quarta-feira, 25 de maio de 2022

Sérgio Rodrigues - Entrevista com o general do povo, FSP

 


Num desses cruzamentos virtuais em que a literatura e a realidade se espelham e se desafiam, calhou de eu estar esta semana conversando com um dos maiores militares progressistas da história do Brasil, o general Patrício Macário.

Esta semana, bem entendido: aquela em que um grupo de militares liderado pelo general Villas Bôas —aquele que intimidou o STF em 2018 pelo Twitter— divulgou "em um ambiente eivado de patriotismo" (sic) seu "projeto de nação".

Macário é um outro tipo de milico. Inimigo mortal de todos os valores antipovo que o bolsonarismo transformou em bandeiras, só chegou ao topo da carreira na reforma.

General Villas Bôas discursa no Senado
Um grupo de militares liderado pelo general Villas Bôas divulgou "em um ambiente eivado de patriotismo" (sic) seu "projeto de nação" - Jefferson Rudy - 15.jun.16/Agência Senado

Herói de guerra na juventude, tipo por todos como destinado a um futuro brilhante, acabou prejudicado por sua consciência histórica e sua retidão, sofrendo por "testemunhar covardia, duplicidade, corrupção e venalidade impunes, recompensadas mesmo, assistir às dificuldades dos bons e às vitórias dos maus".

Macário se notabilizou como um crítico feroz da atuação do Exército como "instrumento repressor" do próprio povo, empregado para "garantir o poder de facções políticas que não passavam de aparências diversas da mesma coisa, em seus jogos de confronto e equilíbrio".

E que coisa seria essa, sob a ilusão das aparências diversas? O pequeno conjunto dos donos do poder, uma elite que despreza o próprio país. Dirigindo-se a eles, o velho general se exalta: "Pilhadores, piratas, saqueadores, encaram esta terra como uma coisa que não tem nada a ver com vocês, não querem dar nada, só querem tirar!".

Pois é, Patrício Macário é um general peculiar. Para ele a ética militar, com seus esteios de honra, bravura e disciplina, só se justifica quando empregada em favor dos "brasileiros pobres, mantidos na miséria e na vida servil, brasileiros tornados estrangeiros para os que, nas cidades, bradavam pelo seu extermínio e os odiavam e temiam como se odeia e teme o diabo".

A princípio, ouvindo Macário falar, a gente tende a achar que ele se refere aos indígenas assassinados por garimpeiros ilegais sob a omissão incentivadora do Estado. Ou aos moradores de favelas chacinados pela Polícia Militar a mando do Estado. Ou a qualquer dessas notícias rotineiras num país primitivo que envergonha profundamente todos os que aqui nasceram.

Sim, o general fala mesmo dessas desgraças, mas só porque são atemporais aqueles cruzamentos em que a literatura e a realidade se espelham e se desafiam. Na verdade, o grande responsável por sua desilusão com o Exército foi o massacre de Canudos.

Condecorado na Guerra do Paraguai, Patrício Macário foi um republicano de primeira hora que, como tantos outros, viu a República se transformar "no veículo para (...) ganharem mais dinheiro, mais poder, mais se locupletarem" os "ladrões do próprio país, traidores do próprio povo".

O velho militar anda amargo, e com excelentes razões, mas não perdeu a esperança. Se nós chegamos a esse encontro na esquina vindo da avenida realidade, ele vem de outro lugar, onde tem todo o tempo do mundo para esperar que a maré histórica vire. E acredita que ela vai virar.

Ao contrário da gente humilhada e massacrada que faz seu coração sangrar, o general do povo não morre. Os melhores personagens de ficção são assim. Sempre que um leitor se lançar às páginas mágicas de "Viva o Povo Brasileiro", de João Ubaldo Ribeiro, lá estará Patrício Macário a nos lembrar que um outro país é possível.

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