Calçadas e sarjetas drenantes: projetos orientados podem aumentar a capacidade das cidades na retenção das águas de chuvaGeólogo escreve segundo artigo de série sobre medidas não estruturais para a minimização de enchentes | ||||||
Enchentes: ajardinem suas calçadas Com o artigo anterior "Enchentes: não tirem a serapilheira", iniciamos uma série de textos dedicados à demonstração da importância das medidas ditas não estruturais no combate às enchentes urbanas. Esses textos estão concebidos para, o mais didaticamente quanto o espaço permite, orientar ações técnicas que podem perfeitamente ser adotadas pela sociedade e pelas administrações públicas desde já, por sua simples deliberação, sem nenhuma necessidade burocrática que os desestimule a tanto. Hoje falaremos das calçadas drenantes e das sarjetas drenantes. Mas antes, vamos recuperar o que já foi esclarecido no primeiro artigo sobre as principais causas das enchentes urbanas. E vamos todos também saber que as medidas não estruturais são aquelas que, inteligentemente, atacam diretamente as causas das enchentes e não somente suas consequências. Sobre as principais causas de nossas enchentes urbanas, não há hoje mais a menor dúvida sobre quais sejam: a impermeabilização generalizada da cidade, o excesso de canalização de cursos d'água e a redução da capacidade de vazão de nossas drenagens pelo volumoso assoreamento provocado pelos milhões de metros cúbicos de sedimentos que anualmente provêm dos intensos processos erosivos que ocorrem nas frentes periféricas de expansão urbana. Esse quadro determina o que podemos chamar a equação das enchentes urbanas: volumes crescentemente maiores de água, em tempos sucessivamente menores, escoados para drenagens naturais ou construídas progressivamente, incapazes de lhes dar vazão.
Diante de um cenário assim colocado, qual seria a providência mais inteligente e imediata para combater as enchentes? Sem dúvida, concentrar todos os esforços em reverter a impermeabilização das cidades, fazendo com que a região urbanizada recupere sua capacidade original de reter as águas de chuva, seja por infiltração, seja por acumulação. Concomitantemente, promover um intenso combate técnico à erosão provocada por obras pontuais ou generalizadas de terraplenagem. Ou seja, fazer a lição de casa, parar de errar. Parece fácil, mas não é. Essa mudança de atitude exigirá uma verdadeira revolução cultural na forma como todos, especialmente nossa engenharia e nosso urbanismo, até hoje têm visto suas relações com a cidade. Tomada a decisão dessa mudança cultural, haverá à mão, inteiramente já desenvolvido, um verdadeiro arsenal de expedientes e dispositivos técnicos para que esse esforço de redução do escoamento superficial das águas de chuva seja coroado de sucesso: calçadas e sarjetas drenantes; pátios e estacionamentos drenantes; valetas, trincheiras e poços drenantes, reservatórios para acumulação e infiltração de águas de chuva em prédios, empreendimentos comerciais, industriais, esportivos e de lazer; e multiplicação dos bosques florestados, ocupando com eles todos os espaços públicos e privados livres da cidade.
E então chegamos ao ponto. Considerada essa enorme importância em reter águas de chuva, faz sentido que nossas calçadas sejam em sua quase totalidade totalmente impermeáveis? Somente a cidade de São Paulo tem cerca de 17 mil km de ruas. Obviamente, há nesse conjunto ruas e calçadas de todos os tipos, mas vamos considerar que em ao menos metade dessa extensão total haja condição de se implantar faixas permeáveis, com largura média de 1 m (sempre com o cuidado de se manter uma faixa cimentada lisa mínima de ao menos 0,90 m para o trânsito de uma cadeira de rodas). Teríamos então algo como 17 mil m2 (consideradas as duas calçadas de cada via) de áreas francamente apropriadas para absorver e reter águas de chuva. Para o estímulo à adoção dessa simples e agradável providência, uma boa ideia seria a criação de um incentivo tributário para o proprietário frontal implantá-las e mantê-las. Medida isoladamente suficiente para evitar enchentes? Claro que não, mas que, se consideradas como parte de um enorme conjunto de outras medidas não estruturais de mesma natureza, seguramente mudariam a história desses fenômenos urbanos.
