terça-feira, 5 de julho de 2011

''O arcabouço da democracia está montado. a alma, não''


Para ex-presidente, País precisa de 'convergência' para avançar e visão dualista de que PT é povo e PSDB é elite precisa acabar

03 de julho de 2011 | 0h 00
Malu Delgado e Marcelo de Moraes - O Estado de S.Paulo
Horas depois da homenagem que recebeu do PSDB em Brasília na quinta-feira pela celebração de seus 80 anos, o ex-presidente recebeu o Estado em seu apartamento na capital paulista, em Higienópolis. O cansaço não encobria a felicidade evidente. Desabrido, pregou o fim da tensão com o PT - "é importante para a democracia" - e fez uma análise sobre a atual conjuntura, com a sensatez de sociólogo e a maturidade de ex-presidente. Sobre seu governo, enumera com orgulho os avanços que conquistou - e também os reconhece na Era Lula. A preocupação, hoje, é com a solidez da democracia. "O esqueleto está aí", diz. Mas ainda temos um longo caminho a percorrer.
Jonne Roriz
Jonne Roriz
Planície. FHC em sua casa, ao lado de retrato de Ruth
O sr. lavou a alma nesta homenagem do PSDB aos seus 80 anos com o reconhecimento que faltou em momentos do passado?
(Risos). Não só hoje. Olha, hoje o meu partido se desdobrou em gentilezas, reconhecimentos. Foram muitos, do PT, de todos os partidos. Eu disse assim: Parece que eu morri, porque no Brasil só se elogia morto (Risos). Acho que o PSDB sempre me tratou bem, com carinho. O que tem é que às vezes, nas campanhas eleitorais, por razões de marquetismo (marketing), um opina uma coisa, outro outra, então... Nunca acotovelei ninguém para aparecer nem para buscar reconhecimento. É difícil julgar processos de mudanças que não são atos, sobretudo quando o outro que ganha quer se empenhar em fazer de conta que ele começou tudo. O que interessa mesmo para o homem público ou para o intelectual é o julgamento da história, que é feito quando você está morto. Não adianta nada. É melhor você ter isso que eu tive agora, vivo, do que saber o que vai acontecer no futuro. Pelo menos você diz: está bem, fui reconhecido. Claro que foi bom para mim. Não é só para mim. O que é bom no Brasil é não mantermos uma tensão permanente e desnecessária, que era o que estava acontecendo.
Uma tensão política, PT e PSDB?
Fla-flu, é. Isso não é positivo. Repito: a Dilma teve um papel, porque ela teve um gesto. Você pode dizer que é banal. Não é banal não. Ela mudou muito a ênfase do que se dizia, e também não foi além do necessário. Não foi para dizer que não temos divergências. Temos, mas podemos conviver de uma maneira civilizada. Isso é importante para a democracia. Essa tensão permanente é do pessoal que acredita que a mudança, hoje, ainda se dá por ruptura. Mas quando a sociedade é aberta, a mudança não se dá por ruptura, se dá por acumulação.
E o sr. acha que o responsável por isso foi o ex-presidente Lula?
Não só. Acho que foi o espírito de competição do PT num dado momento, que é normal. Preparei uma legislação para facilitar a transmissão de poder. Quando eu passei a faixa para o Lula eu tive emoção. As pessoas se esquecem, mas nas grandes greves eu estava lá ao lado do Lula. Mais para frente, nas Diretas Já, aqui, na Praça Charles Miller, o PT fez uma manifestação, e eu fui representando o PMDB. Eu não fui vaiado porque tive que dizer que o Teotônio Vilela tinha morrido. Daquele momento em diante começa esse tipo de atitude política, que tem a ver com a visão passada, de que só um partido vai mudar o Brasil, só uma classe é capaz de ter papel na história, e de que ficam predestinados a governar. Então quando eu ganhei duas vezes do Lula eu estava atrapalhando o destino histórico do Brasil. Essa é a percepção deles. Eu queria quebrar isso. Tínhamos convivido bem na transição. Esperava que dali em diante houvesse uma certa distensão. Mas, logo em seguida, o PT resolveu que o PSDB era o inimigo. O (José)Dirceu queria fazer uma aliança com o PMDB, não conseguiu, e fizeram aquela aliança que deu no mensalão. O mensalão é fruto dessa irracionalidade, da impossibilidade de ver que forças que eram mais próximas poderiam se entender em certas questões e que não seria preciso os meios que foram usados. A política no Brasil virou escândalo. Para ter vantagem eleitoral o PT tinha que pintar o PSDB como o da elite. Ora, isso é uma visão simplista. A diferença entre o PT e o PSDB é muito mais política. É como se tivesse prevalecido em setores importantes do PT a ideia leninista. Ou seja, tem um partido da classe historicamente capaz de mudar a sociedade, esse partido ocupa o Estado, e o Estado muda a sociedade. O PSDB é mais contemporâneo. A sociedade tem que ter peso equivalente ao do Estado.
