sexta-feira, 3 de março de 2023

Circus maximus, Hélio Schwartsman, FSP

 

Vejo com bons olhos o hábito do presidente Lula de deixar que ministros e assessores de diferentes alas troquem argumentos e até farpas em torno de posições antes de tomar sua decisão. Soluções debatidas, isto é, submetidas a um processo de crítica, tendem a ser melhores que as produzidas com base apenas em intuições. A dúvida é se essas disputas devem ser travadas em privado ou aos olhos de todos.

De um modo geral, a transparência é bem-vinda. Eu diria até que é uma necessidade quando falamos de governos. Uma receita infalível para produzir arbítrio e corrupção é permitir que autoridades tomem decisões sem que precisem prestar contas delas. Não é uma coincidência que os serviços estatais mais temíveis sejam aqueles autorizados a operar sob o manto do sigilo, como a CIA ou o Mossad.

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O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) entre o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e a presidente do PT, Gleisi Hoffmann - Pedro Ladeira - 9.dez.22/Folhapress

Já comentei aqui um trabalho do jurista americano Cass Sunstein, em que ele distingue a transparência de entrada ("input") da de saída ("output"). A primeira diz respeito ao processo pelo qual agentes governamentais tomam uma decisão; a segunda é a própria decisão. E, se não há muita dúvida de que a transparência de saída deve ser a regra (as exceções se contam nos dedos), tudo fica mais complicado com a transparência de entrada.

Nem sempre faz sentido expor ao público o processo de deliberação interna pelo qual autoridades tomam decisões. Se tudo for sempre para os registros, será menor o nível de abertura e honestidade com o qual servidores debatem questões importantes, com prejuízo para a qualidade das escolhas.

Penso que Lula deve ouvir todas as facções de seu governo em questões como a reoneração dos combustíveis. Mas daí não se segue que deva transformar o processo num espetáculo público. Isso é especialmente verdade quando se vive uma situação em que tudo o que pareça um bombardeio às posições do ministro Fernando Haddad acaba contribuindo para prolongar a alta dos juros.

Os arapongas do general Tomás Paiva, Alvaro Costa e SIlva FSP

 Quer dizer que gravaram um general do Exército, em reunião com subordinados do Comando Militar do Sudeste, de forma escondida? E depois o áudio foi vazado com a intenção de alimentar a insatisfação na caserna? O fato, além de evidente quebra de hierarquia, mostra que dentro das Forças Armadas há muito mais que um ambiente contaminado pela política; há politicagem.

A conversa se desenrolou quase que inteiramente sobre temas políticos. Em determinado momento da gravação feita em 18 de janeiro, o atual comandante do Exército, Tomás Paiva –que ainda não havia assumido o cargo em substituição ao general Júlio César de Arruda, demitido pelo presidente Lula– comenta a eleição que deu a vitória ao petista: "Infelizmente foi o resultado que, para a maioria de nós, foi indesejado. Mas aconteceu".

Tentando juntar os cacos da derrota, Tomás afirma que o governo Bolsonaro interferiu diversas vezes na Força, criando "desgastes" para os militares. Falou a verdade, mas todos ali estavam cansados de saber disso. Muitos concordaram com a situação e se aproveitaram dela financeiramente.

A aproximação com o bolsonarismo, assim como o desacordo com o controle civil sobre as Forças Armadas, havia sido escancarado em 2018, com o tuíte-ameaça do então comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, na véspera do julgamento do habeas corpus de Lula pelo STF.

A cooperação atingiu o auge numa motociata de 2021, realizada no Rio. Se comparada à arapongagem contra Tomás Paiva, o espanto é ainda maior. Segundo consta do processo disciplinar que era mantido em sigilo, um general da ativa avisou ao comandante do Exército, Paulo Sergio Nogueira, que iria descumprir a regra militar e participar de um ato de campanha presidencial. Nogueira só faltou dizer: "Não esquece de subir no palanque". Na época Pazuello já era candidato, tanto quanto Bolsonaro. Foi eleito deputado federal.

quinta-feira, 2 de março de 2023

Fazenda que fornece cana para açúcar Caravelas é flagrada com mão de obra escrava em SP, Brasil de Fato

 

Açúcar refinado Caravelas está entre os mais vendidos no Brasil - Divulgação

Os 32 trabalhadores resgatados em condições análogas à escravidão em um canavial da zona rural de Pirangi (SP), no fim de janeiro, prestavam serviço para a Colombo Agroindústria S/A, que produz o açúcar refinado Caravelas.

