Cheguei na barranca do mundo e fotografei o abismo. Não, não estou falando nem muito menos defendendo o terraplanismo. Busco na fantasia dos negacionistas a alegoria para descrever o momento. Para os defensores da democracia, a vida não anda fácil: vivemos numa era em que as versões viram verdades, e os fatos, meras alegorias a serviço de interpretações subjetivas, sem compromisso com autenticidade e coerência.
Falo das aberrações ditas em nome da liberdade, do negacionismo à ciência, dos autoritários travestidos de democratas e dos que incentivam a competição sem limites entre os indivíduos como mecanismo de desenvolvimento humano.
Para alguns que estão no poder no Brasil, de pouca leitura sobre liberalismo, o termo "liberdade" virou um mantra vazio a ser repetido sem compromisso com seu significado. Cultuam a narrativa da liberdade como valor absoluto, que hoje se encontraria ameaçada pelo "comunismo em ascensão". Quanto devaneio!
Como escreveu Aristóteles, "o homem é um ser gregário por natureza —nasceu para viver em comunidade". Portanto, a liberdade não é uma palavra vazia do tipo "direito de ir e vir", dissociada das relações intersubjetivas. Pelo contrário, pressupõe o reconhecimento das diferenças e se consolida no equilíbrio das relações entre indivíduos ou grupos de indivíduos. Aliás, a democracia é um mecanismo de composição das diferenças. É nela que se ancora a forma pactuada dos limites da liberdade.
Atravessamos um período histórico confuso. Talvez seja resultado de um mundo projetado para fazer da competição o mecanismo principal para medir o valor entre as pessoas. Essa é a lógica do ultraliberalismo. São da lavra dos ultraliberais a igualdade formal, ou igualdade do ponto de partida, a seleção natural dos melhores (meritocracia) e a competitividade como meio de impulsionar a construção de riquezas, relativizando a solidariedade como força motriz na construção de uma sociedade mais humana e fraterna, confundindo o termo liberdade com livre iniciativa.
Talvez esteja aí a explicação para a banalização da vida. Quando vemos uma criança descalça pedindo no semáforo ou milhares de pessoas morando em barracas ou viadutos —ou, ainda, na fila do osso ou disputando restos de comida no lixo— e todas elas passam a fazer parte da paisagem urbana sem que se tornem motivo de indignação coletiva é sinal da deterioração das relações humanas.
Os tempos atuais exigem que gritemos pela valorização da vida, por maior distribuição de renda, democratização do saber, mais solidariedade e pelo binômio liberdade-igualdade como expressão da libertação humana do jugo autoritário.
Do contrário, continuaremos sem olhar para cima, nem para os lados e muito menos para a frente. Seguiremos olhando apenas para os nossos celulares à procura de mais curtidas e na ilusão de que o ato de cancelar os indivíduos indesejáveis nos traga um sono tranquilo.
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