tiranias do Oriente Médio, Wall Street e os megabancos. Isso me faz pensar que entramos numa fase da história que, em retrospecto, poderemos descrever como uma era de ruptura. Um sistema está morrendo e outro, baseado no diálogo, na inclusão de mais atores sociais, na autorreflexão e transparência, está sendo parido, dolorosamente. Nosso desafio, enquanto agentes de mudança, é fazer a conexão entre o mundo que está morrendo e o outro que quer nascer. E, nesse processo, reinventar a economia, a educação e a democracia.
De ego para eco
"Uma sociedade 4.0 é uma mudança de mentalidade. No passado, testemunhamos três estágios econômicos. O primeiro, centrado no Estado, é o estágio do planejamento e regulação. No segundo, viu-se o nascimento do setor privado, da competição como mecanismo de coordenação. Isso gerou muito crescimento e problemas, pobreza e desastres ambientais. Como resultado, veio o terceiro passo, de tentar amenizar as consequências negativas do livre mercado. Assim nasceu a previdência, os bancos centrais, as leis trabalhistas e os sindicatos. O que precisamos agora, e essa é a grande história da década, é de um quarto mecanismo de coordenação que vai complementar, não substituir, os outros três. Uma sociedade 4.0 é uma transição de uma abordagem egossistêmica, baseada no "eu", para uma conscientização compartilhada, que chamo de ecossistêmica. É uma situação em que vários atores sociais olham para um mesmo problema e produzem respostas espontâneas a partir de vários ângulos de visão. Vimos um pouco disso durante a crise do euro. Na Europa, os interesses nacionais estão colidindo com os do conjunto e não é fácil avançar além dos interesses de seu país. É um aprendizado doloroso, mas é hora de os líderes refletirem sobre si mesmos e sobre como evoluir, coletivamente. A próxima fase da evolução econômica dependerá do aprendizado de como trabalharmos e criarmos juntos. Fazer parcerias entre empresa, governo e sociedade civil. Inovar, não só em pequenos bolsões da sociedade, mas globalmente."

Câmara escura


A credibilidade do Judiciário depende não só da boa fé dos juízes, mas da imagem que passa', diz Hubner Mendes