Segundo as inspeções realizadas pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel, da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), os trabalhadores foram aliciados no estado de Minas Gerais, na região do triângulo mineiro, por representantes de uma empresa que presta serviço de capina e replante de mudas para uma fazenda que é fornecedora da gigante do ramo açucareiro. Em 2022, a Colombo Agroindústria anunciou um lucro líquido de R$ 251,59 milhões.

A produtora do Caravelas, contratante da empresa terceirizada, está em negociação para assinar um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) com o Ministério Público do Trabalho e a Defensoria Pública da União. A terceirizada, por sua vez, já assinou o TAC, comprometendo-se a sanar as irregularidades trabalhistas encontradas nos locais fiscalizados e garantir o retorno dos trabalhadores aos seus locais de origem.

Os trabalhadores foram encontrados em situação de servidão por dívida e em condições degradantes de trabalho e de moradia, dois dos elementos que tipificam a escravidão contemporânea, com base no artigo 149 do Código Penal.

Alojamentos precários

No resgate, iniciado em 26 de janeiro, os auditores fiscais do trabalho encontraram violações em 2 dos 5 alojamentos em que os trabalhadores estavam hospedados na cidade de Palmares Paulista (SP), a cerca de 18 km do canavial.

Os trabalhadores dormiam em colchões estendidos no chão. Não havia camas, banheiros funcionando e nem ventilação nos cômodos. Além disso, toda a fiação estava exposta, com risco de choque elétrico e incêndio.

Um dos trabalhadores chegou a ser alojado em um cômodo onde funcionava um açougue, cujo piso tinha um bueiro de esgoto aberto.

"Quando eles chegaram na cidade, eles verificaram que a situação não era bem aquilo que tinha sido prometido. Muitas casas não tinham sequer um colchão, nem fogão, nem geladeira. E além disso, havia a promessa do pagamento por produção, que não foi cumprida", explica o auditor fiscal do trabalho André Wagner Dourado, que coordenou a operação.


Trabalhadores dormiam em alojamentos precários no município de Palmares Paulista (SP) / Divulgação/MPT

Escravidão por dívida

Segundo os auditores fiscais, as vítimas arcaram com as passagens e todos os custos da viagem de Minas Gerais ao interior paulista, que foi feita em duas vans superlotadas. Os trabalhadores também pagaram adiantado o aluguel das casas precárias onde ficaram alojados.

Somente ao chegar no município paulista, os trabalhadores foram informados que iriam receber por diárias, e não por produção no canavial. Em virtude das chuvas na região, eles ainda permaneceram dez dias sem receber e realizar qualquer atividade, contraindo dívidas em um mercado na cidade.

"Eles tiveram esses dez dias na cidade gastando, tendo que gastar para comer, pagando o aluguel adiantado porque isso foi exigido deles. A empresa não pagou esses dez dias. Quando eles começaram a trabalhar, ainda tinham a expectativa de receber por produção e tentar cobrir aquele passivo. Só que aí eles perceberam que não daria. Porque eles passaram a receber uma diária muito pequena", explica Dourado.

"Nós fizemos um cálculo muito rápido e percebemos que, da forma como eles estavam endividados, muito provavelmente não conseguiriam pagar as dívidas ainda que ao final do período do contrato", completa.

De acordo com os auditores fiscais, após a operação, as verbas rescisórias foram pagas aos trabalhadores resgatados, que também receberão três parcelas de um salário mínimo cada. Todos os gastos que as vítimas tiveram também serão bancados pela terceirizada contratada pela Colombo Agroindústria.

Danos morais coletivos e individuais

Segundo o coordenador regional da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conaete), Marcus Vinícius Gonçalves, a Colombo Agroindústria violou o artigo 5º  da Lei nº 6019, que foi incluído a partir da Lei da Terceirização, redigida em 2017.

"Quando a Usina Colombo optou por terceirizar o corte e o plantio de cana-de-açúcar, ela, por disposição legal, responde de forma primária pelo cumprimento das normas de saúde e segurança do trabalho. Se esses trabalhadores estão em alojamento inadequado, a responsabilidade não é só da prestadora de serviço, mas da Colombo também", afirma Gonçalves.

"Haviam falhas na regulamentação dos trabalhadores, não havia instalações sanitárias, não havia camas, locais para refeições, uma série de irregularidades", completa.

