No final do mês passado, Hélio Schwartsman e eu publicamos os resultados de um estudo que mostra que o desfecho das ações afeta a nossa atribuição de intencionalidade e de responsabilidade ao seu autor.
Quando coisas ruins acontecem, tendemos a enxergar mais intenção de dolo do que quando não acontecem, mesmo que estes desfechos sejam fortemente influenciados pelo acaso.
Ou seja, nossa capacidade de prescrutar intenções e diferenciar atitudes culposas e dolosas é muito menor do que parece. Isto traz consequências importantes para o direito e para a compreensão da intencionalidade de maneira geral.
Raciocínios do tipo "ele sabia que isso poderia acontecer, mas decidiu seguir em frente, produzindo intencionalmente este desfecho horroroso" envolvem inferências sobre conteúdo mental (presentes em "sabia") e assunção de liberdade para agir de maneira autodeterminada.
Meu objetivo com o artigo de hoje é mostrar como o raciocínio científico atualmente dominante sobre o livre-arbítrio conduz a conclusões pouco consistentes e, mais amplamente, argumentar que a ciência cognitiva tem se tornado preguiçosa e dogmática. Para isto, desenvolvi alguns jogos mentais simples que gostaria de compartilhar com os leitores. Mas, antes, o básico.
Em um ensaio muito famoso sobre a natureza da liberdade, Isaiah Berlin propõe que esta possui duas formas: negativa e positiva. A primeira é a que desaparece "quando se é impedido de se atingir um objetivo por outrem". A segunda é uma forma de consciência que "faz as pessoas quererem ser sujeito e não objeto".
Liberdade positiva é o que define o paradigma clínico da psicanálise: não há liberdade quando se é escravo do inconsciente. Em linguagem atual, é a resultante das manifestações intelectuais emancipatórias frente às formas compartilhadas de dogmatismo e à algoritmização do pensamento.
Livre-arbítrio é a noção que assegura que a liberdade positiva seja mais do que ilusão. Sem isso, posso viver como o príncipe Sidarta, poderoso e integralmente orientado ao esclarecimento, e ser tão determinado em minhas ações quanto o maior dos tolos e mesmo como alguém em coma.
Robert Sapolsky vê as coisas desta maneira niilista, que é dominante entre os neurocientistas desde sempre. Em seu relativamente novo livro, "Determined: a Science of Life without Free Will", é taxativo: livre-arbítrio não existe.
Como a maioria no campo, ele diz que comportamentos são a resultante de vetores causais encaixados uns nos outros. No nível distal, pressões evolucionárias moldam sistemas de recompensa e punições.
Um passo à frente, dá-se a expressão distintiva de genes em função de contingências ambientais, ao passo que, no nível da ampulheta, a atividade neurológica determina o que fazemos e pensamos de dentro para fora, ao mesmo tempo em que processamos as informações que fazem o trajeto de fora para dentro.
Há dois princípios centrais na forma de determinismo defendida por Sapolsky. O primeiro é que todo fenômeno presente é causado por um anterior, que em si pode ser conhecido e explicado. Esse é o "princípio da razão suficiente", que costuma ser atribuído a Gottfried Leibniz, o qual lhe deu o mais belo verniz.
Para Sapolsky, a referência parece ser Spinosa, que dizia que "na mente, não há absolutos ou liberdade, posto que é determinada causalmente a querer isto ou aquilo por algo mais e assim por diante até o infinito".
O segundo princípio é que o nosso senso de direcionamento intencional não possui papel efetivo nas decisões que tomamos. A ideia é simples: como aquilo que surge à mente está estruturado a partir de fenômenos biológicos, e estes emergem de cadeias moleculares, não é preciso fazer referência à consciência para explicar o que esta parece fazer.
É interessante como, na terceira década do século 21, dois princípios tão distintos entre si sejam tratados como faces da mesma moeda. Definitivamente, eles não são!
O primeiro é amplamente aceito. O segundo, conhecido como reducionismo biológico, tem um problema para resolver antes de poder cantar vitória.
Desconhecemos seres vivos cujos traços fundamentais não sejam fruto da evolução por seleção natural e, portanto, não tenham função adaptativa. Isto acontece porque todos os traços têm custo para os organismos, que tendem a eliminar os que produzem balanço negativo.
Imaginar que uma característica definitiva de uma espécie meio estúpida, mas ainda assim dominante —como é o caso para a habilidade de representar mentalmente aquilo que podemos fazer e, em seguida, agir da maneira que nos parecer melhor—, não possui função adaptativa implica rechaçar a biologia evolucionária.
Para isso, é preciso apresentar evidências convincentes. Não basta dizer que a consciência não tem função alguma e que quem discorda é incapaz de aceitar que suas vontades são determinadas e por isso é tolo.
Eu não tenho dúvida de que as vontades são determinadas, apenas considero que um dos potenciais determinantes é exatamente esta manifestação que nos surge à mente na forma de orientação intencional, a qual dificilmente sobreviveria aos dias hostis do pleistoceno se não cumprisse algum papel na elevação da nossa relação com o mundo.
O movimento é claro: porque não compreendemos para que serve isto que nos surge à mente como orientação intencional, porque, a despeito de todos os avanços em nível superficial, não avançamos um palmo na compreensão da maneira como neurônios geram símbolos, ficamos confortáveis em simplesmente rechaçar a existência do problema como um todo, agindo como os behavioristas do miolo do século passado que simplesmente diziam que não era importante entender o mental para se explicar o comportamental.
Esta preguiça que em parte havia sido superada está voltando a ser dominante. Como um colunista preocupado em captar fenômenos mentais, tecnológicos e societários emergentes, este é o ponto central que eu gostaria de compartilhar. Sapolsky é só um exemplo.