08 de janeiro de 2012 | 3h 07
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Christian Carvalho Cruz - O Estado de S.Paulo
Num programa de TV em 1977, o obcecado Nelson Rodrigues, que faria 100 anos neste 2012, atendendo ao pedido do entrevistador e amigo Otto Lara Rezende, sapecou um conselho aos jovens que se tornaria lendário: "Envelheçam depressa! Envelheçam com urgência!", ele disse, com cara de súplica. O jurista paulistano Conrado Hubner Mendes nasceu naquele ano. Aos 34, portanto, está distante da velhice. Mas se Nelson o tivesse ouvido falar ou lido seus escritos talvez a blague fosse outra.
A corregedora Eliana Calmon negou que o CNJ tenha quebrado sigilos de juízes - Wilson Pedrosa/AE
Wilson Pedrosa/AE
A corregedora Eliana Calmon negou que o CNJ tenha quebrado sigilos de juízes
Com um doutorado em ciência política pela USP e outro em filosofia do direito pela Universidade de Edimburgo (Escócia), Mendes analisa as questões jurídicas brasileiras com solidez e clareza incomuns na sua idade e no seu meio, chegado a um vernáculo castiço. E também, por que não?, com certa intrepidez de alma juvenil. "Por trás de um juiz corrupto há, frequentemente, um advogado corrupto" e "O que explica os privilégios da magistratura, vamos ser sinceros, é o grande poder dessa carreira em se articular na defesa de seus interesses" são amostras da detida reflexão que ele faz sobre o embate que se instalou no Judiciário depois que a corregedora nacional de justiça, Eliana Calmon, afirmou que por aqui circulam "bandidos escondidos atrás da toga".
Falando de Berlim, onde complementa sua pesquisa sobre o papel de cortes constitucionais em regimes democráticos, Mendes defendeu o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) como órgão fiscalizador de desvios de conduta de juízes e desembargadores e criticou as liminares do Supremo Tribunal Federal (STF) que suspenderam momentaneamente as investigações. "Não estamos falando de controlar o mérito das decisões que cada juiz toma, para as quais sempre existiu um sistema de recursos, mas de investigar atos de corrupção e má gestão administrativa que o modelo de controle baseado exclusivamente nas corregedorias estaduais não conseguiu dar conta", afirmou. "A pretexto de corrigir abusos do CNJ, o STF pode desmontar a espinha dorsal de todo um modelo de controle pensado pelo constituinte." A seguir, as palavras do jovem jurista que não tem pressa - ou necessidade - de envelhecer.
Tem-se usado a expressão 'crise do Judiciário' para definir o atual embate entre o CNJ e magistrados contrários a investigações da classe. Existe, de fato, uma crise no Judiciário brasileiro?
Existe um conflito bastante delicado, que não é novo, sobre como controlar a atuação dos juízes. E esse conflito atingiu seu ápice neste momento em que o STF começa a restringir excessivamente os poderes do CNJ com base em interpretações bastante problemáticas sobre o significado prático de independência judicial, definido genericamente pela Constituição. Dessa maneira, aos poucos, a credibilidade do Judiciário em geral, e do STF em particular, que já não eram muito altas, passa a ser mais seriamente atingida.
Há algum risco institucional nessa 'crise'?
Há um lugar-comum que diz que situações de crise apresentam não somente riscos de retrocesso, mas também oportunidades de aperfeiçoamento. Temos que aprofundar um pouco esse lugar-comum. Para evitar o retrocesso e facilitar o aperfeiçoamento é necessário ter cuidado com a maneira pela qual percebemos essa "crise" e formulamos o diagnóstico. Falar do Judiciário em abstrato, como um todo orgânico e homogêneo, não ajuda a entender a natureza do que está ocorrendo. O Judiciário brasileiro vem, aos poucos, tornando-se um poder razoavelmente plural. Há variações não desprezíveis entre o que pensam juízes de diferentes instâncias, regiões, gêneros, idades ou origens socioeconômicas. Essa pluralidade traz consigo disputas ideológicas internas, controvérsias sobre o papel do juiz, sobre métodos de interpretação do direito e assim por diante. A tentação de descrever o atual contexto como um conflito que opõe o Judiciário de um lado e a sociedade de outro leva a conclusões distorcidas. Há forças modernizantes e atrasadas dentro e fora do Judiciário, e temos que mapear adequadamente essas divisões para poder jogar do lado certo desse conflito político.
Qual é o lado certo?
Bom, considero que a posição moral e juridicamente mais defensável seja a de aceitar as competências que o constituinte conferiu ao CNJ. Não porque o constituinte possa decidir o que bem entenda e o STF deva abaixar a cabeça, mas porque, nesse caso, a violação constitucional está longe de ser incontroversa. O STF não tem o monopólio do significado da Constituição. Ele tem, sim, o poder de dar a decisão final numa ação judicial específica. Se essa decisão for implausível, contudo, cabe à sociedade se mobilizar e propor novas ações.
O Judiciário precisa de controle externo?
