quinta-feira, 10 de agosto de 2023

FREI BETTO Narrativas hipócritas, FSP (definitiva)

 Frei Betto

Assessor de movimentos populares e escritor, é autor de “Hotel Brasil”, “Por uma Educação Crítica e Participativa” e “Tom Vermelho do Verde” (ed. Rocco)

Frente à chacina que a PM paulista provocou em Guarujá (oficialmente, 16 mortos), como vingança ao assassinato de um policial militar, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), tentou justificar ao alegar que muitas vítimas tinham antecedentes criminais. Se tinham, por que estavam soltas? E deveriam ter sido presas, não assassinadas.

Tal justificativa é uma declaração de incompetência de sua polícia, incapaz de levar à prisão criminosos, e de que adotou a lei de talião, como se crime se respondesse com crime e morte com mortes. E o pior: praticados pelas forças de segurança do Estado, mantidas por nossos impostos e que deviam dar o exemplo de eficiência, ética e respeito aos direitos humanos.

Tarcísio de Freitas e Guilherme Derrite durante entrevista à imprensa sobre a operação da PM em Guarujá
O governador paulista, Tarcísio de Freitas, e seu secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite, durante entrevista à imprensa sobre a operação da PM em Guarujá - Josué Emidio - 31.ju.23/Divulgação Governo do Estado de SP

As práticas das milícias e do narcotráfico não podem servir de exemplos a corporações que têm, por princípio, a obrigação de assegurar o cumprimento das leis.

Pensa o governador que a reação homicida de policiais trará a sonhada paz pública? Pelo contrário, só acelera ainda mais a espiral da violência.

Sim, o Brasil está infestado de criminosos, meliantes, assassinos; e o que fazem é hediondo. Mas por que não se perguntam pelas causas? O que faz uma pessoa abraçar a trilha do crime? Apenas a vontade de delinquir? E por que nossas penitenciárias não reeducam detentos?

Vivi dois anos na condição de preso comum sob a ditadura militar. Estive na Penitenciária do Estado de São Paulo, no Carandiru e na Penitenciária Regional de Presidente Venceslau (SP), presídio de segurança máxima, onde hoje se encontra o comando do PCC.

Aprendi na convivência a etiologia da criminalidade. O que esperar de uma criança cuja mãe, após um dia de faxinas em casas de classe média, apanha do marido bêbado, desempregado, diante do filho? O que esperar de uma criança que se evade da escola por vergonha de não ter sapatos minimamente decentes e, crescida, alia-se ao narcotráfico para exibir nos pés um tênis de marca? O que esperar de uma criança cujo pai, ignorante, surra-a com cinto ou cabo de vassoura porque ela, descuidada, deixou quebrar uma garrafa de cerveja?

A miséria, governador. A miséria, como ensinam Fanon Foucault, produz não apenas carência e vergonha, mas também revolta, ressentimento, desespero. Daí a importância de políticas sociais favoráveis aos excluídos, como fazem os governos do PT. Isso não significa que o PT seja sempre exemplar. Ao menos no quesito segurança pública, pois o atual governo da Bahia (31 mortos pela PM entre 28 de julho e 4 de agosto) parece seguir a mesma cartilha dos governadores Tarcísio de Freitas e Cláudio Castro (PL-RJ): vista grossa à ação criminosa de policiais e narrativas tão hipócritas que soam ridículas, como de chacinas por "enfrentamentos" e "balas perdidas", cujos responsáveis pelos disparos jamais são achados.

O belicismo bolsonarista fez escola e, agora, faz escala. Felizmente encontrou pela frente a ação determinada de um juiz, Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, e dos ministros Flávio Dino (Justiça), Silvio Almeida (Direitos Humanos) e Anielle Franco (Igualdade Racial). Os assassinos de Marielle Franco e Anderson Gomes que o digam, após anos de encobrimento do crime por policiais civis do Rio de Janeiro com o apoio de figuras do Judiciário. Agora, o fio da meada começa a ser desenrolado. Quantos ainda precisarão ser mortos em Guarujá para saciar a sede de vingança daqueles que deveriam zelar pela vida dos cidadãos e a ordem pública?

Como bem observou Freud, "o Estado proíbe ao indivíduo a prática de atos infratores, não porque deseja aboli-los, mas sim porque quer monopolizá-los".

Estamos condenados à barbárie?, Maria Hermínia Tavares, FSP

 Entre o final de julho e o começo de agosto, somaram 45 os mortos em operações policiais contra o tráfico de drogas na Bahia, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Do total, uma vítima era agente da lei. A tragédia escancara a brutalidade em que estamos imersos.


Em 2019, segundo o Observatório Global da Organização Mundial da Saúde, só dez países tinham taxas de homicídio maiores do que o Brasil. Formávamos um time da pesada com países a que não costumamos nos comparar: África do Sul, Lesoto e oito vizinhos latino-americanos ­—El Salvador, Honduras, Colômbia e Venezuela, além de quatro nações caribenhas.

No ano passado, a violência tirou a vida de cerca de 48 mil brasileiros. Em média, polícias foram responsáveis por 17 mortos a cada dia, informa o Anuário do Fórum Nacional de Segurança Pública. Como seria de prever, a barbárie não se distribui igualmente pela federação. Amapá, Bahia, Sergipe, Pará e Goiás lideram o rol de homicídios; somados ao Rio de Janeiro, também o do uso abusivo da força policial. Tampouco a matança atinge todos na mesma proporção: de ambos os lados do tiroteio, homens negros, jovens e pobres correm risco sempre maior.

Protesto em frente à Secretaria de Segurança Pública de São Paulo contra a morte de 16 pessoas pela polícia em Guarujá - Nelson Almeida - 3.ago.23/AFP

As estatísticas ajudam a perceber o tamanho da catástrofe, mas não dão a medida do sofrimento das famílias atingidas, nem do medo dos ameaçados mais de perto, nem do sentimento difuso de insegurança dos que temem a violência letal, ainda quando é menor o risco de vir a sofrê-la. Também não medem o impacto da violência sobre a vida política democrática.

A direita há muito descobriu que a exploração do medo —diariamente cevado pela mídia sensacionalista— e a defesa da força bruta contra suspeitos rendem votos. A cada eleição cresce a "bancada da bala" na Câmara dos Deputados, assim como o número de eleitos saídos dos aparatos policiais nos estados. Para os paulistas, a defesa brandida pelo governador Tarcísio de Freitas dos desmandos cometidos pela Operação Escudo, em Guarujá, exuma os tempos de Paulo "bandido bom é bandido morto" Maluf.

Bolsonaro e seus seguidores não fizeram mais que entoar aos berros refrão bem conhecido.

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Os democratas comprometidos com o social têm o desafio —e o dever moral— de recorrer às experiências bem-sucedidas de governos subnacionais e de organizações da sociedade, além dos confiáveis dados disponíveis, para implantar formas civilizadas de garantir a segurança pública.

Nos 14 anos em que governou o país, a centro-esquerda não se destacou por inovar nessa matéria. Tem agora nova oportunidade de mostrar que não estamos condenados à barbárie.