Não entendemos, logo, não existe. Isto vale aqui, como também longe dos refletores e das questões mais profundas sobre o funcionamento da mente.
Por exemplo, há centenas de estudos clínicos, meta-análises e assim por diante sobre a eficácia da acupuntura. E há a experiência clínica de quem lida com pacientes no dia a dia. Nada disso importa para se dizer que não funciona, a partir do lugar de fala de quem nunca tocou em um paciente na vida, nem nunca produziu um ensaio clínico no tema. Como? É simples: de fato, a gente não sabe por quais vias a acupuntura funciona. Logo, só pode ser que não funcione.
Sapolsky, reductio ad absurdum
Diz-se que Jesus Cristo é filho de Deus e também que foi um homem. Apesar de não ter sido concebido pelos seus pais, nasceu da barriga de sua mãe, sangrou na cruz e deu diversos outros sinais de humanidade terrena. Na visão de Sapolsky, seu livre-arbítrio é equivalente ao dos outros homens, ou seja, nulo.
No entanto, Jesus veio ao mundo realizar uma missão que transcende a realidade terrena. Renegar os seres humanos nunca esteve em questão. Isto seria contra os desígnios de Deus. Logo, a sua liberdade é menor do que a do sujeito comum, que a princípio pode tentar descer ao inferno para um churrasco e até mesmo esquentar o planeta como uma grelha.
Aqui, ter uma missão significa se relacionar com a realidade a partir de um afunilamento de possibilidades. Acontece que não se trata de um afunilamento qualquer. A missão é divina, estando assim no plano das condições de existência, isto é, do livre-arbítrio. "As palavras que eu vos digo não as digo por mim mesmo; mas o Pai, que permanece em mim, faz as suas obras." (João, 14:10).
Não se trata de mera restrição no âmbito da liberdade negativa (aquela que some quando alguém lhe impede, conforme a definição de Berlin, acima), como no caso do Super-homem, que encucou em salvar a gente, ou Bill Gates depois de rico. A consequência inescapável é que, no sistema de Sapolsky, Jesus teria livre-arbítrio negativo.
Sapolsky provavelmente diria que, a despeito de ser logicamente consistente, o argumento não é relevante, já que Deus, seu filho e o Super-homem não existem de verdade, o que está alinhado com as minhas intuições. Porém, não é tão simples. Há fenômenos documentados que se encaixam como uma luva nessa categoria do livre-arbítrio negativo, o que leva a pensar se não deveriam servir de marco zero nesta discussão.
O tratamento da depressão refratária, com neuroestimuladores que identificam configurações cerebrais responsáveis pelo rebaixamento do humor e disparam impulsos elétricos que a alteram, é cada vez mais comum. Por meio do uso destas próteses, a capacidade de manifestar o estado decorrente das reações biomoleculares originalmente estabelecidas, que é o senso continuado de desespero, é achatada sinteticamente. Resultado: livre-arbítrio negativo.
Outra. Pesquisa de 30 anos, conduzida em nove países, concluiu que parcela relevante dos pacientes criticamente enfermos têm experiências de quase morte, nas quais seus sinais vitais são interrompidos por um tempo. Entre os que tiveram parada cardíaca e não morreram, a taxa pode chegar a 9%.
Como não faz sentido assumir que possam ser comandados por aquilo que não está em operação, segue que, durante o período em que estão sem sinais vitais, não têm livre arbítrio no mesmo nível (de nulidade) de alguém com vida. Falta-lhes função biológica para tanto.
Com isso em mente, note que boa parte destes pacientes relata experiências sensoriais durante a inatividade funcional. Ainda que não possamos saber se são meras criações a posteriori, o fato de existirem evidências de que pacientes ressuscitados foram capazes de reportar o que se discutia na sala de cirurgia, enquanto "visitavam o além", explicita o fato de que nos faltam pecinhas para montar o quebra-cabeças que liga neurônios e mentalizações.
Finalmente, considere que a inteligência artificial geral (AGI) seja atingida e que robôs capazes de agir de maneira 100% indistinta de humanos surjam. Seu livre-arbítrio certamente será zero, igual ao nosso. Agora, imagine que um cientista instale um atuador com um isótopo de urânio no interior de um robô. Quando este decair, o autômata apertará um botão e irá se explodir.
O decaimento de um átomo radioativo é, por definição, randômico. Logo, a ação deste robô não estará determinada, de acordo com o que defende Sapolsky. Como a derradeira presença de experiências conscientes de nada importa para o estabelecimento do livre-arbítrio, a conclusão inescapável é de que este robô será a única criatura do planeta dotada de livre-arbítrio.
O ponto desta exposição toda é mostrar como visões incensadas entre os cientistas podem se mostrar dogmáticas e bem pouco científicas. É sexy dizer que aquilo que não conseguimos explicar, por definição, não funciona ou não existe.
Porém, quem afirma possui o ônus da prova. Isto vale para a consciência, o livre-arbítrio, a capacidade de registrar experiências enquanto os sinais vitais desapareceram, tratamentos de eficácia clínica conhecida e demonstrada etc.
Sapolsky rechaça o paradigma central da evolução por seleção natural, que é o de que traços marcantes (como as representações mentais de natureza intencional) se mantêm justamente porque têm alguma função adaptativa, sem oferecer evidências para tanto.
Em paralelo, instaura a necessidade de considerarmos um bizarro estado de livre-arbítrio negativo e preconiza um mundo em que só robôs poderão ser verdadeiramente livres. Isso se chama preguiça. Melhor seguir considerando a questão em aberto. Assim como as outras que mencionei aqui.
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