É um equívoco chamar o CNJ de "controle externo". O art. 92 da Constituição inclui, entre os órgãos do Poder Judiciário, o CNJ. O CNJ, então, integra a estrutura do Judiciário. Mais importante, o art. 103-B especifica quais são os 15 membros do CNJ: 9 membros são juízes, 2 são do Ministério Público, 2 são advogados indicados pela OAB e os 2 restantes são cidadãos de "notável saber jurídico" indicados pelo Congresso Nacional. Portanto, numa leitura bem simplista, são nove do próprio Judiciário contra seis "de fora". No entanto, veja quem são esses seis supostamente de fora: todos membros da mesma comunidade jurídica, portadores do diploma de direito, educados sob os mesmos ritos e convenções. Não se trata de um órgão lá muito plural. Chamar o CNJ de "controle externo" dá a chance de juízes atacarem esse órgão sob o pretexto de que haveria ameaça à independência judicial. Não deveríamos aceitar a discussão nesses termos. O que há é um embate entre dois modelos de controle: um mais centralizado, no qual o CNJ teria mais poder para intervir nas corregedorias estaduais, e outro mais regionalizado, no qual o CNJ teria um papel subsidiário. Na minha opinião, o modelo mais centralizado faz muito sentido no contexto brasileiro. Ele aplicaria de maneira mais plausível o princípio geral de desenho institucional segundo o qual "ninguém deve julgar em sua própria causa", ou seja, os controladores não deveriam ser os mesmos que os controlados. Mas, é claro, ele desestabiliza muitas práticas ossificadas e por isso sofre ataques.
O CNJ extrapola suas funções, como acusam algumas entidades de juízes?
O modelo de controle que tem o CNJ como peça central não está inteiramente pronto e consolidado, mas em processo de construção. É ao STF, na interação com o CNJ, que cabe definir os limites de atuação desse órgão. Sempre haverá uma ou outra decisão do CNJ da qual discordaremos, mas não me parece haver qualquer evidência, até agora, de que ele esteja agindo de maneira abusiva. Eventuais desvios do CNJ devem ser corrigidos pelo STF. Por essa mesma razão, é ainda mais importante ficarmos atentos às decisões do STF. Afinal, a pretexto de corrigir abusos do CNJ, o STF pode desmontar a espinha dorsal de todo um modelo de controle pensado pelo constituinte.
Como você avalia as liminares dos ministros Marco Aurélio Mello e Ricardo Lewandowski, do STF, suspendendo as investigações do CNJ?
Uma liminar serve para garantir que, antes de uma decisão de mérito, certos direitos não sejam irreversivelmente violados. O STF postergou, por meses, uma decisão da maior urgência . De repente, no último dia antes do recesso judicial, produz duas liminares profundamente interventivas que sobreviverão, pelo menos, até o reinício do ano judicial. O tamanho do dano que essas liminares causarão vai depender de quando o plenário vai se reunir para, finalmente, decidir a controvérsia. O fato de as liminares suspenderem as investigações por algumas semanas me preocupa menos do que a clara tendência de essas liminares defenderem, no mérito, uma visão bastante restritiva sobre o CNJ. Se essas visões prevalecerem, ou se o colegiado demorar muito para finalmente produzir uma decisão, aí sim o problema se agrava. Se o STF ratificar o entendimento das liminares numa decisão final, rejeitará um entendimento do constituinte que é plenamente compatível com a Constituição. Se permanecer em silêncio por muito tempo, como faz em tantos casos, na prática essas liminares passam a definir os limites do CNJ. Como o STF não segue nenhuma regra explícita sobre o momento de suas decisões, exceto seu próprio instinto político, não temos como saber quando essa decisão virá.
De modo geral, os ministros argumentaram que as liminares foram necessárias para preservar a Constituição. Faz sentido?
Isso revela um traço bastante presente no estilo de argumentação do STF. De premissas genéricas e abstratas, das quais dificilmente alguém vai discordar (tais como a independência e autonomia entre poderes, a dignidade humana, etc.), infere-se abruptamente uma solução para o caso concreto. A complexidade desse caso concreto, porém, exigiria muitos outros passos argumentativos entre as premissas e as conclusões. A liminar do ministro Marco Aurélio é um bom exemplo. Ela se inspira numa decisão anterior do ministro Celso de Mello, no qual este diz que o CNJ deve obedecer, nas suas palavras, ao "postulado da subsidiariedade", sem o qual haveria uma "tensão dialética" que comprometeria o "harmonioso convívio entre o autogoverno da magistratura e o poder de controle e fiscalização outorgado ao Conselho Nacional de Justiça". A ideia de subsidiariedade do CNJ não foi estabelecida pela Constituição, e não é nada óbvio que a independência judicial requeira uma atuação meramente subsidiária do CNJ. É essa interpretação que está em disputa, mas os argumentos que até agora foram postos na mesa pelo STF não fazem muito mais do que repetir generalidades do texto constitucional e dali extraírem automaticamente suas conclusões. Dialogar com esse estilo de decisão fica difícil.
O presidente do TJ-SP, Ivan Sartori, acusou o CNJ de desrespeitar as garantias dos magistrados e comparou a ação do órgão aos 'tempos da ditadura'. O que o você acha?
É uma comparação lamentável, que revela alguns dos piores vícios da retórica política. As garantias dos magistrados são indispensáveis para o bom funcionamento do Estado de Direito, mas elas não servem para blindar os magistrados de qualquer investigação sobre desvio de conduta. Não estamos falando de controlar o mérito das decisões que cada juiz toma, para as quais sempre existiu um sistema de recursos, mas de investigar atos de corrupção e má gestão administrativa que o modelo de controle baseado nas corregedorias estaduais não conseguiu dar conta. Claro que investigações devem respeitar os requisitos legais e proteger a imagem e a honra do juiz enquanto nada for provado, mas daí a dizer que a atuação do CNJ lembra a ditadura existe uma grande distância.
E quanto à defesa que Sartori fez dos dois meses de férias para a magistratura, afirmando que se trata de 'preservar a sanidade mental' dos juízes?
