Num desses cruzamentos virtuais em que a literatura e a realidade se espelham e se desafiam, calhou de eu estar esta semana conversando com um dos maiores militares progressistas da história do Brasil, o general Patrício Macário.
Esta semana, bem entendido: aquela em que um grupo de militares liderado pelo general Villas Bôas —aquele que intimidou o STF em 2018 pelo Twitter— divulgou "em um ambiente eivado de patriotismo" (sic) seu "projeto de nação".
Macário é um outro tipo de milico. Inimigo mortal de todos os valores antipovo que o bolsonarismo transformou em bandeiras, só chegou ao topo da carreira na reforma.
Herói de guerra na juventude, tipo por todos como destinado a um futuro brilhante, acabou prejudicado por sua consciência histórica e sua retidão, sofrendo por "testemunhar covardia, duplicidade, corrupção e venalidade impunes, recompensadas mesmo, assistir às dificuldades dos bons e às vitórias dos maus".
Macário se notabilizou como um crítico feroz da atuação do Exército como "instrumento repressor" do próprio povo, empregado para "garantir o poder de facções políticas que não passavam de aparências diversas da mesma coisa, em seus jogos de confronto e equilíbrio".
E que coisa seria essa, sob a ilusão das aparências diversas? O pequeno conjunto dos donos do poder, uma elite que despreza o próprio país. Dirigindo-se a eles, o velho general se exalta: "Pilhadores, piratas, saqueadores, encaram esta terra como uma coisa que não tem nada a ver com vocês, não querem dar nada, só querem tirar!".
Pois é, Patrício Macário é um general peculiar. Para ele a ética militar, com seus esteios de honra, bravura e disciplina, só se justifica quando empregada em favor dos "brasileiros pobres, mantidos na miséria e na vida servil, brasileiros tornados estrangeiros para os que, nas cidades, bradavam pelo seu extermínio e os odiavam e temiam como se odeia e teme o diabo".
A princípio, ouvindo Macário falar, a gente tende a achar que ele se refere aos indígenas assassinados por garimpeiros ilegais sob a omissão incentivadora do Estado. Ou aos moradores de favelas chacinados pela Polícia Militar a mando do Estado. Ou a qualquer dessas notícias rotineiras num país primitivo que envergonha profundamente todos os que aqui nasceram.
Sim, o general fala mesmo dessas desgraças, mas só porque são atemporais aqueles cruzamentos em que a literatura e a realidade se espelham e se desafiam. Na verdade, o grande responsável por sua desilusão com o Exército foi o massacre de Canudos.
Condecorado na Guerra do Paraguai, Patrício Macário foi um republicano de primeira hora que, como tantos outros, viu a República se transformar "no veículo para (...) ganharem mais dinheiro, mais poder, mais se locupletarem" os "ladrões do próprio país, traidores do próprio povo".
O velho militar anda amargo, e com excelentes razões, mas não perdeu a esperança. Se nós chegamos a esse encontro na esquina vindo da avenida realidade, ele vem de outro lugar, onde tem todo o tempo do mundo para esperar que a maré histórica vire. E acredita que ela vai virar.
Ao contrário da gente humilhada e massacrada que faz seu coração sangrar, o general do povo não morre. Os melhores personagens de ficção são assim. Sempre que um leitor se lançar às páginas mágicas de "Viva o Povo Brasileiro", de João Ubaldo Ribeiro, lá estará Patrício Macário a nos lembrar que um outro país é possível.
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