domingo, 8 de outubro de 2023

Sensores adesivos podem impulsionar a medicina em direção à prevenção, Alvaro Machado DIas _FSP

 A obsessão com o adiamento da morte, que sintomaticamente explodiu em popularidade no pós-pandemia, serve de ponto de encontro para os existencialmente amedrontados e circunstancialmente insatisfeitos —vale ler o brilhante artigo de João Pereira Coutinho sobre isso.

Tema diverso é o do curso do envelhecimento biológico, que encena o jogo psicológico no domínio do declínio, cujo guarda-chuva abriga percepções incômodas relacionadas à dor e não à insatisfação. O mote aqui é a preferência dominante em todas as culturas por se manter saudável até as vésperas da morte, numa dinâmica com formato de J: manutenção de níveis quase estáveis de saúde até que uma transição rápida tire-nos de cena.

Idosos se exercitam na Coreia do Sul - Damir Sagolj - 9.abr.14/Reuters

Na minha visão, esta será uma perspectiva cada vez mais comum, em função da miniaturização dos laboratórios de análises clínicas e conversão dos mesmos em produtos descartáveis que qualquer um poderá manipular.

O contraste mais nítido é com o fim precedido por décadas de sofrimento debilitante, mas há também certa incompatibilidade com o que é "default" hoje em dia: a naturalização da perda lenta de vitalidade, em face da qual o sujeito vai gradualmente abandonando as coisas que valoriza como se isso fosse natural. Pois bem, não é. Não está escrito no livro da vida que a criatura que anda com quatro patas de manhã e duas ao meio-dia de fato precisa andar com três à noite.

Parte substancial deste declínio é evitável, desde que haja disposição para mexer em vespeiros silenciosos, o que em si tem os seus custos. Racionalmente, eles são amplamente justificáveis, mas é a irracionalidade que pauta a nossa relação com a saúde. Colocamos quase todo o foco em tratamento, ignorando a prevenção, como a escassez absoluta de investimentos públicos nessa forma de poupança existencial revela.

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O elefante na sala é que nossa capacidade de curar doenças facilitadas pelo comportamento é limitada, vide o caso do câncer. Não é para menos, o que chamamos por este nome é um conjunto heterogêneo de doenças afetando circuitos moleculares que definem o que é a vida. Sua cura representa um salto comparável ao surgimento da inteligência artificial geral.

O baixo investimento não é apenas causa, mas também consequência da maneira como cada um de nós pensa a prevenção. É preciso subestimar as pessoas para assumir que não sabem que exercícios físicos, controle calórico, sono e manejo do estresse previnem doenças. A mesma coisa se aplica à detecção precoce e, portanto, à importância de se submeter a exames de rotina.

Se é assim, e o desejo de evitar o sofrimento e encontrar a morte após um percurso em J é quase universal, por que a gente faz quase tudo errado? Bom, nem sempre é uma questão de escolha. Parte substancial da população não tem acesso à saúde preventiva, nem pode se dar ao luxo de adotar posturas concernentes no dia a dia. O diálogo se restringe aos 16% da população que fazem parte das classes A e B.

A minha hipótese é que uma intuição poderosa afaste a vontade neste grupo. Esta é a de que as interações com o sistema de saúde devem gerar valor imediato; por exemplo, quando uma doença é diagnosticada e um medicamento é prescrito. Uma vez que exames de rotina e outras ações preventivas não costumam produzir isso, só se tornam relevantes no adeus à curva em J.

O rechaço à prevenção é só mais um caso em que a incapacidade para valorar riscos progressivos sobre os ativos mais valiosos combina-se à baixa empatia em relação ao eu futuro na formação de inclinações decisórias causadoras de dor e arrependimento. A novidade é que estão sendo desenvolvidas soluções que contornam a armadilha e podem virar a chave da prevenção, numa das maiores transformações da área da saúde em décadas.

