Na semana passada ocorreu a "Governe Conference", organizada pela Igreja Batista Lagoinha em Orlando, na Flórida. É raro ver uma instituição religiosa ser tão explicitamente instrumentalizada para um projeto político.
No evento, estavam presentes, entre outros, o ministro Fabio Faria e o jornalista foragido Allan dos Santos. A mensagem era clara: os cristãos têm que ocupar o poder e, no presente, isso significa apoiar Bolsonaro. Mas o que explica essa sede de poder justo num evento de igreja?
Afinal, ao contrário de líderes religiosos como Moisés ou Maomé, Jesus não fundou um Estado nem promulgou leis. Ele dizia que seu reino não era deste mundo. Segundo os evangelhos, ele foi acusado de fomentar a rebelião política, mas as acusações eram falsas.
Ademais, uma das três tentações a que o diabo submeteu Jesus foi justamente a do poder: "O diabo transportou [Jesus] a um monte muito alto; e mostrou-lhe todos os reinos do mundo, e a glória deles. E disse-lhe: 'Tudo isto te darei se, prostrado, me adorares'." Jesus, previsivelmente, recusou a proposta.
Então como algumas igrejas de hoje, que dizem seguir esse mesmo Jesus, justificam o prostrar-se perante Bolsonaro em troca da glória do reino deste mundo? Promovendo a pura e simples paranoia. No dizer de Allan dos Santos: "De um lado você tem psicopatas, assassinos, ladrões, satanistas e, do outro lado, gente normal." Se os cristãos não se mobilizarem, serão devorados por um projeto satânico-comunista --gestado pela todo-poderosa Escola de Frankfurt-- de destruição da família e da sociedade.
Não é a primeira vez que cristãos cedem à tentação do poder. Desde que o movimento inicialmente perseguido chegou ao poder com a conversão do imperador Constantino, foi colocado o problema da relação entre Estado e Igreja.
Em diversos momentos dessa história, movimentos cristãos buscavam se desvencilhar das roupagens mundanas, da tentação do poder, e retomar a mensagem radical de amor ao próximo e esperança no outro mundo: o surgimento dos monges ainda no Império Romano, o movimento de Francisco de Assis no século 12, os reformadores protestantes no século 16.
Lutero, frente uma igreja cujo chefe máximo, o papa, comandava exércitos e exigia dos reis a imposição da doutrina católica, defendeu a liberdade de crença e a doutrina controversa de que dificilmente um príncipe seria um bom cristão. Uma é coisa ser membro de uma igreja, ter um CNPJ, ostentar o título "cristão". Outra é de fato acreditar e seguir os ensinamentos de Jesus. Nem tudo que favorece o primeiro ajuda o segundo.
"Quanto mais poder cultural os cristãos tiverem, mais Nosso Senhor impera.", disse Allan sob aplausos. O poder cultural de cristãos no passado gerou catedrais e A Divina Comédia, mas também a Inquisição, a caça às bruxas, o antissemitismo e a pena de morte a homossexuais. Todos esses, é claro, feitos sob a mesma sensação de que o inimigo poderosíssimo (o judeu, o herege) tem um plano arquitetado nas sombras e está pronto para persegui-los.
O medo ilusório da perseguição assombra as igrejas brasileiras. Mas não vemos igrejas sendo queimadas (ao contrário de terreiros). Com a instrumentalização do medo, justifca-se a busca do poder como cerne da missão espiritual. Resta saber se, assim como em outras épocas, o cristianismo brasileiro saberá reagir. Ou se, com Nietzsche, teremos que admitir que "houve apenas um cristão, e ele morreu na cruz".
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