Vamos a um outro ótimo expediente: as sarjetas drenantes. As águas de chuva que caem sobre a cidade em algum momento correm sobre sarjetas, hoje paradoxalmente totalmente impermeáveis. Sarjetas orientadamente projetadas para permitir a infiltração e até a acumulação de águas de chuva funcionariam como verdadeiras armadilhas para a redução do escoamento superficial. Em um programa de implantação progressiva dessas sarjetas drenantes, e ainda usando o exemplo da cidade de São Paulo, teríamos ao final a colossal extensão de 34 mil km de um ótimo expediente de retenção de águas de chuva. No próximo artigo, trataremos de outras medidas não estruturais de combate às enchentes: os reservatórios domésticos e empresariais. Geólogo Álvaro Rodrigues dos Santos (santosalvaro@uol.com.br) Ex-diretor de planejamento e gestão do IPT e ex-diretor da divisão de geologia; autor dos livros "geologia de engenharia: conceitos, método e prática", "a grande barreira da serra do mar", "diálogos geológicos" e "cubatão"; consultor em geologia de engenharia, geotecnia e meio ambiente e membro do conselho de desenvolvimento das cidades da Fecomércio. |
segunda-feira, 19 de dezembro de 2011
Contra enchentes, por Alvaro Rodrigues dos Santos
Estado só gastou metade da verba contra inundação
Contestações na Justiça atrasaram contratação de obras neste ano
19 de dezembro de 2011 | 3h 03
O Estado de S.Paulo
Mesmo com verba em caixa, a maioria das medidas antienchente prometidas pelo governo do Estado não saiu do papel neste ano. Dados da execução orçamentária mostram que só R$ 378 milhões, dos R$ 694 milhões reservados para obras de contenção, foram empenhados em serviços até agora. O valor representa 54% do previsto.
Segundo a Secretaria de Estado de Recursos Hídricos, os trabalhos foram prejudicados porque muitas empresas que participaram dos processos de licitação ao longo do ano apresentaram contestações na Justiça, atrasando as contratações.
Da lista de ações anunciadas pela gestão Geraldo Alckmin (PSDB), o serviço de desassoreamento dos Rios Tietê e Pinheiros foi o que mais evoluiu. Mais de 3,2 milhões de litros cúbicos foram retirados dos leitos dos rios, de acordo com a pasta. A meta era chegar a 3,6 milhões.
Na última semana, o Departamento de Águas e Energia Elétrica (Daee) anunciou que entrará em operação, nos próximos dias, duas novas barcaças, dois novos rebocadores e uma nova plataforma para o desassoreamento do Tietê. Os equipamentos vão trabalhar no trecho localizado entre a Barragem da Penha e a foz do Rio Pinheiros e aumentarão a capacidade de transportar os sedimentos recolhidos no serviço.
Na contramão, só na última semana é que o governo iniciou o trabalho de limpeza dos piscinões de Osasco, Taboão da Serra, Embu das Artes, Diadema, Mauá, São Bernardo, Santo André e São Caetano. Os reservatórios da capital são de responsabilidade da Prefeitura.
Muros. Já a construção de muros antienchente ao longo da Marginal do Tietê e do canal de circunvalação na margem direita do Parque Ecológico do Tietê - ambos para reduzir risco de transbordamento do rio - só sairá em 2012.
No orçamento estadual do próximo ano ainda está prevista a construção de pelo menos dois piscinões: o Jaboticabal e o Guamiranga, ambos na divisa da capital com São Caetano do Sul, no ABC. Na última semana, a cidade ficou debaixo d'água e moradores precisaram ser resgatados de bote.
Para o geólogo Álvaro Rodrigues dos Santos, ex-diretor do Instituto de Pesquisas Tecnológicas, tanto as medidas pontuais programadas pela Prefeitura quanto as grandes obras do Estado são necessárias, mas insuficientes. "É preciso recuperar a capacidade das cidades de reter água da chuva, com disseminação de bosques, criação de reservatórios domésticos e adoção de calçadas e pátios drenantes." / ADRIANA FERRAZ E FELIPE FRAZÃO
domingo, 18 de dezembro de 2011
JK e o exílio
Celso Lafer - O Estado de S.Paulo, em 18/12/2011
O prepotente arbítrio do regime autoritário implantado em nosso país em 1964 obrigou Juscelino Kubitschek a trilhar o caminho do exílio. Esse período da sua vida é menos conhecido, pois o foco generalizado das lembranças da sua trajetória são, muito compreensivelmente, os "anos dourados" da sua Presidência (1956-1961), na qual soube combinar democracia e desenvolvimento, descortinando, de maneira duradoura, novos horizontes para o País.
As memórias, que começou a redigir no exílio e só foram publicadas na segunda metade da década de 70, não tratam desse período. JK considerou-as um complemento da sua vida pública, pois estavam voltadas para narrar, em três volumes, "de onde veio" (A Experiência da Humildade, 1976), "como veio" (A Escalada Política, 1976) e "a que veio" (50 anos em 5, 1978). Tiveram o intuito de expor a especificidade de sua trajetória, tendo em vista que "mal deixou o poder se viu envolvido num temporal que não mais permitiu que a sua obra fosse examinada com isenção", como me escreveu em carta de 10 de fevereiro de 1972, comentando a minha tese de doutoramento de 1970 na Universidade de Cornell, nos EUA, na qual examinei a criatividade do seu bem-sucedido Programa de Metas.