SENSORES INTERSTICIAIS PODEM TORNAR A PREVENÇÃO MAINSTREAM

Como toda dinâmica multifatorial, a incorporação ao status quo das práticas preventivas acontecerá em etapas. Ela já vem dando seus primeiros sinais, conforme aponta o mais recente estudo retrospectivo publicado e o ritmo deve se acelerar um pouco com a disseminação de aplicativos que usam sensores de celulares e relógios para aferir dados de saúde e orientar diagnósticos. Mas não espere que isso produza uma transição de fase.

Variabilidade cardíaca usando a câmera do celular como sensor, apneia pelo microfone, inventários psiquiátricos apoiados por bots, saúde respiratória e outras pelo sonar embutido nos amplificadores etc., estão em desenvolvimento neste momento. Legal, mas passam longe de substituir um exame de sangue.

A minha aposta é que o salto aconteça com a chegada de sensores que analisam os fluidos que ficam entre os tecidos (intersticiais), a partir da pele. Ao que tudo indica, eles terão formato de adesivo e poderão ser grudados aos braços ou pernas para o monitoramento de fatores críticos à prevenção, como glicose (o que já acontece), colesterol, enzimas, hormônios e, segundo especulações mais ousadas, até mesmo alguns marcadores de câncer, sem interferências na rotina do paciente/consumidor. Outra função esperada é o acompanhamento do nível de medicamentos no organismo, o que poderá ser seguido pela liberação automática dos mesmos.

Para elaborar este artigo, conversei com algumas pessoas da área, entre elas, Jason Heikenfeld, que é professor da Universidade de Cincinnati e inventor. Seu mais recente paper tornou-se uma das principais referências nesta interface entre nanotecnologia e medicina. Jason me disse que "o monitoramento remoto é a chave para tornar os diagnósticos mais acessíveis" e que "em múltiplos aspectos, não há dúvidas de que isso será fundamental para transpor o gap de infraestrutura e custo que afeta a logística dos diagnósticos tradicionais".

Ou seja, o cientista americano não apenas avalia que a inovação irá chegar aos nossos 16% para os quais a prevenção é assunto pertinente, como também que deve mudar a vida de quem vive alijado dos circuitos da prevenção. Faz sentido, já que o adesivo dispensa consultas e visitas ao laboratório. De quebra, há um ganho em precisão, já que isso é feito de maneira contínua, ao contrário do que ocorre no modelo tradicional.

Jason também avalia que o caminho natural é a combinação de diagnóstico e dosagem farmacológica em um mesmo dispositivo. "Primeiramente, veremos sistemas de monitoramento sendo usados separadamente dos sistemas de dosagem, mas é uma questão de tempo para que sejam combinados." Isto deve representar mais um passo importante na prevenção e na tendência mais ampla que vai se desenhando no âmbito das relações médico-paciente.

No entanto, ele não acha que será possível monitorar o surgimento de cânceres desta maneira: "A pele tem seu próprio sistema imunológico, o que dificulta isso; para alguns biomarcadores tende a funcionar, para outros, não". Como sempre, não espere uma panaceia; elas nunca vêm.

INOVAÇÕES COMO ESTA SUGEREM CAMINHOS DE MÉDIO E LONGO PRAZO PARA A MEDICINA

Em 2011, Eric Topol publicou um livro em que argumentou que as tecnologias digitais e outras iriam fazer as trombetas schumpeterianas soar no campo da medicina. Uma das conclusões mais fortes do autor é que isto resultaria no empoderamento do "cliente da saúde". Pouco mais de uma década depois, o que se observa é que ele estava certo. Cada app ou sensor desses eleva um pouquinho o protagonismo individual no manejo de aspectos críticos da vida, gerando efeitos acumulativos na relação médico-paciente.

É interessante notar que o debate da inovação nesta área está totalmente orientado aos impactos da inteligência artificial. O que se discute diariamente é se (e quando) os algoritmos generativos irão eliminar os empregos na medicina, assim como ameaçam fazer no direito.

