sábado, 21 de maio de 2022

Tatiana Prazeres O que aprendi lendo jornais na China por três anos, FSP

Cultivei um hábito nos últimos três anos vivendo em Pequim. Lia, todos os dias, a imprensa chinesa em inglês. Começou despretensiosamente, como curiosidade intelectual, mas a leitura regular se revelou um aprendizado valioso.

É uma experiência sociológica fascinante ler o China Daily de ponta a ponta por, digamos, uma semana. Em algum grau, é informativo. É cívico. Em parte, é ótimo para quem precisa de um pouco de escapismo.

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Você termina de ler e se sente otimista com o mundo —e, claro, com a China. Para não ser injusta, o China Daily traz, eventualmente, notícias sobre corrupção ou um desastre ambiental num rincão da China —e elas são sempre acompanhadas de referências sobre punições e medidas para prevenir esses problemas.

Página do jornal Global Times com a imagem do Congresso americano em banca de Pequim
Página do jornal Global Times com a imagem do Congresso americano em banca de Pequim - Thomas Peter - 21.jan.21/Reuters

O Global Times, por sua vez, é útil para tomar a temperatura do pensamento do Partido Comunista Chinês. Lembro-me de que, em 2020, o então secretário de Estado americano mereceu um editorial intitulado "[Mike] Pompeo, um inimigo da paz mundial". Ele havia dito que o partido era uma ameaça à humanidade —e o GT se encarregou da resposta.

O South China Morning Post, de Hong Kong, é uma brisa de ar fresco na cobertura sobre a China. Costumo brincar que se trata do jornal mais importante do mundo do qual você nunca ouviu falar. O SCMP preenche uma lacuna na cobertura jornalística sobre a China porque é chinês (mesmo que de Hong Kong) e também é plural —trata de temas sensíveis, publica opiniões pró e contra Pequim. Recentemente, divulgou um vídeo de protestos de estudantes contra a política de "Covid zero".

O SCMP foi comprado em 2016 pelo grupo Alibaba, então liderado por Jack Ma, que é membro do partido —e isso não parece ter afetado a linha editorial do jornal. A Lei de Segurança Nacional para Hong Kong, de 2020, que levou ao fechamento de outros veículos, não silenciou o SCMP.

Nos últimos três anos, chama a atenção nos jornais em inglês da China continental o crescimento de uma visão negativa sobre o cenário internacional. Consolidou-se a mensagem de que o Ocidente não aceita a ascensão chinesa. O proverbial ganha-ganha, típico do discurso chinês sobre relações externas, foi perdendo espaço.

Ganharam destaque, ao mesmo tempo, críticas aos problemas americanos. Tensões raciais e atentados com armas de fogo nos EUA, por exemplo, têm ampla repercussão —a ponto de fazer com que pais chineses tenham receio de mandar seus filhos para estudar em universidades americanas, como me contou um aluno de Yunnan.

A pandemia fez com que, incansavelmente, a imprensa chinesa contrastasse o caos no exterior com a normalidade no país, sobretudo entre 2020 e 2021. Agora, o foco é valorizar os resultados desses dois anos. Nesta semana, com lockdowns ainda em vigor, o destaque do China Daily foi para o fato de que 1 milhão de americanos morreram de Covid. O tom triunfalista da superioridade da resposta chinesa arrefeceu, mas a essência da mensagem não mudou.

Um sinólogo uma vez me disse que, na China, o jornalista é um profissional que vê seu papel como parte da construção da imagem do país. Aprende-se assim desde a faculdade. Quando comentei essa visão com um amigo jornalista chinês, ele me devolveu a provocaçãose os estrangeiros já fazem o papel de criticar a China, o seu seria o de oferecer o contraponto.

Não são necessários três anos de leitura para chegar a essa conclusão, mas, goste-se ou não, conhecer melhor a China de hoje passa por entender as mensagens que o governo quer transmitir. 

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