Por que o PSDB não se liberta da pecha de elitista?
É curioso, porque é uma pecha fácil de se libertar. O PSDB ganha, na verdade, nos Estados em que há mais mercado, e o PT onde o Estado tem que ajudar muito porque o mercado é mais débil. Agora, nos Estados em que há mais mercado, o PSDB ganha também nas classes populares. Isso é uma imagem que tem que ser destruída. Deriva desta visão dualista que precisa acabar, que um elite, o outro povo. O Lula pertente à elite política, obviamente. Então essa é uma ideia falsa que o PSDB precisa encontrar mecanismos de destruição disso, enfrentando. Porque você não desfaz as coisas se ficar com medo. Quando você olha o salário mínimo real, aumentou desde o governo Itamar, com o Real, e seguiu no meu, e seguiu no do Lula. É cumulativo.
O sr. vê mais traços de continuísmo que inovação no governo Lula?
O tripé econômico está aí, mal ou bem. As agências regulatórias estão aí, umas funcionam outras não. Acho que o Lula deu amplitude muito maior aos programas sociais porque ele se beneficiou de uma conjuntura boa, mas não só por isso. Ele representava diretamente esse setor. O Brasil, no que diz respeito ao hardware, avançou muito. As empresas brasileiras são muito boas. A empresa estatal brasileira virou empresa. Deixou de ser repartição pública. Compete. Agora, falta muito no software. O esqueleto está aí. Isso vale para tudo. O arcabouço da democracia está montado; a alma, não. Porque você não tem ainda aquele sentimento que é básico na democracia de que pelo menos perante a lei nós somos todos iguais, apesar das desigualdades sociais. Aqui a lei não é igual para todos. Você não pode passar a mão na cabeça de quem transgrediu. Se há um lado que o Lula podia ter nos poupado é esse permanente de, se tem um deslize, ele dizer que não foi grave. No fundo, é uma coisa de cultura política. Está um pouco fora de moda de falar, mas faltam valores democráticos. Alguns foram introduzidos, como a ideia de que a igualdade econômica é importante. Houve dois momentos grandes da queda da pobreza. O primeiro foi o Real, consistente. Agora foi esse boom econômico atual, mais as bolsas (transferência de renda). Não gosto desta ideia de que falta um projeto nacional. É autoritário. Por isso que eu fiquei contente com essa pelo menos aparente mudança de atitude (com o gesto da presidente Dilma). Nas sociedades modernas, você tem que buscar algumas estratégias de adesão. Convergência não é adesão ao partido. Convergências sobre alvos comuns. E aqui temos que olhar para a frente. E não ficar simplesmente nos gabando do que já fizemos. Tem que crescer, tem que dar emprego, mas tem que entender o que vem pela frente. Nós não introjetamos efetivamente os desafios produzidos pelo meio ambiente. Se o Brasil quiser ser realmente um País de primeiro mundo, é educação, tecnologia, disciplina, cultura mais pragmática de produção. Temo que estejamos nos acomodando a voltarmos a ser uma grande economia produtora de matéria prima e minério. Está faltando uma certa praticidade e uma determinação de continuidade. Quando a política obriga a repartir muito, e a ter o zigue-zague, impede a continuidade da administração. Tem que evitar o butim do Estado.
O Congresso hoje não tem agenda própria. Isso preocupa?
As grandes decisões nacionais não passam mais pelo debate público. Há uma despolitização que é fruto, por um lado, da prosperidade - então as pessoas não têm que se mover tanto -, e por outro lado o fato de que houve uma acomodação sobre os problemas no sentido em que só um opina. Tem que repolitizar. Não transformar só em nomeio ou não nomeio. Tenho a impressão de que a presidente Dilma resiste um pouco a esse estilo de política.
Há riscos inflacionários - sobretudo no processo global - que possam afetar o desenvolvimento do País?
