O censo da população em situação de rua em São Paulo oferece números concretos para problemas que já estavam claramente identificados: o enorme crescimento dessa população durante a pandemia, a mudança do perfil social desse contingente o atraso da prefeitura em dar uma resposta a um problema crônico que se tornou agudo há dois anos.
Como é visível para quem vem observando esse processo nas ruas e praças da cidade, não apenas ocorreu uma explosão no número total dessa população (aumento de 31% em dois anos, sendo que 54% dos que dormem na rua), como alterou-se profundamente o perfil dos moradores, com maior presença de famílias que perderam a renda.
Tradicionalmente, essa população era formada majoritariamente por homens, geralmente com dependência de álcool e drogas e desajustamento familiar. Agora, além desses perfis, que continuam presentes, 28,4% da população é formada por pessoas que perderam trabalho e renda e 7,7% por outras causas.
Daí a enorme porcentagem de famílias (30%) e a significativa presença de crianças na rua. O enorme aumento do número de barracas, que subiu de 2.051 para 6.778 unidades (230%), também expressa a mudança do perfil dos moradores. De certa forma, as barracas representam uma maneira de moradores recém despejados buscarem reproduzir, de alguma maneira, um lar que foi destroçado.
É por isso que, como escrevi na coluna de 5 de dezembro, "São Paulo virou um enorme acampamento de sem-teto". É só circular pelo centro da cidade para ver, junto às barracas, sofás, colchões, travesseiros, malas, brinquedos e outros objetos domésticos que denotam a presença de pessoas que até recentemente tinham uma moradia.
Embora os números possam estar subdimensionados, pela própria dificuldade desse tipo de levantamento, eles são suficientes para deixar claro que a explosão da população de rua é resultado da forte crise habitacional que atingiu os inquilinos pobres em decorrência da pandemia e do isolamento social. O ônus excessivo do aluguel nas famílias de baixa renda já é o principal componente do déficit habitacional no Brasil.
Esse fenômeno poderia ter sido evitado se a prefeitura tivesse atuado desde o início da pandemia quando a questão foi detectada. Era evidente que o auxílio emergencial, inicialmente de R$ 600 (depois reduzido para R$ 300), seria insuficiente para os inquilinos que perderam emprego e renda. Entre comer ou pagar o aluguel, não se tem muita escolha. Um cômodo em um cortiço nos bairros no entorno do centro pode custar até um salário mínimo.
O Estado e a prefeitura precisavam ter atuado preventivamente para evitar o despejo dessas famílias, seja ampliando emergencialmente o Programa Bolsa-Aluguel, seja intermediando a relação com o locador para evitar o despejo seja criando alternativas habitacionais imediatas, como o alojamento em hotéis, que apresentavam grande ociosidade.
Em dois anos, nada foi feito, mesmo sabendo que ficar em casa (portanto, ter uma casa) era a principal recomendação sanitária. Aliás, contraditoriamente com esse discurso de prevenção, o governador Doria vetou lei aprovada pela Assembleia Legislativa que suspendia os despejos durante a pandemia, contribuindo para o agravamento da questão.
Prejuízos de toda ordem ocorrem com uma família que é obrigada a ir morar na rua. Destrói-se um lar; móveis e objetos pessoais, assim como as lembranças ficam abandonados e perdidos; inicia-se um processo de desestruturação familiar; obter um emprego torna-se muito difícil; a saúde se deteriora; a autoestima vai lá embaixo, com graves consequências mentais.
Agora, com o leite já derramado, a prefeitura anuncia um programa da assistência social que prevê a construção de casinhas de 18m² para oferecer moradia temporária de 12 meses para família em situação de rua. Só com mais detalhes será possível avaliar essa alternativa, mas é positivo a prefeitura ao menos reconhecer que precisa fazer algo.
O fundamental é ela perceber a necessidade de atuar preventivamente para evitar que novas famílias percam suas moradias e sem alternativa, sejam obrigadas a ir para a rua. A reportagem do Fantástico mostrou pessoas que chegaram na rua há menos de uma semana, o que mostra que o processo segue acelerado.
É fundamental ainda o poder público atuar para evitar qualquer reintegração de posse no município, evitando a repetição de episódios como o despejo realizado em dezembro em uma ocupação na Vila Sonia. A prefeitura precisa suspender, por tempo indeterminado, ações de reintegração que ela própria está promovendo, por exemplo no Programa de Parceria Público Privadas.
Despejo zero é indispensável para evitar a população em situação de rua continue crescendo.
Vinte anos após a edição original ("Folha explica São Paulo", 2001), a Editora Fósforo está lançando, no aniversário da cidade, uma reedição do livro da urbanista Raquel Rolnik sobre a história e os dilemas da maior metrópole da América do Sul, agora intitulado "São Paulo: o planejamento da desigualdade".
Com uma cara nova e um precioso e surpreendente prefácio assinado por Emicida, o livro da minha melhor amiga dos tempos de estudantes da FAU, nos anos 1970 (quando juntos fomos pesquisar e entender as periferias de São Paulo), continua vigoroso no seu propósito de traduzir para o cidadão comum a história da cidade, incluindo um novo capítulo sobre as duas últimas décadas.
Como diz a autora, "é um texto para conhecer a história e entender o presente, mas sobretudo é um manifesto que acredita que, se decisões de política urbana nos trouxeram até aqui, guinadas em outras direções são sempre possíveis".
Que guinadas São Paulo precisa dar? Como escreveu Emicida, "a cidade é para todos, precisa ser, caso contrário o medo a fará não ser de ninguém. É uma utopia, que na verdade só é utopia devido à falta de vontade política presente em diversas gestões indiferentes ao drama dos que nasceram ou escolheram Sampa pra viver".
Nada expressa tão bem a ideia de desigualdade, de falta de vontade política para enfrentar os problemas sociais urbanos e a necessidade de se dar uma guinada na gestão pública do que esse enorme crescimento da população de rua nos dois últimos anos.
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