Uma declaração infeliz e surpreendente. Em geral, a falta de bons argumentos para sustentar esse privilégio em relação a outras carreiras públicas é tão patente que juízes preferem permanecer em silêncio sobre ele, e agir apenas nos bastidores para que tal situação seja mantida. Uma forma comum de a magistratura defender seu pacote de privilégios é dizer que a função da judicatura demanda grande responsabilidade, dedicação e estudo, e que para tanto a sociedade deveria pagar o preço adequado. Uma segunda forma, ligada à primeira, é dizer que juízes precisam de incentivos econômicos para seguir a carreira em vez de se dedicar a profissões supostamente mais rentáveis como a advocacia privada, ou então para não serem tentados pela corrupção. Sobre o primeiro argumento, eu perguntaria por que a responsabilidade, dedicação e estudo de tantas outras profissões públicas, como as de médico ou professor, seriam menores (e, supondo que fossem, por que seriam tão desproporcionalmente menores). O segundo argumento, por sua vez, faz diversas suposições difíceis de aceitar: presume que a vocação para a profissão cumpre um papel menor, que a advocacia é sempre mais rentável, que salários altos minimizariam a corrupção. Essas premissas, mesmo que sejam plausíveis até certo ponto, não conseguem sustentar a imensa desproporção dos benefícios entre essa carreira pública específica e tantas outras. O que explica esse descompasso, vamos ser sinceros, é o grande poder dessa profissão em se articular na defesa de seus interesses.
A impunidade no Judiciário é maior do que nos outros poderes?
É difícil aferir e comparar os graus de impunidade. Provavelmente, o Judiciário é o poder que permanece mais obscuro. Mas não podemos deixar de lembrar outras coisas. Está em jogo o aperfeiçoamento do Estado de Direito como um todo, e para isso precisamos estar mais atentos ao comportamento dos seus dois principais operadores: não somente do juiz, mas também do advogado. Por trás de um juiz corrupto há, frequentemente, um advogado corrupto. E a corrupção pode ter níveis de gravidade diferentes, alguns não punidos pela lei. Há alguns hábitos da interação entre advogados e juízes que são vistos como normais, mas que muitas vezes são modalidades sutis de patrimonialismo, de confusão da coisa pública com o interesse privado.
A proposta da corregedora Eliana Calmon de proibir que integrantes do Judiciário usem transporte ou hospedagem pagos por pessoas físicas ou empresas em eventos da classe tem relação com essas 'modalidades sutis de patrimonialismo'?
Aparentemente, sim. Não conheço essa proposta no detalhe, e por isso fica difícil formar uma opinião a respeito. No entanto, ela parece tentar regular exatamente algumas dessas interações entre juízes e a sociedade em geral que ainda não são vistas como um problema. Ela parece tentar estabelecer uma noção mais forte de "conflito de interesses", que os institutos da suspeição e do impedimento, na prática, têm se mostrado incapazes de implementar. É preocupante que uma empresa privada financie um congresso de juízes num resort turístico, ou que um juiz se sinta absolutamente à vontade para aceitar o convite que uma entidade de advogados faz para que ele participe de um jantar em sua própria homenagem, ou coisas assim. Não basta que juízes digam que, na hora de julgar, a sua imparcialidade permanece intocada. Eu acredito que a maioria dos juízes, de boa fé, de fato decida de forma indiferente a esses mimos, apesar de ser difícil controlar essa imparcialidade de forma consciente. Seja como for, a credibilidade da instituição judicial depende não somente da boa fé dos juízes, mas da imagem que a instituição passa. E essas práticas só prejudicam tal imagem. Parafraseando aquela máxima sobre a mulher de César, não basta que o juiz seja honesto, mas que pareça honesto.
O Judiciário brasileiro é democrático?
Há vários ângulos pelos quais se pode mensurar a qualidade democrática do Poder Judiciário. Quatro ângulos são da maior importância: primeiro, quão plural é sua composição; segundo, quão acessível ele é para os diversos estratos sociais; terceiro, quanto é transparente e aberto ao diálogo; quarto, quanto suas decisões reforçam ou confirmam valores democráticos. Esse último ângulo é o mais difícil e trabalhoso de quantificar, pois em última análise requer que avaliemos quanto o Judiciário interpreta adequadamente a Constituição e a lei nas suas decisões cotidianas. Nisso eu prefiro não entrar aqui. Os dois primeiros ângulos, por sua vez, já têm sido quantificados pela ciência política: quanto a sua composição, o Judiciário tem se tornado mais plural (em termos de gênero, origem socioeconômica, etc.) no que diz respeito à primeira instância, na qual se entra por concurso público, mas a pluralidade decai significativamente quando se trata de promoção para instâncias superiores, que depende de processos internos ou nomeações do chefe do Executivo; quanto ao acesso de grupos sociais menos favorecidos, há vários avanços importantes que a criação dos juizados especiais e da defensoria pública, entre outras medidas inclusivas, tem ajudado a construir, mas há ainda obstáculos e práticas excludentes. Por fim, a transparência é também complexa e pode ser vista de dois modos: a transparência na gestão de seus recursos, que é exatamente a luta que o CNJ agora enfrenta; e a transparência argumentativa de suas decisões. Em resumo, acho que hoje temos um Judiciário um pouco mais democrático do que há 10 ou 15 anos, mas com um caminho bastante longo a percorrer.

