Em abril de 2020, durante reunião de cúpula do governo federal, bradou-se a expressão "passar a boiada" como estratégia diversionista, visto que as atenções estavam na pandemia. Naquela ocasião, o termo foi utilizado para expressar a passagem furtiva de novas leis, com objetivo de viabilizar interesses privados em vez da preservação ambiental.
Tal lógica, porém, não está apenas no meio ambiente, expandiu-se à cultura, à educação, à ciência. Nos últimos meses, experimentamos crises severas em dois importantes órgãos do Ministério da Educação: o Inep e a Capes.
O Inep, fundado em 1937, tem a função de realizar pesquisas e avaliações dos sistemas de educação em todas as etapas de ensino. É responsável pelo Enem, principal mecanismo de ingresso nas instituições de ensino superior públicas e privadas e algumas universidades europeias. Atuando como órgão de Estado para subsidiar políticas educacionais, os últimos anos marcaram-no com tentativas lamentáveis de desmonte de sua estrutura. Foram diversas notícias de interferência político-ideológica e risco de quebra de sigilo na elaboração de exames, levando ao pedido de exoneração de mais de 30 técnicos às vésperas do Enem 2021 —edição já combalida, devido à pandemia e inação da pasta. Em um país complexo, de grande diversidade e muita desigualdade, a instabilidade do Inep e do Enem mostram uma situação de descrédito, de redução dos esforços para construir uma sociedade inclusiva, que valorize a educação.
A Capes, criada em 1951, atua para expandir e consolidar a pós-graduação em todos os estados da nação. É a única responsável pela avaliação desse complexo sistema para preservar a qualidade da produção científica, dos cursos existentes e de novos. Essa avaliação, que ocorre a cada quatro anos, é realizada há décadas e vem se desenvolvendo a partir do trabalho entre pares, organizados em comitês de áreas. No atual governo federal, o órgão sofreu instabilidades, que atingiram seu ápice com a nomeação da atual presidência e a formação de equipes inexperientes, vinculadas a programas de pouca qualidade.
Apesar disso, os comitês científicos continuaram seu trabalho de avaliação, mesmo sob orientação fragilizada, até que foram proibidos de prosseguir por uma decisão judicial, cuja defesa morosa não impediu que se propusesse a liberação de novos programas de pós-graduação a distância, a maioria privados.
O paradoxo instalado pela direção da Capes, que de um lado contribuiu para a letargia da avaliação e de outro para viabilizar a abertura de cursos novos de caráter mercantil, levou a pedidos de exoneração de pesquisadores dos comitês científicos, totalizando mais de 114 desligamentos, além da exoneração do diretor de Avaliação, Flavio Anastacio de Oliveira Camargo, ocorrida na terça-feira (14). Uma autorização judicial permitiu a continuidade da avaliação, porém sub judice, visto que as notas dos programas não poderão ser publicadas até a decisão judicial. Paralelamente, o Tribunal de Contas da União solicitou apuração relacionada à crise das exonerações.
O processo acadêmico, construído e reconhecido entre pares, transformou-se em conflito judicial, emblemático do desmonte de um sistema avaliativo corroído progressivamente. Não se trata apenas do enxugamento orçamentário, que já vem desde 2016, com cortes de bolsas e recursos das universidades, mas também de uma estratégia de interferência indevida e destruição do tecido organizacional das estruturas e métodos de trabalho, estabelecidos ao longo de décadas de pesquisa.
Estamos diante de um colapso da política de Estado, bem como de uma enorme incerteza em um momento em que o sistema universitário e de pesquisa é essencial na atuação em defesa da vida e da reconstrução nacional. A quem interessa o desmonte das políticas de Estado que dão acesso, regulam e avaliam a educação superior? Minar sistematicamente estruturas da educação, especialmente as voltadas à qualidade educacional, é o mesmo que destruir o futuro da nação.
O tempo para reconstruir o desmonte é incerto, mas há que se iniciar o quanto antes, sob pena de perdermos mais uma geração —e, desta vez, não para a pandemia, mas para outra boiada. A boiada da educação.