Sempre há (risco) no processo global com o que os EUA estão fazendo, que é inundar o mundo de dólares. Têm efeitos que podem ser inflacionários. Mas aqui a nossa inflação não vem só de fora para dentro, vem de dentro também. A expansão do gasto desordenada nos dois anos do governo Lula obrigou o governo atual a ter uma posição fiscal mais rígida. Com o Real criamos mecanismos de controle. Acho que dá para controlar se fizer uma política fiscal austera. Agora, se quisermos aumentar a produtividade, as reformas têm que voltar. Temos uma relativa desindustrialização no Brasil.
O sr. se engajou num debate importante sobre a regulamentação da maconha. A política brasileira é refém dos costumes?
Em geral a política é refém dos costumes. Esse debate, a meu ver, tem que ser na sociedade antes de ser na política. Não é hora de fazer esse debate no Congresso. É hora de fazer agitação na sociedade. Eu entrei nessa questão pelas minhas preocupações globais. Eu li um livro, de um amigo meu, o Moisés Naím, chama-se Ilícito, onde ele mostra a globalização do crime na década de 90. Tudo virou uma teia mundial e está tendo efeitos devastadores no planeta. Agora, criamos uma Comissão Global de Drogas. Fizemos um relatório muito importante, porque dá recomendações. Não é de liberar. É dizer: olha, cuidado, vamos tentar separar a maconha e combater o uso. Combater sem jogar na cadeia, combater o criminoso. Tirar do aspecto puramente repressivo e ir para a redução do dano.
Como presidente foi mais conservador do que gostaria? Fez revisionismos de seu governo?
Nenhum presidente tem liberdade para implementar o que deseja. Já disse inúmeras vezes que poderia ter desvalorizado o Real sem que explodisse o mercado. Quando? Não sei. Talvez em janeiro de 1997, antes da crise da Ásia. As pessoas falam: populismo cambial para ter reeleição. Que reeleição? Era medo da volta da inflação. Há outras coisas que poderia ter feito. Talvez eu tenha sido demasiado ambicioso em mandar muitas reformas. Talvez eu pudesse ter sido mais comedido. Muitas coisas talvez teria feito de outra maneira. Mas são águas passadas...
O sr. se arrepende de não ter se engajado na campanha do José Serra (em 2002) ? O sr. foi neutro. Se arrepende de não ter feito o que o Lula fez para Dilma?
Não me arrependo porque acho que o que o Lula fez foi errado. Você não pode jogar a máquina. O Estado é de todos. O presidente representa o Estado. Quando esse presidente entra na jogada e usa recursos do Estado, ele está favorecendo uma parte. E ele não pode fazer isso. O presidente, certas horas, tem que virar magistrado, ainda que seu partido perca. Seu partido tem que crescer por si. É claro que eu queria que o Serra ganhasse, mas não acho que deveria ter sido diferente. Vou dizer uma coisa que pouca gente refletiu sobre: o meu sucessor natural, do meu partido, morreu. Era o Mário Covas. Isso tínhamos já conversado. Na última conversa que eu tive com ele sobre esse assunto ele já não podia mais, porque estava doente. Então não tinha um sucessor natural no partido.
Se decidiu pelo Covas quando?
Olha, me decidi por ele quando houve a reeleição. O Mário era muito resistente à história da reeleição. Ele podia ser candidato, ele próprio, como poderia o Serra também, o Maluf e o Lula. Mas se opuseram. Eu compreendo isso. O Mário disse: então não vou me reeleger aqui. Ele era leal. Não atrapalhou a reeleição. Era contra, mas não atrapalhou. Disse que em São Paulo não concorreria. Eu vim a São Paulo. Disse: "Mário, você me desculpe, vai ter que ser candidato, ou então vamos perder a reeleição. Agora, tenha certeza de que, na próxima eleição, você é o meu candidato". Isso ninguém sabia.
Ele aceitou?
Ele não aceitou, propriamente. Talvez tivesse ficado meio desconfiado. Mas eu lembro que... o Pimenta da Veiga está vivo... Estou com um medo dessas coisas porque as pessoas vão morrendo e eu estou vivendo demais... Isso atrapalha... Não tenho a base de apoio. (Risos) O Mário foi ao (Palácio)Alvorada e o Pimenta foi com ele. Neste dia que eu disse: "Mário, agora temos que efetivar" (a candidatura). Foi nesse dia que ele me disse que não podia.
O sr. se lembra quando foi isso?