Questão nacional e desglobalização:: Rubens Ricupero



Se não houver eficácia em neutralizar a desvalorização de moedas estrangeiras, a economia será destruída

A nova política industrial indica a opção do governo por uma desglobalização moderada como remédio à agonia da indústria e ao perigo do agravamento do panorama social e político.

Em artigo de notável lucidez em "O Estado de S. Paulo", Luiz Werneck Vianna detectou a volta da questão nacional como resultado de dois movimentos simultâneos. De um lado, o agronegócio, vitorioso nas exportações, invade o núcleo duro do poder (na votação do Código Florestal, por exemplo). Do outro, a indústria cede o lugar central que ocupou durante 80 anos na realização do projeto nacional ao perder a capacidade de assegurar a modernização da economia e a integração do mercado interno.

Agravada por problemas brasileiros (juros, impostos, custo Brasil), a crise do projeto nacional não é culpa do agronegócio, mas da combinação de dois fatores, ambos externos: a valorização da moeda e o "choque de mão de obra" provocado pela inclusão de centenas de milhões de chineses no circuito manufatureiro mundial.

Na persistência desses dois fatores, uma pura saída nacional -forte redução dos juros, eliminação do custo Brasil, salto de competitividade- é na prática inexequível. Se, em condições externas mais favoráveis, pouco dessa agenda caminhou nos 17 anos do real, seria irrealista esperar avanços decisivos nos próximos dois ou três anos, quase a duração do atual governo.

Sobretudo porque eles vão coincidir com o recrudescimento da crise nos EUA, na Europa e no Japão, onde os recentes descalabros só nos deixam a certeza de que a desvalorização do dólar, a manipulação das moedas asiáticas e o excesso de liquidez financeira continuarão a criar para o Brasil ameaças das quais temos de nos defender.

Esse quadro é anormal e de exceção, obrigando também a respostas excepcionais. Pertencem a esse gênero as medidas de alívio anunciadas, que representam, sem dúvida, um recuo estratégico limitado em relação a compromissos assumidos nas negociações comerciais.

A dúvida não é a heterodoxia do favorecimento à produção local, mas sua modéstia, comparada ao gigantesco socorro dos americanos à GM e a ações similares de europeus, argentinos e outros. Pois, se não houver razoável eficácia em neutralizar a desvalorização competitiva de moedas estrangeiras e o excesso de ingressos financeiros, a economia brasileira será destruída antes de ter tempo para avançar na agenda interna de competitividade.

A implacável valorização do real só não inviabilizou a exportação de commodities agrícolas e de minério de ferro porque o aumento dos preços internacionais compensou parcialmente os custos internos em alguns casos. Não faltam setores agrícolas onde a margem já desapareceu ou quase.

Não fosse a contribuição isolada das commodities agrícolas e minerais, a crise do projeto nacional estaria em fase terminal. Uma desglobalização temporária e defensiva capaz de abrir espaço para elevar a competitividade interna interessa, assim, não apenas à indústria, mas a todos os setores. A questão nacional passa não pela disputa entre setores, mas pela sua união, junto aos sindicatos, contra a importação da crise externa.

FONTE: FOLHA DE S. PAULO