Na minha visão, em nenhum dos dois casos isso deve acontecer, pela simples razão de que os conselhos federais não irão permitir. Haverá, sem dúvida, redução no "headcount", mas o ponto de contato com o paciente/cliente permanecerá humano, dada a força das entidades de classe.

Por outro lado, note o efeito de drogas como Ozempic e Monjaro: no médio prazo, elas reduzem o número de cirurgias bariátricas e ortopédicas, bem como as visitas ao cardiologista, endocrinologista, clínico geral e assim por diante.

Biossensores como estes adesivos e outros tendem a produzir o mesmo efeito, só que de maneira turbinada, razão pela qual deverão pautar discussões importantes sobre o futuro da medicina, quando a poeira da IA generativa baixar um pouquinho.

João Pereira Coutinho - Quem deseja viver 120 anos pelas razões erradas nem com 1.200 ficaria satisfeito, FSP

 

Viver até os 120, eis o sonho do pessoal. A revista The Economist dedica várias reportagens ao assunto e declara, de maneira ufanista, que a quimera está mais perto do que nunca. Cientistas e bilionários, em alegre concubinato, querem fazer dos 120 os novos 60. Como?

Não vou entrar em detalhes técnicos, até porque eles me escapam. Digamos apenas assim: restringindo de forma severa o número de calorias que ingerimos ou usando medicamentos que neutralizam as células "senescentes", há ratinhos de laboratório que têm vivido mais do que a conta normal. Seremos nós os próximos?

Releitura da pintura "Saturno devorando a un hijo", do pintor espanhol Francisco de Goya, onde um gigante de olhos arregalados representando o tempo, ou o Deus Cronos (Saturno), devorando um corpo humano que tem em suas mãos
Ilustração de Angelo Abu para coluna de João Pereira Coutinho de 3 de outubro de 2023 - Angelo Abu

Não tenho opinião fechada sobre este assunto em particular. Com saúde, boas companhias e dinheiro para o uísque das crianças, aceito os 120 com um sorriso adolescente, até porque sinto, do alto de meus 47 anos, que só agora estou no fim da adolescência.

Mas também pergunto, como um Velho do Restelo fulminando o progresso e a esperança, se queremos esses 120 pelas razões erradas, ou seja, porque pensamos que a vida é demasiada breve e que a velhice, como dizia o general De Gaulle, é simplesmente um naufrágio.

As duas ideias são comuns no linguajar alucinado dos contemporâneos, razão pela qual é importante revisitar os antigos, que têm mais a ensinar do que a histeria hipocondríaca dos bilionários.

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Para começar, a vida é breve?

Não é, explicava Sêneca, em ensaio luminoso sobre o tema, batizado de "Sobre a Brevidade da Vida". Somos nós que a tornamos breve ao esbanjar todo o tempo que temos.

Eis o grande paradoxo: qualquer um é zeloso com o seu patrimônio, vigiando os intrusos que se podem apropriar dele.

Mas o tempo, o maior tesouro que temos, é dissipado com companhias que não o merecem, em ambições que apenas embrutecem e em ocupações que não nos enobrecem de qualquer forma. E para quê?

Para descobrirmos, antes de um belíssimo epitáfio, que o tempo que realmente vivemos foi só uma pequena parte do tempo que se passou?

É por isso, acrescenta Sêneca, que não há nada mais penoso do que ver alguém, que dilapidou todo esse patrimônio, implorando ao médico que lhe conceda mais tempo para que possa "viver", finalmente!

Eis o segundo paradoxo: é possível ser velho e não ter vivido, e é possível ser jovem e ter vivido mais que um velho.

O conselho de Sêneca, que me persegue desde os verdes anos, é fulminante: se soubéssemos o tempo que nos resta, da mesma forma que sabemos o tempo que já tivemos, seríamos mais criteriosos com a forma com a qual o gastamos.

E quem sabe talvez descobríssemos, para nossa imensa surpresa, que o tempo que temos não é longo nem breve. É apropriado para uma vida humana apropriada.

E a velhice? Que naufrágio é esse que tanto aterroriza as almas carentes de eternidade?

