segunda-feira, 7 de março de 2022

União em torno da guerra na Ucrânia deve servir de exemplo contra a mudança climática, OESP

 Moíses Naím*, O Estado de S.Paulo

07 de março de 2022 | 05h00

Durante meses, Vladimir Putin disse que não tinha nenhuma intenção de invadir a Ucrânia, mas em 24 de fevereiro fez exatamente isso. Desde então, surpresas tornaram-se a norma. O próprio Putin foi surpreendido, já que é óbvio que as coisas não saíram conforme ele antecipava. O ditador superestimou a eficácia de suas Forças Armadas e subestimou as da Ucrânia, que ofereceram uma inesperada resistência. Um devastador ataque cibernético, por exemplo, ainda não se produziu, e a Marinha de Putin dá inesperados sinais de desordem e improvisação. 

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"A crise climática de que o planeta padece é tão ou mais ameaçadora que Vladimir Putin". Foto: NICOLAS TUCAT/AFP - 17/08/21

Também surpreendeu Volodmir Zelenski, o presidente que se converteu em exemplo de valentia e liderança. Por sua vez, o povo ucraniano demonstrou com ações o que significa defender a pátria das investidas de um ditador sanguinário. 

Lamentavelmente, tudo o que já ocorreu não permite supor que os ucranianos repelirão o ataque russo. A desproporção entre as forças militares da Rússia e da Ucrânia é enorme. Cabe esperar, entretanto, uma prolongada insurreição da pátria ucraniana contra seus invasores, a qual contará com simpatia do mundo e apoio militar de EUA, Europa e outras potências.

Putin não apenas se equivocou em relação aos ucranianos, mas também subestimou as democracias do mundo. Esta foi a maior surpresa que este conflito nos trouxe até agora. A União Europeia respondeu de maneira unida e coordenada, com seus políticos e burocratas reagindo rapidamente e tomando decisões até pouco tempo atrás inimagináveis.

Os EUA aliaram-se com a Europa e outros países para impor custos proibitivos sobre as agressões de Putin. As democracias do mundo reagiram com velocidade incomum e, em alguns casos, desfizeram pilares fundamentais do que havia sido sua política externa. A Alemanha, por exemplo, decidiu aumentar seu gasto militar e enviar material bélico para as Forças Armadas ucranianas. A Suíça abandonou o que já foi um fator definidor de sua política externa e até de sua identidade nacional: neutralidade frente a conflitos internacionais. As severas sanções adotadas pela aliança internacional desconectaram a Rússia da economia mundial. Assim, Putin condenou sua população à pobreza e ao isolamento. Tristemente, também veremos mais terror e repressão dirigidos aos russos que se atreverem a exigir um futuro melhor. À medida que a situação piorar, o Kremlin se sentirá mais ameaçado pelos russos que protestam nas ruas e praças do que por democratas de outros países.

UNIÃO. Ao mesmo tempo que se aprofunda o isolamento da Rússia, as democracias têm mostrado uma inédita capacidade de se unir e agir conjuntamente em defesa dos valores que compartilham. Projetar e impor as sanções mais severas jamais vistas e coordenar sua adoção entre muitos e muito diferentes países foi muito difícil, mas se conseguiu. Este é um dos mais bem-vindos efeitos colaterais da invasão de Putin: descobrir que as democracias trabalhando juntas são capazes de enfrentar grandes problemas com êxito. Esta experiência pode servir de guia para enfrentar outras perigosas ameaças globais. 

Por coincidência, quatro dias depois da invasão à Ucrânia, um painel composto por proeminentes cientistas publicou um relatório que alerta para inéditos danos humanos e materiais que as mudanças climáticas estão causando e para a alarmante velocidade desses danos. O relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC) tem como base pesquisas de milhares de cientistas de todo o mundo. 

A principal conclusão é que as catástrofes produzidas pelas mudanças climáticas estão batendo recordes em frequência e custos humanos e materiais. Segundo o relatório, corremos risco de que vastas áreas do planeta tornem-se inabitáveis, incluindo algumas das zonas urbanas mais povoadas. 

