Os americanos gostam de pensar que seu país é um farol da liberdade. E apesar de termos falhado de várias maneiras em corresponder a essa imagem, acima de todas as enormes injustiças que brotaram do pecado original da escravidão, a liberdade —não apenas eleições livres, mas também liberdade de expressão e pensamento— é há muito tempo um elemento chave da ideia americana.
Hoje, porém, a liberdade está sendo atacada, e em mais frentes do que muitas pessoas percebem. Todo mundo sabe da Grande Mentira, a recusa da ampla maioria dos republicanos a aceitar a legitimidade de uma derrota eleitoral. Mas há muitas outras áreas em que a liberdade não apenas sofre ataques, como está retrocedendo.
Vamos falar, em particular, sobre o ataque à educação, especialmente, mas não apenas, na Flórida, que se tornou um dos principais laboratórios de erosão democrática nos Estados Unidos.
Os republicanos fizeram um avanço político considerável ao denunciar o ensino da TCR (teoria crítica da raça; a estratégia deu certo, apesar de a maioria dos eleitores não ter ideia do que é essa teoria, e na verdade ela não estar sendo ensinada nas escolas públicas. Mas os fatos nesse caso não importam, porque as denúncias sobre TCR são basicamente um disfarce para uma agenda muito maior: a tentativa de impedir as escolas de ensinar qualquer coisa que deixe as pessoas de direita incomodadas.
Eu uso essa última palavra com consideração: há um projeto de lei que corre no Senado da Flórida que declara que um indivíduo "não deve ser levado a sentir incômodo, culpa, nervosismo ou qualquer outra forma de aflição psicológica por causa de sua raça". Isto é, o critério para o que pode ser ensinado não é "Isso é verdade? É apoiado pelo consenso acadêmico?", mas sim "Isso causa incômodo em certos eleitorados?"
Qualquer pessoa tentada a fazer uma interpretação inofensiva desse dispositivo —talvez seja apenas questão de não atribuir uma culpa coletiva?— deveria ler o texto da lei. Entre outras coisas, ela cita como dois exemplos básicos de coisas que não devem acontecer nas escolas "a negação ou minimização do Holocausto e o ensino da teoria crítica da raça" —porque sugerir que "o racismo está inserido na sociedade americana" (a definição da teoria no projeto de lei) é simplesmente a mesma coisa que negar que Hitler matou seis milhões de judeus.
O que é realmente chocante, entretanto, é a ideia de que as escolas devem ser proibidas de ensinar qualquer coisa que cause "incômodo" [ou desconforto] entre os estudantes e seus pais. Se você imagina que as consequências de se aplicar esse princípio se limitariam ao ensino sobre relações raciais, está sendo totalmente ingênuo.
Por um lado, o racismo está longe de ser o único tema perturbador na história americana. Tenho a certeza de que alguns estudantes acharão que a história de como chegamos a invadir o Iraque —ou mesmo de como nos envolvemos no Vietnã— os deixa incomodados. Removam esses temas do currículo!
Depois há o ensino de ciência. A maioria dos colégios ensina a teoria da evolução, mas importantes políticos republicanos ou são evasivos ou negam ativamente o consenso científico, supostamente refletindo o incômodo da base do partido com esse conceito. Quando o padrão da Flórida predominar, por quanto tempo o ensino da evolução sobreviverá?
A geologia, aliás, tem o mesmo problema. Estive em excursões na natureza em que os guias se recusaram a falar sobre as origens das formações rochosas, dizendo que já tiveram problemas com alguns clientes religiosos.
Ah, e dada a crescente importância da posição antivacina como emblema da aliança conservadora, quanto tempo levará para que a epidemiologia básica —talvez até a teoria microbiana da doença— receba o mesmo tratamento que a teoria crítica da raça?
Depois temos a economia, que hoje em dia é amplamente ensinada no nível secundário. (Revelação: muitos colégios usam uma versão adaptada do texto sobre os princípios do qual sou coautor.) Diante da longa história de tentativas de viés político para impedir o ensino da economia keynesiana, o que você acha que o padrão da Flórida faria ao ensino em meu campo?
A questão é que a campanha de difamação contra a teoria crítica da raça é quase certamente o início de uma tentativa de submeter a educação em geral ao regime da polícia do pensamento da direita, o que terá consequências terríveis muito além do tema específico do racismo.
E quem vai aplicar as regras? Vigilantes pagos pelo estado! No mês passado, Ron DeSantis, o governador da Flórida, propôs uma "Lei Parem o WOKE" [WOKE é a sigla de "Wrongs Against Our Kids and Employees", ou "erros contra nossos filhos e empregados"], que daria aos pais o poder de processar distritos escolares que, segundo eles, ensinam a teoria crítica da raça —e cobrar honorários de advogados, um modelo parecido com a nova lei antiaborto do Texas. A mera perspectiva de tais processos jurídicos teria um efeito congelante no ensino.
Eu já falei que DeSantis também quer criar uma polícia especial para investigar a fraude nas eleições? Assim como os ataques à teoria crítica da raça, essa é obviamente uma tentativa de usar uma questão inventada —a fraude eleitoral é amplamente inexistente— como desculpa para intimidação.
Está bem, tenho certeza de que algumas pessoas dirão que estou dando demasiada importância a essas questões. Mas pergunte a si mesmo: houve algum ponto nos últimos cinco anos, digamos, em que as advertências sobre o extremismo de direita se mostraram exageradas e os que rejeitaram essas advertências como "alarmistas" estiveram certos?
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves
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