sábado, 11 de maio de 2024

Edição de Sábado: Depois da tempestade, MEIO

 

Edição de Sábado: Depois da tempestade

Por Luciana Lima e Guilherme Werneck

Na noite de quarta para quinta-feira, no Brasil dos vira-latas caramelos, muitos concordavam em ceder o apelido mais clássico e carinhoso dos cachorros sem raça definida para outra espécie. Imóvel, a imagem de um cavalo em cima de um dos telhados ainda parcialmente visíveis de Canoas (RS) provocava uma enxurrada de perguntas em cada mente. Como ele chegou até ali? Há quanto tempo? Até quando resistirá? Como resgatá-lo? Com helicóptero? Como içar um bicho tão grande e pesado. Melhor levar uma balsa? Tem profundidade suficiente? Dá para tirar de barco? É melhor se concentrar em salvar gente? E mais: parecia sonho, parecia filme.

Na verdade, a pintura de um cavalo em cima do telhado no meio da planície alagada tem muito de surrealismo e nos trouxe símbolos. E a mistura de pesadelo com a dura realidade define a tragédia que ainda ocorre no Rio Grande do Sul. Caramelo deu ao Brasil algumas representações nessa tragédia. A da resistência diante de eventos extremos é uma delas. Sua resiliente imobilidade, à espera de um socorro, que chegou quatro dias após ele chegar ao cume da casa, mostrou o quanto será preciso saber lidar com situações extremas, antes inimagináveis, que, segundo cientistas, farão parte da vida em cidades daqui para frente.

A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, também se sentiu em uma quase inacreditável película ao sobrevoar a tragédia anunciada de emergência climática. Um anúncio feito, inclusive por ela, 30 anos atrás, quando “ainda não tinha um fio branco na cabeça”. “De repente eu vi uma cena que era velhinhos trepados em uma árvore, se segurando na árvore até chegar alguém para socorrer. Eu vi uma família dentro do sótão, o dono da família em cima do teto, olhando para o horizonte para ver se chegava algum socorro”, disse a ministra, em um vídeo postado por ela nas redes sociais. Para ela, a sessão de cinema “foi em três dimensões”. Foi real.

“Tem muita coisa que a gente tinha que ter começado a partir de 1992, mas a humanidade não fez. Não foi por falta de aviso da ciência. Agora, nós estamos aprendendo dramaticamente, com ondas de calor, com chuvas, com seca, com tudo que está acontecendo no mundo inteiro”, detalhou Marina, em entrevista.

Após sobrevoar a área inundada, Marina destacou que Lula foi a Dubai para dizer que o mundo precisa sair da dependência de combustível fóssil. Mas a aposta do Brasil em um novo modelo energético tem sido considerada bem mais tímida do que a de países da Europa e da Ásia. Um exemplo disso é a disposição maior para uma transição mais lenta, passando primeiro pelos carros híbridos e não partir direto para um investimento em uma planta elétrica. Um modelo que atende ao lobby de usineiros e a uma estratégia de transição gradual da Petrobras, por exemplo, de uma empresa petrolífera para uma empresa geradora de energia sustentável. Um processo muito mais lento do que o necessário para começar a fazer diferença na questão ambiental. Prova disso foi a sanha da estatal em investir na prospecção e exploração de petróleo na foz do Rio Amazonas.

Cidades mortais

Se, por alguns segundos, o ineditismo da cena do cavalo Caramelo sobre o telhado fez parecer irreal a tragédia, a realidade no Rio Grande do Sul chega aos olhos em seguida, como um soco. E, com ela, toda urgência de estancar o negacionismo sobre o que a ciência já produziu de conhecimento a respeito dos eventos climáticos extremos e de como devemos repensar a forma predominante de viver, como é necessário mudar a forma de ocupação territorial, como é preciso abandonar fontes de energia que estão na base da formação dos espaços urbanos, no Brasil e no mundo.

Tendo em vista o que já existe de conglomerados urbanos, o tempo em que as emergências climáticas se tornaram mais graves e mais frequentes impõe o desafio de tornar as cidades menos mortais. Ter mais chuvas, mais seca, mais calor do que o normal são consequências do aumento na emissão de gases do efeito estufa.

Nesta semana o jornal inglês The Guardian ouviu 380 das maiores autoridades científicas ao redor do globo e há praticamente um consenso de que vamos exceder as metas de aquecimento global neste século. Quase 80% dos entrevistados acreditam em um aumento de ao menos 2,5ºC tendo por base os níveis pré-industriais, enquanto quase a metade prevê um aumento maior, de 3,5ºC. Apenas 6% pensam que o aquecimento global se manterá dentro do limite a ser alcançado de 1,5ºC.