JK faleceu em agosto de 1976. Em vida presenciou apenas a publicação do primeiro volume de suas memórias, que tiveram o título geral de Meu Caminho para Brasília. Pretendia dar continuidade à sua narrativa tratando do período subsequente de sua vida, o do temporal político que se seguiu à sua luminosa Presidência. Foi o que expôs Adolpho Bloch, seu dedicado amigo dos momentos difíceis e editor, na nota de abertura do 50 anos em 5. Nela menciona que daria sequência ao projeto editorial do qual foi patrono, incumbindo Carlos Heitor Cony, que participara da equipe do projeto, de elaborar um livro com base nas cartas, nas notas e nos apontamentos deixados por JK.
Cony desincumbiu-se da tarefa com o Memorial do Exílio, publicado em 1982, no qual narra os ocasos e as dolorosas sucessões de perdas que se seguiram à fulgurante escalada política de JK e examina os 976 dias no exílio, cumpridos em duas etapas: primeiro, em Paris e, depois, basicamente em Lisboa e Nova York.
Novas facetas do cotidiano do exílio de JK podem ser apreciadas em recém-lançado documentário idealizado por Carlos Alberto Maciel e dirigido por Bertrand Tesson e Charles Cesconetto, que tem como eixo um inédito depoimento de Maria Alice Gomes Berengas, sua dedicada e leal secretária no período francês da sua expatriação. O documentário transmite e contextualiza, com a contribuição de sua filha Maria Estela e de amigos, como o exílio foi penoso para JK.
Dante Alighieri, que morreu no exílio, fala do amargor do pão dos estranhos e da dureza de subir e descer a escada alheia (Paraíso, XVII). Dessa experiência vivida com dignidade por JK no exílio dou o meu testemunho, pois foi em Nova York, cidade que definiu como um triste "rinoceronte de aço", que o entrevistei, em 1966 para a elaboração da minha tese sobre o Programa de Metas.
JK jamais esqueceu as suas origens de menino pobre de Diamantina, mas nunca teve, mesmo quando jovem, o medo provinciano do diferente, tanto que nos anos 30, logo após a sua formatura em Medicina, estudou em Paris e viajou pela Europa e pelo Oriente. "Acreditava nos brasileiros, confiava no país", como escreveu seu biógrafo Ronaldo Costa Couto. Por isso, na sua trajetória pública, foi um nacionalista destituído de xenofobia, aberto ao que o mundo podia oferecer para o desenvolvimento do País. Entretanto, como escreveu a propósito dos caminhos do mundo, "uma coisa é viajar com o bilhete de volta no bolso", outra, como realçou, é o castigo, inventado pelos gregos, do ostracismo: "Ostracismo, exílio ou que nome tenha é a mesma coisa que arrancar uma árvore com todas as raízes e levá-la para ambiente diferente. É a mesma coisa que matá-la".
Para um homem público o exílio é uma dura provação e o ostracismo, lembrado por JK, significava para o indivíduo um duro desterro, um radical estranhamento de si mesmo.
O exílio é um mal de várias faces. Trouxe a JK a perda da condição de sustento de vida (lembrada no documentário); a privação da liberdade cívica, por obra da cassação do seu mandato de senador e de seus direitos políticos; a perda do convívio com os amigos, que tanto apreciava; a injustiça de ver a sua reputação contestada e injuriada pela ação política do regime militar; o cerceamento de sua liberdade da palavra até no exílio, pela lamentável ação dos serviços de inteligência do Brasil e da França (como mostra o documentário); e, muito especialmente, a dificuldade de encontrar a paz da alma (e JK, que era um homem de coragem, chegou a cogitar de suicídio).
O que sustenta um exilado e sustentava JK é a esperança do retorno - "que nos mira com um olhar doce e depois nos deixa esperar", como diz Polinices nas Fenícias, de Eurípides.
Tancredo Neves, no discurso em homenagem à memória de JK, lembrou que ele encontrou "a força da honra e da altivez para enfrentar e suplantar as maquinações do ódio" de que foi vítima no pós-1964. Ódio que nunca o caracterizou, pois foi uma personalidade democrática, generosa e tolerante que anistiou, no exercício da Presidência, os que tentaram derrubá-lo pela força das armas. Isso contribuiu para tornar o exílio, que o fragilizou, uma ainda mais imerecida penitência.
"O exílio", disse Tancredo, "é o preço que os grandes homens pagam para conseguir um lugar no coração da História. Eles são supliciados antes de serem glorificados", como o foram os Andradas, dom Pedro II e Rui Barbosa. Por isso, concluía que a ulceração do exílio foi o toque do trágico que faltava para compor a imagem histórica de JK. Foi a moldura de ouro de sua radiosa personalidade.
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