Globalização centrada em linhas da China é alvo de debate, inclusive no Brasil
SÃO PAULO
Entre os impactos da pandemia do novo coronavírus sobre a economia mundial, o efeito sobre o modelo de cadeias globais de produção é um dos mais evidentes.
Afinal, foi no país-símbolo da globalização de linhas, a China, que a crise começou –e, apesar de a curva de infecção parecer sob controle, a reabertura econômica por Pequim ainda é tímida.
Cerca de 16% do Produto Interno Bruto mundial é chinês, ante 4,3% registrados na crise sanitária anterior de grandes proporções no país, a epidemia da Sars, em 2002-3.
"A globalização vai sofrer um choque, com maior protecionismo. Antes do lockdown, os EUA já vinham num movimento de reindustrialização", avalia Paulo Cardamone, da Bright Consulting.
Especialista no setor automotivo, ele lembra que cada mercado e setor tem sua peculiaridade, não sendo possível desenhar uma resposta única à crise.
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"Cerca de 30% de um carro de entrada no Brasil é importado. Essa realidade será confrontada com o dólar a mais de R$ 5 quando o consumo voltar."
Em suas contas, pode haver um aumento de 7% a 8% no preço de carros dessa categoria, e bem mais em modelos mais sofisticados.
A GM, por exemplo, anunciou nesta terça (5) um aumento linear de 4% para sua linha.
A China é a maior fornecedora de autopeças para o Brasil, com 13% dos US$ 13,2 bilhões (cerca de R$ 73 bilhões nesta terça) importados no ano passado.
Mas é um mercado muito pulverizado, com 9 grandes atores e 154 países fornecendo 32% do que é comprado.
"O processo de nacionalização é natural. Montadoras têm milhares de fornecedores, se o custo empatar, elas preferem o produtor local pela logística", diz o diretor técnico da Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos", Henry Joseph Junior.
A questão é que boa parte da eletrônica embarcada em carros vem hoje da afetada China. Cerca de 50% da frota brasileira hoje tem câmbio automático, que não é feito no país.
Há questões colocadas acerca da saúde das fornecedoras médias e pequenas.
Elas são cerca de 300 das 450 do gênero no país.
O setor já havia sido castigado na recessão de 2015-16 e ainda não havia se recuperado do tombo.
Mas o Brasil pode também lucrar com uma desconcentração de linhas da China.
Antes mesmo da crise, segundo Joseph, havia uma discussão na indústria de transformar o Brasil em fornecedor de motores a combustão para todo o mundo –parques mais sofisticados se dedicariam a modelos elétricos.
Para David Simchi-Levi, professor do MIT (Massachusetts Institute of Technology, EUA) e especialista em cadeias de suprimento, ainda não é possível quantificar a disrupção em todo o mundo.
Na avaliação dele, o problema maior será o tombo financeiro que empresas conectadas às cadeias levarão, dado que o consumo dificilmente voltará aos níveis pré-crise tão cedo.
O especialista prevê que países do Sudeste Asiático tenderão a receber parte da capacidade instalada na China hoje em vários setores.
A globalização como a conhecemos atingiu seu pico em 2007. Desde então, os fluxos internacionais de comércio sofreram o baque da crise de 2008 e nunca voltaram ao nível anterior.
Mesmo a participação das cadeias na economia mundial parou de crescer, ficando na casa dos 50%, segundo o Banco Mundial.
Essa relativização, como dito, não é uniforme. A crise do coronavírus foi mais óbvia no setor de fármacos.
Talvez 80% dos insumos consumidos no Brasil venham da China e da Índia, que restringiu exportações por motivos de biossegurança: no aperto, os países priorizam seus habitantes.
Nos EUA, a importação é de 72%. Máscaras cirúrgicas, item essencial hoje, são 95% importadas da China, o que levou o governo a aplicar um ato de tempos de guerra para eventualmente forçar empresas a redirecionar suas linhas de produção.
Segundo o Instituto de Gestão de Suprimentos (EUA), a mais tradicional instituição de estudos sobre o tema do mundo, havia pouco preparo para a crise.
Em março, o instituto fez uma pesquisa com 628 grandes integrantes americanos de cadeias globais para aferir o impacto da paralisação da produção chinesa devido à emergência sanitária.
Nada menos do que 44% dos ouvidos disseram não ter planos de contingência na área, e 75% deles relataram algum tipo de interrupção de seus fornecedores chineses.
No Brasil, o setor químico é um dos mais preocupados com o desenvolvimento da crise. Há quatro anos, 30% de seus insumos vinham de fora; hoje o índice é de 43%.
"Nós temos escala global para produzir muitas coisas, mas hoje importamos ureia e amônia para fertilizantes", diz Ciro Marino, presidente da Abiquim (Associação Brasileira da Indústria Química).
O setor virou um caso de estudo no começo da pandemia. O Brasil tem álcool de sobra, mas não produzia o espessante para fazer a agora imprescindível versão em gel.
O resultado foi a conversão de algumas linhas, como na Dow, para a produção do insumo que sumiu do mercado.
Para Marino, "o mundo se acostumou a essa globalização". "Nós não fazemos farmoquímicos para os defensivos agrícolas. É uma questão de biossegurança, de segurança alimentar", diz.
Ele admite que a transição para alguma nacionalização do setor não será nem fácil, nem rápida, especialmente com a saída progressiva da Petrobras do ramo petroquímico nos últimos anos.
Há entraves. Diversos setores entregaram ao Ministério da Economia um estudo mostrando que só a logística do custo Brasil custa anualmente ao país R$ 1,5 trilhão acima do custo médio de países da OCDE, o clube de economias mais avançadas.
Marino vê áreas que podem avançar mais rapidamente, como a exploração de gás natural liquefeito. Hoje, o gás nos EUA custa cerca de R$ 10 por milhão de BTUs (unidade métrica britânica, em inglês). Na Europa, é o dobro, e, no Brasil, cinco vezes mais.
A pasta de Paulo Guedes informou que está em discussões com diversos setores, mas que o foco agora são os impactos mais emergenciais da crise. Além disso, a equipe econômica tende a ver com desconfiança a ideia de nacionalizações que não obedeçam a lógicas de mercado.
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