Muitos desses cientistas projetam um cenário futuro semidistópico, com fome, conflitos, e migrações em massa causadas por ondas de calor, incêndios florestais, alagamentos e tempestades com intensidade e frequência muito maior do que as que temos historicamente. E muitos desses pesquisadores dizem se sentir desesperançados, irritados e assustados com o fracasso dos governos em agir, a despeito das evidências científicas apresentadas.

Se quisermos seguir a ciência, faz-se necessário entender de vez que tipo de relação com o território e com a natureza provoca o aquecimento global e evitá-las.

Ergue e destrói

Uma das dimensões desse pensamento parte da necessidade energética das cidades. A arquiteta e urbanista Raquel Rolnik, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e relatora especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU para o Direito à Moradia Adequada, entre 2008 e 2014, acompanha de perto as transformações de São Paulo. “A gente sabe que 62% das emissões, pelo menos no caso de São Paulo, vêm da queima de combustível fóssil, gasolina, diesel, caminhão, ônibus, carro. Se continuar usando isso, não vai dar (para evitar tragédias)”, disse ao Meio.

Além do aspecto energético, outra dimensão a se considerar é a ocupação territorial. E é nesse ponto que é necessário repensar como as cidades brasileiras negaram e continuam negando a existência dos rios, mananciais, lagos e bacias. “Nossa relação histórica com os rios foi a de negar sua existência, enfiar dentro de um tubo, de um canal, tampar e colocar um sistema viário em cima, ou do lado. Isso não está no passado. Isso continua acontecendo hoje. Esse é o modelo hegemônico atual. As políticas de drenagem e a relação com os rios urbanos são historicamente assim”, indicou Rolnik. Pior, para conter os efeitos disso, houve o acréscimo das bacias de retenção, os chamados piscinões, que reforçaram ainda mais o tão nocivo processo de impermeabilização das cidades. “Os metros cúbicos de cimento para reter a água continuam reproduzindo o mesmo problema”, destaca a professora. “A gente continua cobrindo as cidades de asfalto que é 100% dependente de petróleo e vilão das emissões. Além disso, é pouquíssimo permeável, faz com que a água escorra e se acumule em locais baixos e aumentam os perigos de inundação.”

Seguindo a atual lógica, as cidades acabam sendo feitas em função dos carros, ao ponto de se colocar um rio em um canal para se construir um sistema viário que provocará o aumento das emissões de gases tóxicos que, por sua vez, contribuirá para a ocorrência de eventos climáticos extremos. Um ciclo vicioso no qual todos estão envolvidos e sem saber como sair. Se a gente imaginar um outro modelo de cidade, podemos considerar por exemplo, um trilho de trem, que é um modal de alta capacidade, e passa sobre uma área inundada com tranquilidade. O trem pode rolar sobre uma base inundável sem interferir nela e faz muito mais sentido do que um monte de caminhão, ônibus e carro. “Temos duas opções. Ou repensamos o modelo ou vai ficar morrendo nas enchentes e nos deslizamentos. Tudo é uma questão de escolha”, enfatizou Rolnik.

O arquiteto Sérgio Marques, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), aponta como uma cidade do futuro aquela que consiga combinar valores da sociedade moderna com a tecnologia e com saberes ancestrais. “Nós não vamos voltar a ser como os índios, que eram extremamente sustentáveis. Mas quero crer que essas novas sensibilidades desfaçam erros cometidos. E é nesse ponto que, a seu ver, a arquitetura da América do Sul tem muito a ensinar. Desde a casa de pau-a-pique do morador do interior do Nordeste do Brasil, que conserva a temperatura amena em seu interior e é altamente permeável, até trabalhos feitos por arquitetos paraguaios como Solano BenítezJosé Cubilla e Javier Corvalan. Eles usam coisas análogas ao pau-a-pique, como o adobe, a terra, a cerâmica artesanal, tijolos, empregados em arquiteturas extremamente sofisticadas. Só que ainda hoje poucos têm acesso a isso”, disse ao Meio.

Marques conhece bem o sistema de drenagem do entorno de Porto Alegre e da Lagoa dos Patos e diz que, se houvesse a manutenção correta das estações de bombeamento e dos diques, a inundação teria sido evitada. “Não tenho dúvida que o dever de casa não foi feito. O que deveria ter sido bem feito era o arroz com feijão. Se tivessem dado manutenção correta no sistema de proteção contra as cheias, que são 68 quilômetros de diques e dois quilômetros de muro e portão, se tivessem blindado as casas de bombeamento, de 2023 para cá, nem uma gota de água teria entrado. E é por isso que eu sou a favor de uma responsabilização”, reclamou.

