Antonádia Borges
Há mais de uma semana começaram as cheias no Rio Grande do Sul. Ontem, um cantor gospel, branco, alertava seus mais de 70 mil seguidores no Instagram: não culpem a Madonna. A TV, desde que acabou o show, acordou para a tragédia. William Bonner em Porto Alegre, tecendo elogios sem fim ao papel salvador das Forças Armadas. Até que enfim: temos nossa guerra.
Abutres. No rádio, uma repórter chamada Becker, condoída e incomodada, informava que não havia mais água corrente na capital. Lembrei da pandemia, do lave as mãos para os milhões sem saneamento, sem água encanada. Porto Alegre da Casa de Cinema e do Saneamento Básico.
Nos abrigos sem água, os voluntários atentam para o fato de que a maioria daquelas pessoas atendidas "já não tomam banho nunca". Os abrigos trazem às narinas brancas o cheiro das vilas, das aldeias indígenas à beira das estradas, dos sem banheiro.
Banheiros dos abrigos com merda espalhada pelas paredes. Pessoas prostradas sobre colchões doados. Repousadas letárgicas sobre restos de comida. Dividindo o espaço com os animais de estimação, com sua ração. Outras, furiosas, procuram agarrar um cobertor a mais, uma marmita a mais, "mesmo sem necessidade".
Aquelas pessoas que não tinham nada e, paradoxalmente, segundo o alemão da padaria artesanal, perderam tudo, não é dado o direito de quererem ter nada, ainda mais diante da excepcionalidade, do limbo aberto pela subida das águas.
A vida nas vilas, nas aldeias, nos quilombos, estava escondida, distante da branquitude. A subida das águas os fez emergir. Um homem circula pelo abrigo com sua tornozeleira eletrônica, causando calafrios.
Nos espaços brasileiros do apartheid, o que os brancos não veem, as narinas e as consciências não sentem. O terror é imenso: a enchente faz com que se tema os removidos dos presídios inundados. Na rádio, a jornalista Becker relata que grupos de pessoas estariam se fingindo de ilhadas para roubarem os barcos e jet-skis de resgate. Eram eles os piratas e não quem tinha um jet-ski parado na garagem.
No momento da enchente, da tragédia da água lamacenta que respinga de leve os brancos, se exige civilidade, solidariedade, respeito à propriedade privada. A violência cotidiana e a usurpação e a humilhação constante sofrida pelos vileiros, pelos bugres, não pode vir à tona no momento excepcional da enchente.
Supõe-se uma igualdade na tragédia, que deve sustentar o respeito à propriedade de quem as tem, dando-lhes tempo e tranquilidade para se exilarem nas suas casas de veraneio. Às turbas iradas, como seus cães e cocotas, estão engaioladas em ginásios esportivos e escolas, sem qualquer possibilidade de cogitar tomar as rédeas do amanhã em suas mãos. A elas é atribuído um sinal que enfatiza sua marginalidade.
Um "marginal" teria estuprado uma menina em um abrigo. Que ideia de abrigo é essa?
Nem todo mundo que está no abrigo é negro, indígena, mas todo mundo que não precisa lá estar não o é. Quem está abrigado, se não quem pegou seu carro de tanque cheio, seu rancho, seu estoque de medicamentos para os próximos meses e se mandou para a casa de veraneio em Atlândida?
O nível do Guaíba não baixa. A água não volta às torneiras. Aos brancos não resta outra opção se não antecipar suas férias, cortar a grama alta, desfazer as malas, pegar a cadeira, a cuia e ir pra praia. Os governantes garantem a legitimidade dessa saída. Não são covardes. Não é privilégio branco. De fato, trata-se de uma colaboração com o bem maior.
Que fiquem na zona metropolitana só aqueles que precisam de abrigo, de roupas velhas e marmitas rançosas –desde que a sacralidade da propriedade seja mantida. E que quando baixarem as águas, retornem aos lugares ermos, distantes, onde a falta de água e de tranquilidade é uma constante, não uma exceção. E que tudo volte a ser o que era antes.
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