No TAC enviado à Colombo Agroindústria S/A, que o Brasil de Fato teve acesso, o MPT pede, entre outros termos, a capacitação das empresas prestadoras de serviço contratadas pela empresa; que a Colombo se comprometa com medidas de fiscalização a suas prestadoras de serviço, seja em relação ao alojamento, aos veículos de transporte e à oferta de água potável; e que, sendo identificada qualquer irregularidade na relação trabalhista, a Colombo deve notificar a empresa terceirizada em um prazo de até 5 dias.

O MPT pede também uma quantia referente a danos morais individuais e coletivos. Para cada trabalhador, o MPT determina uma quantia de R$ 40 mil por danos morais individuais. Em relação ao dano moral coletivo, o pedido do MPT é de R$ 4 milhões.

A próxima audiência com o MPT está prevista para acontecer em março. Caso a Colombo Agroindústria S/A não aceite assinar os termos expostos no TAC, o MPT deve ajuizar uma ação civil pública contra a empresa, buscando a responsabilização pelas violações trabalhistas.

"Existe mais espaço para negociação nos valores dos danos coletivos e individuais, mas o cumprimento da legislação isso não tem negociação", pontua o coordenador regional da Conaete.


Trabalhadores de empresa terceirizada contratada pela Colombo Agroindústria S/A foram encontrados em situação de servidão por dívida, elemento que tipifica a escravidão contemporânea / Divulgação/Detrae

Caravelas no Top 3 dos paulistas

Em seu Código de Conduta e Ética, o Grupo Colombo afirma que na relação com parceiros de negócios e terceiros é exigida a comprovação por parte do fornecedores da não "exploração do trabalho adulto ou infantil, trabalho forçado ou análogo" e que seja respeitada "a legislação ambiental, fiscal, trabalhista e previdenciária".

Maurício Krepsky Fagundes, auditor fiscal e chefe da Divisão de Fiscalização para a Erradicação do Trabalho Escravo, afirma que casos de condições degradantes de trabalho e de alojamentos precários poderiam facilmente ser organizadas dentro da NR 31, evitando a "total informalidade" na relação trabalhista.

"Algumas fazendas, algumas usinas, acabam terceirizando esse trabalho, seja no plantio, seja na colheita, para empresas que não têm a menor idoneidade econômica. Somente terceirizar o serviço de safra para alguém que não tem esse conhecimento [das normas trabalhistas] não vai afastar a responsabilidade do produtor. Na verdade, ele vai estar sendo cúmplice dessa situação e poderá ser responsabilizado por esses trabalhadores caso eles estejam em condições análogas à escravidão", aponta Krepsky.

O coordenador regional da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conaete), Marcus Vinícius Gonçalves, afirma que tem sido recorrente na região de Ribeirão Preto (SP) que grandes usinas açucareiras coloquem a responsabilidade por eventuais violações trabalhistas nas empresas prestadoras de serviço.

"Elas (as usinas) sabem que precisam de mão de obra, e que na região não tem essa mão de obra. Então elas fingem que não sabem que esses trabalhadores vão ser buscados fora, a gente chama de 'cegueira deliberada'", explica.

"Os trabalhadores precisam ser registrados lá na origem, viajar em ônibus compatíveis e regularizados. Não se pode fazer promessas que não vão ser cumpridas", completa.

Colombo Agroindústria S/A

A família Colombo está no ramo açucareiro há mais de 70 anos. Atualmente, é uma das maiores produtoras de açúcar e etanol do Brasil, empregando mais de 5100 empregos diretos.

O açúcar refinado Caravelas surge em 1994, um ano após o início da produção de açúcar cristal pela Colombo Agroindústria S/A.

No site da Amazon, o Caravelas está entre as 3 marcas mais vendidas no setor açúcar, ficando atrás apenas do Native e União. O produto também é vendido em grandes redes de supermercado, como Pão de Açúcar, Carrefour, e Extra.

Na última edição do ranking Top of Mind, feito pelo Datafolha, o Caravelas aparece em terceiro lugar entre as marcas de açúcar mais bem avaliadas entre os paulistas.

Em 2022, a atividade com maior número de trabalhadores resgatados da escravidão contemporânea foi justamente no cultivo da cana-de-açúcar, com 362 vítimas. O maior resgate em um mesmo local foi de 273 trabalhadores, em fazendas arrendadas pela WD Agroindustrial em Varjão de Minas (MG).

Outro lado

A reportagem do Brasil de Fato entrou em contato com a Colombo, por telefone e e-mail, mas não recebeu um retorno até o fechamento desta matéria. Caso a empresa envie um posicionamento, essa matéria será atualizada.