Novas estratégias

Outra estudiosa de urbanismo que conhece bem a situação de Porto Alegre é mais enfática em sua crítica. A especialista mexicana em água e cidades Loreta Castro Reguera diz não ter ficado surpresa com o que ocorreu na capital gaúcha, pois entende que a cidade sempre foi vulnerável a inundações. Ela cita as críticas do hidrólogo gaúcho Carlos Tucci sobre o fato de a cidade ter um dique ao redor dela. “Justamente porque o dique faz com que a água fique presa e não possa sair”, disse ao Meio. Para Reguera, somos parte de um sistema, e o humano não pode se sobrepor ao natural. “Precisamos gerar uma mudança de mentalidade sobre como nos aproximamos do planeta, não é? Porque obviamente tentar controlá-lo é impossível. Então, é melhor aceitarmo-nos como parte desse sistema e projetar para ele”, disse.

Entendendo que assim como a natureza é incontrolável, o crescimento das cidades também é de difícil controle, Reguera defende que temos de buscar soluções que levem em conta as particularidades de cada localidade, tanto para captação de água, proteção de encostas ou de defesa contra alagamentos. E cita como exemplo de mudança de mentalidade ao abordar essas estratégias o caso da Holanda, que sempre investiu em grandes obras de engenharia para conter o avanço do mar e que, "nos últimos anos, vem desenvolvendo outro tipo de estratégias mais suaves e mais ao alcance das pessoas, com menos recursos econômicos". Uma dessas estratégias são casas que não têm fundações, e sim flutuadores, e o quarteirão todo sobe ou baixa sem danificar as casas no caso de inundação.

Outro exemplo que ela traz vem de Malmö, na Suécia.“Eles tinham também problemas de inundações e, ao mesmo tempo, quiseram fazer o manejo sustentável de água. Criaram esse bairro completo, onde as casas estão distribuídas ao redor do quarteirão e têm ao centro um espaço verde. Esse espaço verde recebe toda a água residual das casas, trata a água residual, que é reutilizada em banheiros e nas áreas verdes. Depois toda essa água volta para um grande pântano que está no bairro. E têm um montão de áreas de permeabilidade, zonas que permitem uma adaptação aos momentos em que chove demais.”

Já o arquiteto e professor da Escola da Cidade em São Paulo Fernando Viegas disse ao Meio que já sabemos que as cidades não podem ser pensadas como independentes do meio ambiente, que é preciso romper a lógica do século passado. “Você nunca vai poder pensar as coisas como soluções imediatas, como foi feito ao longo do século 20, que a gente viu que foi um desastre. Mas as mudanças requerem um compromisso muito maior, que envolva inteligência numa forma mais ampla e uma discussão entre diferentes áreas.”

Um dos lugares em que vê essa lógica sendo rompida hoje é na China, que trabalha a questão da porosidade das cidades. “Estão quebrando as marginais e construindo parques lineares ao longo dos rios, o que permite um regime natural de cheia e vazante, estão desviando o trânsito, investindo muito em transporte público, trazendo barcos de volta para os rios.”

Emissões de carbono

Não incentivar as emissões ainda é um desafio muito grande no Brasil. Recentemente, foi aprovado na Câmara dos Deputados o projeto de lei que regulamenta o mercado de carbono. A proposta cria um limite de emissões de gases do efeito estufa para as empresas. As que mais poluem deverão compensar suas emissões com a compra de títulos. Já as que não atingiram o limite ganharão cotas a serem vendidas no mercado. Na Câmara, o deputado Aliel Machado (PV-PR) foi o relator do projeto e aponta a necessidade de inverter a atual lógica da rentabilidade. A ideia é fazer valer a ideia de que é mais lucrativo manter a floresta em pé do que desmatar, considerando as relações no campo. Uma emenda adicionada ao projeto na Câmara deu também a dimensão do que ocorre nas cidades. O artigo 60 aprovado pelos deputados prevê que os órgãos de trânsito devem regular as compensações das emissões também por proprietários de veículos.

“Não tem como desassociar a discussão econômica das questões ambientais. Infelizmente, o futuro tenebroso que nos era arremetido chegou da maneira mais drástica, levando vidas e destruindo cidades inteiras. E o mercado de carbono surge como uma alternativa para que possamos remunerar a floresta de pé, o reflorestamento e, consequentemente, a diminuição do CO2, que é o grande vilão das catástrofes ambientais que temos no Brasil e no mundo”, disse o deputado ao Meio. “Mas, para que isso funcione efetivamente, é fundamental uma compreensão de todos e participação do poder público, sociedade civil e setores econômicos. A ciência já nos avisou e agora toda a sociedade clama por medidas eficientes e rápidas para ajudar a resolver ou amenizar o problema que já não é mais do futuro e sim do presente.”