Em que ano que ele morreu? Foi 2001, por aí. Aí ficamos sem um sucessor natural. Como tomei a decisão, quando deixei o governo, de me afastar da política partidária para ser ex-presidente e não candidato a outras coisas, de alguma maneira eu deixei um espaço que abriu oportunidade para muita discussão interna. Não se estabeleceu uma hierarquia clara. Ficou sempre tensionada a sucessão. Seria pretencioso da minha parte dizer que se tivesse mais ativo eu imporia. Não sei. Não é meu temperamento e o PSDB não tem dono. Ou você tem uma liderança natural ou não vai. Eu virei presidente não porque eu quisesse. Foi por causa do Real. Ou era eu ou perdia. O Mário seria aceito porque tinha a liderança natural.
O caminho está mais pavimentado e natural para o Aécio Neves em 2014?
Está difícil prever isso hoje. Nós temos dois, três, até quatro pessoas que têm alguma aspiração e mérito para isso, que estão em posições diferentes. No fundo, quem é o candidato de um partido quando esse partido não tem dono? É aquele, que num dado momento, dá impressão à opinião pública de que ele é uma pessoa que pode ganhar. Agora temos que cuidar de eleição municipal. Depois, vamos ver quem, neste período, se firmou como líder nacional. O Serra já tem ressonância nacional, mas está fora do jogo de posições institucionais. O Aécio ainda não tem ressonância nacional, mas tem uma posição institucional forte no Congresso. O Geraldo (Alckmin) também, ou até o Marconi (Perillo). Qual deles vai, daqui a três anos, estar batendo com o sentimento do País? Quem é que sabe? Sofremos do mal da abundância. No PT só tem um, o Lula.
O sr. é a favor das prévias no PSDB?
Depende de como. Quem vota? Quem está qualificado para? Tem que definir melhor, com antecedência. É tarefa para a direção atual do partido.
Vivemos a falência do DEM, criação do PSD, e a dificuldade de sobrevivência da Marina Silva, que com 20 milhões de votos não conseguiu ficar no PV. O sr. diz que o voto não dá mais legitimidade sozinho. Como analisa o avanço das redes sociais - um exemplo é a repercussão do metrô de Higienópolis - e as respostas da classe política a isso?
Diga-se de passagem que eu sou ultra favorável ao metrô de Higienópolis, viu! Hoje, nesse tipo de sociedade, aberta e moderna, a mensagem é muito importante. O Obama não tinha probabilidade de ganhar da Hillary na primária. Ganhou na mensagem. Coisa simples: Yes, we can. A Marina é um pouco isso. Ela tem uma trajetória e tem uma mensagem. Será suficiente para isso galvanizar? Não sei. Mas isso mostra que realmente hoje se você for fiado apenas nos mecanismos tradicionais pode não chegar lá. A Dilma chegou fiada no carisma do Lula. Essa questão da deslegitimação da representação é complicada, porque você não tem uma democracia sem instituições. E as instituições parece que estão indo para um lado e a opinião vai para outro. A agenda da internet é uma, a do Congresso, quando tem, é outra, e a do governo é outra. A internet explode, mas não constrói. Os partidos vão ter que continuar existindo. As instituições vão ter que continuar existindo. Como é que você faz com que elas se acasalem é que é o problema. Naquele meu artigo que deu tanta polêmica, o que eu estava querendo dizer era isso. Olha, têm novas camadas aí. São radicais livres, estão soltos, não têm representação. Votam, mas não se sentem representados. Nossa cultura é de comando, e a cultura moderna é de persuasão. Então esse caminho nós temos que percorrer ainda. 


Fernando Henrique: pensamento e ação


Celebração de seus 80 anos lembra que sua atuação na política significou começo da abertura de novos caminhos para a sociedade brasileira

03 de julho de 2011 | 0h 00
Francisco C. Weffort - O Estado de S.Paulo
A celebração dos 80 anos de Fernando Henrique Cardoso ocorre num bom momento da história da democracia que ele ajudou a construir como líder partidário, senador e presidente. Ajudou a construí-la também em sua atividade como pesquisador, professor e em sua militância jornalística, partes relevantes de uma trajetória brilhante nos céus nem sempre azuis da historia brasileira. No seu caminho estava a democracia, a ditadura e, de novo, a democracia, onde felizmente nos encontramos agora.
Na passagem de um período a outro, os homens de bem estavam procurando ansiosamente o melhor caminho. Fernando Henrique foi um deles. Foi e continua sendo um deles, e dos mais importantes.