A crise climática de que o planeta padece é tão ou mais ameaçadora que Vladimir Putin. A invasão é um crime inaceitável, que não pode ser ignorado, e é preciso apoiar aqueles que enfrentam o tirano russo. Mas o mundo deve desenvolver capacidade para responder a mais de uma crise por vez. A Ucrânia não deve ser abandonada, mas a luta contra o aquecimento global também não. Esta última é muito difícil, mas agora sabemos que, agindo em conjunto, o mundo pode alcançar coisas difíceis. 

Os líderes das democracias do mundo mostraram que, frente a uma ameaça existencial, as políticas as podem mudar decisiva e rapidamente. É hora de usarem com valentia o superpoder que a crise na Ucrânia lhes ajudou a descobrir para atacar a outra grande crise que a humanidade enfrenta.

*É ESCRITOR VENEZUELANO E MEMBRO DO CARNEGIE ENDOWMEN

Celso Rocha de Barros O MBL vai acabar?, FSP

 O Movimento Brasil Livre (MBL) passa por sua maior crise desde que se destacou na organização das passeatas pelo impeachment em 2015-2016, quando Eduardo Cunha descobriu que Arthur do Val, o Mamãe Falei, era fácil porque era burro.

As coisas já não iam bem para o MBL antes mesmo de o deputado estadual paulista declarar sua intenção de explorar sexualmente a pobreza das refugiadas de guerra ucranianas.

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Poucas semanas antes, a principal liderança emebelista, o deputado federal Kim Kataguiri, foi severamente criticado por questionar a criminalização do nazismo. A proposta era imbecil, mas, além disso, a intensidade da reação contra Kataguiri mostrou outra coisa: o clima ideológico do Brasil de 2022 não é mais aquele em que o MBL floresceu.

Grupo de cerca de 20 pessoas caminha em estrada vestindo roupas com as cores do Brasil e carregando bandeiras
Marcha do MBL pelo impeachment de Dilma Rousseff, em 2015, em trecho da BR-060 em Goiás - Pedro Ladeira - 23.mai.15/Folhapress

O MBL cresceu em um ambiente político altamente tolerante com a "zoeira" de direita, um tipo de irreverência "politicamente incorreta" e "contrarian" que, para muita gente, pareceu charmosa durante a crise dos governos petistas.

Isso perdeu muito da graça depois que um presidente "contrarian" e politicamente incorreto matou mais de cem mil brasileiros por não acreditar em vacinas.

Aqui as lideranças do MBL poderiam dizer: bom, mas Bolsonaro é ainda mais repulsivo do que Mamãe Falei; Bolsonaro defende o Ustra, que, se fosse russo em 2022, introduziria ratos nas vaginas das ucranianas que pegassem em armas contra a invasão. E Bolsonaro continua aí, com o apoio de entre um quarto e um terço dos eleitores.

É verdade, mas isso nos ensina uma importante lição: não é fácil ser politicamente incorreto sem o apoio dos poderes constituídos.

O MBL rompeu com Bolsonaro. A direita brasileira não rompeu. No final de 2021, o MBL, em atitude elogiável, ajudou a organizar atos pelo impeachment. O público de 2015 não foi.

No fundo, a direita brasileira rompeu com o MBL porque não acha que ainda precise de manifestações de rua depois de ter recuperado o controle da máquina de Estado, seu orçamento e suas armas. Militância nas redes sociais, afinal, é coisa que se compra na Rússia.

O MBL vem tentando dar a volta por cima com a candidatura presidencial de Sergio Moro. De fato, se Moro for eleito, terá sido porque tomou a base eleitoral de Bolsonaro. Como apoiadores de primeira hora do ex-juiz, o MBL estaria em uma posição privilegiada para reconquistar sua influência.

Mas a candidatura de Moro vai mal. Na revista piauí deste mês, uma matéria de Ana Clara Costa mostra que o ex-juiz tem encontrado dificuldades seríssimas para organizar sua campanha. Falta dinheiro, falta apoio político, e a disparada nas pesquisas não aconteceu. Além disso, Moro disse que se recusa a dividir palanque com Arthur do Val, e o MBL, ao que parece, não o expulsará.