Ciência hoje

A tecnologia, entendida de forma ampla, é uma aliada não só para essas novas estratégias urbanas como também tem sido usada nesse momento no auxílio às vítimas da enchente no Rio Grande do Sul. Pensando apenas na questão dos alagamentos, já existem muitas maneiras, com custos variáveis, de se criar sistemas eficazes de alerta usando diferentes tecnologias, inclusive as redes sociais, e de telemetria para medir águas.

Lembrando que, quando pensamos em redes, há sempre uma preocupação legítima de checar a informação, um trabalho ativo de buscar fontes confiáveis. Afinal, mesmo diante da tragédia, as redes de desinformação seguiram atuando de forma implacável. Por outro lado, há antídotos e a tecnologia foi aliada na formação de uma rede de solidariedade, com gente comum fazendo a sua parte. É o caso de Vitor Arnt, estudante de computação da UFRGS que já no começo da semana centralizou informações checadas de como ajudar as vítimas no bento.me/ajudars, ou da especialista em redes sociais Diana Haas, que criou um robô para interagir com sua página no Instagram, com informações seguras de doação, a partir da interação com um post na rede social.

Soluções práticas também foram levantadas rapidamente e colocadas em prática. Ao perceber que a questão da água potável seria crucial para os afetados pela enchente, o coordenador do Projeto Saúde & Alegria, Caetano Scannavino, começou uma articulação para levar ao sul filtros de baixo custo que usam nanotecnologia. São canudinhos que conseguem 99,9% de proteção contra vírus, bactérias e impurezas. Uma tecnologia que tem sido usada na Amazônia, tanto em áreas sem água potável, quanto em regiões afetadas pelo garimpo, como as aldeias Munduruku.

Força da grana

Por mais que exemplos de novas estratégias comecem a surgir mundo afora, sair da roda destrutiva desse modelo de cidades é mais complexo do que se pensa. Significa romper com uma lógica hegemônica, uma engrenagem de interesses que turva a visão de futuro. Segue forte a ideia de usar todo espaço para permitir que ele seja rentável do ponto de vista econômico. Romper com isso significa romper com essa lógica-fim e perceber que a defesa da vida é um valor mais importante que a rentabilidade dos negócios. Além disso, a coalizão que sustenta o modelo atual de cidades é absolutamente hegemônica e detém o controle político das cidades. Para Raquel Rolnik, trata-se de um conjunto de interesses econômicos e políticos que mantém as coisas como são porque se ganha com esse modelo.

Rolnik esteve na equipe inicial do Ministério das Cidades, em 2003, quando a pasta foi entregue por Lula ao ex-governador do Rio Grande do Sul Olívio Dutra (PT). E foi nessa época que o governo começou a elaborar políticas habitacionais que, posteriormente, culminaram no plano Minha Casa, Minha Vida, marca dos primeiros mandatos de Lula e de Dilma Rousseff. A arquiteta deixou o governo justamente por não concordar com os princípios adotados pelo programa habitacional. “O programa era como eu achava que não deveria ser feito. Era a ideia de uma produção de habitação onde não tem cidade, abrindo frentes de expansão e pensando moradia como se fosse plantation”, disse. Embora considerando que o modelo estava longe do ideal, Rolnik pondera a importância do plano para pessoas mais pobres. “Onde essas pessoas iriam morar se não houvesse o programa? Seria um lugar mais longe e mais precário ainda”, ressaltou.

Para suplantar essa lógica que ainda perpassa muitas das decisões públicas, precisamos implantar o que o urbanista Pedro Henrique de Christo, presidente do Nave (Novo Acordo Verde) e diretor do Parque Sitiê e MPP’11 Harvard, chama de urbanismo climático em artigo na Folha: novas estratégias que levem em conta o meio ambiente e soluções locais de baixo custo para modificar as cidades, como foi feito com o urbanismo social de Medellín ou no Parque Sitiê.

“É urgente produzir controle climático por meio de estruturas multifuncionais de resiliência urbana, onde são utilizados elementos naturais de terreno, vegetação e água como tecnologias construtivas associadas à aplicação pontual de materiais duros, como o concreto, com o objetivo de fazer a água penetrar no solo, ser absorvida por vegetação que incha, diminuir sua velocidade e ser concentrada em áreas previstas para alagamento — junto a redes de drenagem construídas como parte de espaços públicos verdes de integração e sustentabilidade”, argumenta.

Repensar a ocupação urbana diante do aquecimento global não é uma tarefa para amanhã. É preciso começar antes da próxima tragédia, que certamente virá mais cedo do que o estimado, e, como no Rio Grande do Sul, com um altíssimo custo em vidas, e um impacto econômico desastroso.



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