Quase sempre nos escapa a significação histórica de pessoas muito próximas de nós. Nunca é fácil passar da biografia à Historia, mas quando se trata de amigos é ainda mais difícil. Daí que talvez haja que recorrer ao olhar dos que por se acharem um pouco mais distantes possam ver melhor. Nas preliminares da primeira disputa entre Fernando Henrique e Lula, eu me encontrei, por acaso, em uma sala de espera de aeroporto, com Juan Carlos Portantiero, historiador e sociólogo argentino. Juan Carlos saíra há poucos anos de uma experiência de colaboração no governo Raul Alfonsin que, como sabemos, não terminou muito bem. E como é de praxe entre sociólogos, aproveitamos a ocasião para especular sobre a significação histórica do momento em nossos países. Eu estava numa fase em que via no Brasil mais problemas do que soluções. Meu amigo não via muitos detalhes da situação, mas tinha mais esperanças. Lá, pelas tantas, ainda em pleno debate, mas quando já se apressava para se dirigir a seu voo, ele despediu-se com esta: "Dejemonos de cuentos Francisco, una pelea entre Fernando y Lula, eso en America Latina es un lujo." Portantiero viu, com antecedência, um significado geral naquela "pelea" que só depois ficou claro para mim.
Em 1995, eu tentei em um artigo ressaltar a dimensão maior daquelas eleições que me pareceram o começo da nossa segunda revolução democrática depois de 1930. É claro, tudo começou quando Fernando Henrique dirigiu o Plano Real, ainda no governo Itamar Franco. E a palavra revolução é, certamente, inusitada quando se faz em meio a instituições existentes e a eleições. Mas a Lei de responsabilidade Fiscal, as privatizações, a derrubada de uma parte importante do patrimonialismo brasileiro, me pareciam indicações nesse sentido. Naquele momento, porém, à parte o Plano Real, por seus efeitos na estabilidade monetária e nos benefícios concedidos a amplas massas da população, estas iniciativas eram apenas sinais. Sinais que, paradoxalmente, só foram confirmados em sua significação mais geral quando se verificou que a direção aberta por Fernando foi seguida por Lula. A história brasileira havia tomado, de fato, um novo rumo.
Ainda em 1995, numa reunião de intelectuais em Brasília, iniciativa de Luciano Martins, apresentei a mesma ideia numa conversa rápida com Adam Przeworski, da Universidade de Chicago. Mas Adam torceu o nariz. Para ele, polonês e herdeiro de uma historia de grandes convulsões, revolução, mesmo democrática, é outra coisa. E ele tinha razão se admitirmos que Europa e America Latina são realidades bastante diferentes. Nestas conversas, quem me passou uma impressão entusiástica foi Osvaldo Sunkel, economista chileno, da CEPAL. Como os chilenos em geral, Osvaldo tinha, mesmo antes da vitoria de Ricardo Lagos, uma aguçada sensibilidade para os requisitos da transição democrática. Depois da tragédia do regime de Pinochet, os chilenos aprenderam, como dizem, a "hilar fino", nos conceitos e na prática.
Os livros e artigos de Fernando Henrique lhe garantiram um merecido reconhecimento nacional e internacional. Sua vasta obra intelectual vem sendo estudada há anos por sua influencia no desenvolvimento da sociologia e da ciência política brasileiras. Mas é bem provável que daqui para diante, sua obra tenha que ser estudada pelos pesquisadores para entendermos melhor o significado da sua presença na História. São poucos os casos de uma conjunção tão completa entre pensamento e ação. A celebração dos seus 80 anos nos lembra que sua atuação na política significou, de fato, o começo da abertura de novos caminhos para a sociedade brasileira. E que as novas interpretações desse novo período estão apenas começando.
CIENTISTA POLÍTICO, EX-MINISTRO DE FHC

segunda-feira, 4 de julho de 2011

A falsa miséria estatística

Análises meramente econômicas e numéricas ignoram a poderosa tendência do pobre de compartilhar e ajudar

03 de julho de 2011 | 
José de Souza Martins - O Estado de S.Paulo
Nas últimas semanas a opinião pública foi abastecida com indicadores opostos sobre a situação material dos brasileiros. Os dados do Censo de 2010, que balizam as ações do novo programa governamental Brasil sem Miséria, computam 16,267 milhões de miseráveis, 8,5% da população brasileira, uma Holanda inteira, gente cuja renda familiar mensal, quando muito, alcança R$ 70. No interior desse grupo há até os miseráveis dos miseráveis, aqueles cuja renda é de até R$ 39 por mês, pouco mais de R$ 1 por dia, basicamente os tostões que a gente chuta quando caem do bolso furado, aqueles tostões que nem vale a pena curvar-se para recolher. Como há, ainda, os supermiseráveis, os 4,8 milhões de pessoas que no Censo não aparecem com renda alguma.