A crise do MBL suscita dúvidas sobre a longevidade dos movimentos sociais organizados a partir das redes sociais. Em 2015, Kataguiri e companhia demonstraram que eles podem ser politicamente eficazes. Mas será que conseguem se consolidar como forças políticas? Ou a lógica das redes favoreceria a criação e o descarte contínuos de grupos, marcas, símbolos e lideranças?

O fato é que, enquanto a turma de 2015 se autoimola em público, a direita brasileira volta para casa, volta para seu centrão e seus milicos.

Joel Pinheiro da Fonseca- O MBL tem futuro?, FSP

 Ir do Brasil para a Ucrânia em pleno conflito armado para ajudar na resistência contra os invasores russos? Era obviamente um golpe de marketing, um exemplo extremo de vale-tudo para aparecer, mas era também o tipo de coisa para capturar a atenção dos eleitores.

Não se vence eleição com debate técnico; é preciso fazer barulho. Aprove-se ou não seus métodos, o MBL é craque na comunicação das redes sociais.

Não contavam, contudo, com o desastre dos áudios de Arthur do Val sobre as mulheres ucranianas. Mistura de machismo com o detalhe sórdido extra da exploração da pobreza pelo turismo sexual.

Comparar uma fila de refugiadas com uma fila de mulheres na balada não é o que se espera de um defensor da família. E isso veio poucas semanas depois do episódio em que Kim Kataguiri defendeu a liberdade à defesa do nazismo.

O MBL nasceu dos protestos de junho de 2013 que reconfiguraram a política brasileira. Tanto nas propostas quanto na comunicação eram a cara do sentimento antissistema que marcou aqueles dias. Seu mix de linguagem das redes (cortes de vídeos e memes), pose de outsider virtuoso, indignação moralista e liberalismo econômico radical funcionou muito bem nos protestos contra o governo Dilma e também nas eleições de 2018, em que optaram por ser linha auxiliar do bolsonarismo.

Congresso Nacional do MBL (Movimento Brasil Livre), em São Paulo - Vítor Liasch - 24.nov.18/Movimento Brasil Livre

Pessoas próximas ao MBL protagonizaram as primeiras milícias digitais, verdadeiros gabinetes do ódio e fábricas de fake news contra adversários e desafetos, como Marielle Franco.

E, no entanto, o governo Bolsonaro, que ajudaram a eleger, foi também uma janela para uma possível redenção. Ao se negarem a serem coadjuvantes do governo, foram cuspidos pelo bolsonarismo e perderam uma boa fatia de seu público.

Daí em diante o MBL se converteu em movimento de oposição democrática, estabelecendo pontes inclusive com políticos e pensadores de todo o espectro político, inclusive comigo.

A decisão de amadurecer, contudo, nunca teve a coragem de ir até o fim. Talvez porque perdessem justo aquilo que os destaca. É difícil combinar comunicação sensacionalista e que tende ao extremismo —sempre com ataques, rótulos e oportunismo de sobra— com postura responsável no exercício do poder. Apesar do discurso de renovação, voltaram várias vezes às velhas práticas, como quando moveram campanha contra o Padre Júlio Lancelotti.

O deputado Kim Kataguiri ilustra bem o dilema do grupo. É inegável que amadureceu muito depois de eleito (apesar dos deslizes de um ex-libertário), e hoje é um deputado produtivo, propositivo e, ademais, disposto a trabalhar junto de todos os seus colegas.

Posso lamentar muitas de suas pautas (como o desprezo pela questão ambiental) e mesmo assim reconhecer que, em sua conduta, é um deputado acima da média. Mas será que, para se reeleger, vai se erguer sobre seus méritos ou apostar no sensacionalismo agressivo que o elegeu em 18? Tem sentido, para um deputado sério, continuar no MBL?

Uma coisa é construir uma aparência; outra é manter a substância longe das câmeras. Arthur Do Val, em sua conduta predatória, não é diferente de tantos outros supostos "conservadores" que nos governam; apenas se deslumbrou mais e falou mais.

No vale-tudo para ficar por cima, divulgar áudios destruidores de alguém que se considerava seu amigo é só mais uma ferramenta. O MBL agora experimenta um pouco dos linchamentos virtuais que ele próprio ajuda a promover. Oportunismo, falta de escrúpulos, histrionismo tudo por fama, sexo e poder; será que suas virtudes na comunicação são separáveis de tudo isso?