Catão, o Velho, pela pena de Cícero, tem um diálogo sobre a velhice, agora editado em português pela Edições 70 e com tradução —antiga, vale acrescentar— de D. Francisco Alexandre Lobo, que revela o quão ridículos são todos esses terrores que passamos.

Quatro terrores, para sermos mais precisos: a velhice significa o fim da vida ativa, a fraqueza do corpo, a despedida dos prazeres e, claro, a proximidade com a morte.

A título benevolente, Catão esclarece tudo: "O homem moderado, o de fácil contentar, o de macia índole, passa toleravelmente a velhice. Ao descontentadiço, ao insípido, todas as idades são molestas".

Que beleza esse português! "Todas as idades são molestas!" Um velho que não sabe viver a velhice provavelmente foi um adulto que não soube viver a vida adulta —e um adolescente que teve na adolescência todo o seu calvário.

Os terrores da velhice, todos eles, procedem daqui. E é por aqui que eles devem ser anulados: há várias formas de vida ativa que não se esgotam durante as canseiras da profissão. A força que temos na velhice é suficiente para o que a velhice pede de nós. Há vários tipos de prazeres à disposição de uma mente mais curiosa.

E, sobre a morte, são os jovens que devem temê-la. Os velhos, ao contrário dos jovens, têm a suprema consolação de saber que chegaram a velhos.

"Por que ler os clássicos?", já perguntava Italo Calvino. A resposta é conhecida: porque eles são nossos contemporâneos, embora sem os defeitos dos verdadeiros contemporâneos. A passagem do tempo serviu de teste e peneira para que eles surjam inteiramente novos e originais.

Viver até os 120? Tudo bem. Mas para quem deseja esses 120 pelas razões erradas, nem 1.200 anos seriam suficientes.


Ruy Castro - Yakissoba onde havia jazz, FSP

 É como se ver na porta de um cemitério e saber que lá repousam entes queridos. No caso, o fato de não serem pessoas físicas não alivia a perda. Foi o que senti há dias, ao passar diante da extinta Modern Sound, em Copacabana —a melhor loja de discos do mundo em seu tamanho, nem micro nem mega, até para os estrangeiros. Frequentei-a desde que abriu, em 1967, até o fim, em 2010. Somando os LPs, fitas cassete, VHSs, laser discs, CDs e DVDs que comprei lá, devo ter deixado o equivalente a um apartamento, e nunca me arrependi.

Visão parcial do salão principal da loja de discos Modern Sound, no Rio, da década de 2000 - Divulgação

Vários motivos levaram à morte da Modern Sound, e não apenas o streaming, que fechou também as Towers e Virgins de Nova York, Londres e Paris. O fato é que morreu e foi substituída, primeiro, por uma loja de departamentos. Hoje ali é um supermercado. Em homenagem a Sacher-Masoch, resolvi entrar.

O antigo saguão, onde clientes e artistas se cruzavam e se abraçavam, é agora a seção de biritas e hortifrútis. As gôndolas laterais, onde ficavam o jazz e a música internacional de todas as épocas, acolhem alho frito, salsa desidratada, macarrões vários, ketchups e yakissobas. As gôndolas centrais, que ofereciam todo tipo de música brasileira, abrigam linguiças, nhoques, miniquibes e goelas de pato. Nas paredes do fundo, reduto da nobre seção de clássicos, está o açougue, com suas ofertas de frangos congelados, maminhas, buchos e mocotós.

No antigo piso rebaixado, à direita, onde ficava o Allegro Bistrô —palco de muitas das maiores noites de samba-jazz e sambalanço ao vivo da história do Rio—, as mesas deram lugar a prateleiras de produtos fascinantes como sapólios, desinfetantes e bactericidas. No lugar do bar, a seção de baldes e vassouras.

É sempre assim. Onde havia um cinema, não surge outro cinema, mas uma igreja. Onde havia um teatro, um banco. Uma livraria, uma farmácia. Uma loja de discos, um secos-e-molhados.