Aí a coisa se complica. Quem vai acreditar, em sã consciência, que quase 5 milhões de pessoas possam sobreviver sem renda alguma? Posso acreditar que haja pessoas dependentes financeiramente de terceiros, especialmente idosos, doentes e menores, que, não obstante serem de uma família, moram em casa separada da dos provedores. Nesse caso, o dado mostra um defeito na concepção estatística de família e moradia, que não corresponde ao que são numa sociedade de tradições patriarcais, a família como instituição plurilocal baseada numa economia condominial. É preciso não confundir a estatística da miséria com a miséria da estatística.
A secretária para Superação da Extrema Pobreza esclareceu que outras formas de renda não são levadas em conta nesta fase de divulgação do Censo, caso da agricultura de subsistência. Essa forma de renda não é renda. Renda é o ganho que passa pela mediação da forma dinheiro. Portanto, os dados em que vai se basear o programa Brasil sem Miséria já apontam um defeito de compreensão da realidade brasileira que repercutirá na própria concepção das medidas que preconiza. Compreende-se, pois, que, nas representações gráficas dos dados estatísticos, o Norte e o Nordeste constituam um oceano de deplorável miséria. E que o Sul e o Sudeste constituam um oceano de escandalosa prosperidade.
Para compreender essas anomalias estatísticas é preciso levar em conta que a economia brasileira é historicamente uma economia dual. Nem todos dependem de rendimentos monetários para viver. São numerosos, ainda, na roça, aqueles para os quais os ganhos monetários, muito variáveis, aliás, não constituem propriamente o decisivo na sobrevivência da família. Nela a subsistência da família é assegurada prioritariamente pela produção direta dos meios de vida. Então, sim, pode-se entender que uma família até viva sem nenhuma renda monetária nessa economia peculiar que denomino de economia do excedente (e não de subsistência), em que parte da produção própria é consumida em casa e parte é comercializada. Seria ficção medir em dinheiro o que não circulou no mercado.
No lado oposto ao da miséria, a pesquisa da FGV sobre a nova classe média, ou o lado brilhante do pobre, divulgada nessa semana, inunda o cenário com um otimismo numérico luminoso. Se os dados do Censo aqui apontados falam de um Brasil que submerge, os dados sobre a nova classe média dizem que, dentre os países emergentes, o Brasil é o que mais emerge. O grau de felicidade futura do brasileiro indicado pelo Gallup é o maior do mundo. Quem estuda sociologicamente o tema da fé no Brasil tomaria o maior cuidado com essa informação superficial e subjetiva. É que, sendo o brasileiro um povo no geral místico, raramente verbaliza pessimismo que possa indicar falta de fé, na suposição de que inviabiliza aquilo que se espera e deseja.
A criação de quase 800 mil empregos líquidos de janeiro a abril, que a pesquisa menciona, certamente é o melhor fator de otimismo para a nova classe média estatística. Mas é pouco provável que essa parcela da população não tenha tomado consciência, no vivencial, de que desde 2010, no mesmo período, o número de empregos formais venha caindo. Ainda assim, é bom indício de que alguma coisa esteja dando certo na economia, o fato de que os rendimentos dos mais pobres venham crescendo mais do que o PIB nacional. A melhora comparativamente significativa dos seus rendimentos em relação à dos mais ricos, porém, apenas nos indica que, num país com alta proporção de miseráveis, quaisquer R$ 10 podem dobrar a renda de uma família, elevando o índice de sua ascensão estatística. Mas é muito provável que na população mais pobre a melhora tenha seu melhor êxito no fortalecimento do caráter condominial da economia das famílias pobres, que sendo no geral de origem rural, carregam consigo uma poderosa tradição de compartilhar e ajudar. Que as análises meramente econômicas e estatísticas desdenhem esse poderoso traço cultural do pobre, como desdenham a economia do excedente, antes mencionada, empobrece as interpretações porque subestimam um capital cultural decisivo no seu efeito multiplicador nas economias duais como a nossa.
JOSÉ DE SOUZA MARTINS, SOCIÓLOGO E PROFESSOR EMÉRITO DA USP, É AUTOR DE A POLÍTICA DO BRASIL LÚMPEN E MÍSTICO (CONTEXTO, 2011)