Moíses Naím*, O Estado de S.Paulo
07 de março de 2022 | 05h00
Durante meses, Vladimir Putin disse que não tinha nenhuma intenção de invadir a Ucrânia, mas em 24 de fevereiro fez exatamente isso. Desde então, surpresas tornaram-se a norma. O próprio Putin foi surpreendido, já que é óbvio que as coisas não saíram conforme ele antecipava. O ditador superestimou a eficácia de suas Forças Armadas e subestimou as da Ucrânia, que ofereceram uma inesperada resistência. Um devastador ataque cibernético, por exemplo, ainda não se produziu, e a Marinha de Putin dá inesperados sinais de desordem e improvisação.
Também surpreendeu Volodmir Zelenski, o presidente que se converteu em exemplo de valentia e liderança. Por sua vez, o povo ucraniano demonstrou com ações o que significa defender a pátria das investidas de um ditador sanguinário.
Lamentavelmente, tudo o que já ocorreu não permite supor que os ucranianos repelirão o ataque russo. A desproporção entre as forças militares da Rússia e da Ucrânia é enorme. Cabe esperar, entretanto, uma prolongada insurreição da pátria ucraniana contra seus invasores, a qual contará com simpatia do mundo e apoio militar de EUA, Europa e outras potências.
Putin não apenas se equivocou em relação aos ucranianos, mas também subestimou as democracias do mundo. Esta foi a maior surpresa que este conflito nos trouxe até agora. A União Europeia respondeu de maneira unida e coordenada, com seus políticos e burocratas reagindo rapidamente e tomando decisões até pouco tempo atrás inimagináveis.
Os EUA aliaram-se com a Europa e outros países para impor custos proibitivos sobre as agressões de Putin. As democracias do mundo reagiram com velocidade incomum e, em alguns casos, desfizeram pilares fundamentais do que havia sido sua política externa. A Alemanha, por exemplo, decidiu aumentar seu gasto militar e enviar material bélico para as Forças Armadas ucranianas. A Suíça abandonou o que já foi um fator definidor de sua política externa e até de sua identidade nacional: neutralidade frente a conflitos internacionais. As severas sanções adotadas pela aliança internacional desconectaram a Rússia da economia mundial. Assim, Putin condenou sua população à pobreza e ao isolamento. Tristemente, também veremos mais terror e repressão dirigidos aos russos que se atreverem a exigir um futuro melhor. À medida que a situação piorar, o Kremlin se sentirá mais ameaçado pelos russos que protestam nas ruas e praças do que por democratas de outros países.
UNIÃO. Ao mesmo tempo que se aprofunda o isolamento da Rússia, as democracias têm mostrado uma inédita capacidade de se unir e agir conjuntamente em defesa dos valores que compartilham. Projetar e impor as sanções mais severas jamais vistas e coordenar sua adoção entre muitos e muito diferentes países foi muito difícil, mas se conseguiu. Este é um dos mais bem-vindos efeitos colaterais da invasão de Putin: descobrir que as democracias trabalhando juntas são capazes de enfrentar grandes problemas com êxito. Esta experiência pode servir de guia para enfrentar outras perigosas ameaças globais.
Por coincidência, quatro dias depois da invasão à Ucrânia, um painel composto por proeminentes cientistas publicou um relatório que alerta para inéditos danos humanos e materiais que as mudanças climáticas estão causando e para a alarmante velocidade desses danos. O relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC) tem como base pesquisas de milhares de cientistas de todo o mundo.
A principal conclusão é que as catástrofes produzidas pelas mudanças climáticas estão batendo recordes em frequência e custos humanos e materiais. Segundo o relatório, corremos risco de que vastas áreas do planeta tornem-se inabitáveis, incluindo algumas das zonas urbanas mais povoadas.
A crise climática de que o planeta padece é tão ou mais ameaçadora que Vladimir Putin. A invasão é um crime inaceitável, que não pode ser ignorado, e é preciso apoiar aqueles que enfrentam o tirano russo. Mas o mundo deve desenvolver capacidade para responder a mais de uma crise por vez. A Ucrânia não deve ser abandonada, mas a luta contra o aquecimento global também não. Esta última é muito difícil, mas agora sabemos que, agindo em conjunto, o mundo pode alcançar coisas difíceis.
Os líderes das democracias do mundo mostraram que, frente a uma ameaça existencial, as políticas as podem mudar decisiva e rapidamente. É hora de usarem com valentia o superpoder que a crise na Ucrânia lhes ajudou a descobrir para atacar a outra grande crise que a humanidade enfrenta.
*É ESCRITOR VENEZUELANO E MEMBRO DO CARNEGIE ENDOWMEN