quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Como o capitalismo mudou a menstruação, Leandro Narloch, FSP

 

Talvez alguns dos protagonistas tenham sido feministas, mas o que moveu a maioria deles não foi a bondade ou o ativismo

  • SALVAR ARTIGOS

    Recurso exclusivo para assinantes

    ASSINE ou FAÇA LOGIN

  • 7

Há pouco mais de um século, a pobreza menstrual era a regra. Cem por cento das mulheres em idade de menstruar precisavam se virar improvisando tiras de pano, pedaços de algodão ou folhas de árvores –uma situação que ainda hoje aflige milhões de brasileiras.

Tentativas de emplacar a venda de absorventes descartáveis datam do século 19. A Johnson & Johnson tentou em 1895, mas não teve sucesso: o produto era caro e pouco eficiente; as mulheres achavam que não valia a pena abandonar as velhas toalhas.

Até que, durante a Primeira Guerra Mundial, a Kimberly-Clark descobriu um tipo de celulose de fibra longa que tinha uma capacidade absorvente cinco vezes maior e custava a metade do preço do algodão. Era o material perfeito para estancar sangramentos de soldados e ajudar as mulheres naqueles dias.

Em 1921, revistas começaram a exibir anúncios do Kotex, da Kimberly-Clark, o primeiro absorvente industrializado bem aceito pelas americanas.

Vendo a concorrente dominar um novo mercado, a Johnson & Johnson correu atrás. Contratou a psicóloga Lillan Gilbreth para pesquisar hábitos de uso de absorventes.

A psicóloga e sua equipe entrevistaram 1.038 mulheres. Descobriram que a maioria delas achava o Kotex chamativo e inconveniente de carregar –as embalagens eram do tamanho de caixas de sapato. Muitas consumidoras cortavam o produto para ajustar o formato e o tamanho.

Gilbreth também sugeriu estratégias para lidar com o problema de anunciar algo que se relacionava a um tabu.

Para evitar com que as mulheres tivessem vergonha de comprá-lo, a embalagem deveria ser discreta e pequena, e o nome deveria ser neutro, pouco descritivo. Em 1927, baseada nessa pesquisa de mercado, a Johnson & Johnson lançou sua aposta: o Modess.

O marketing mudou a forma com que homens e mulheres encaravam a menstruação. Como conta a historiadora Sharra Vostral no livro "Under Wraps", os anúncios projetaram a imagem de que consumidora de absorventes era uma mulher moderna, rica e livre para se movimentar ou viajar.

Em vez de um tabu que deveria ser evitado a todo custo, a menstruação passou a ser vista como parte da rotina de higiene de mulheres emancipadas.

"Os cuidados da higiene íntima devem estar à altura do nosso progresso e proporcionar a comodidade exigida pela vida ativa da mulher moderna", diz um anúncio da Folha da Manhã de 6 de agosto de 1939.

"Com Modess a senhora poderá ir para onde quiser e pelo tempo que quiser", promete uma propaganda de 2 de julho de 1939, a mais antiga que consegui encontrar no Acervo da Folha.

O anúncio ressalta que bastava uma palavra para a mulher se fazer entendida na farmácia: "Peça simplesmente Modess". Deu certo: por muito tempo a marca foi sinônimo de absorventes no Brasil.

Anúncio de absorvente em página da Folha da Manhã de 1939
Anúncio de absorvente em página da Folha da Manhã de 1939 - Reprodução

O filme "Padman", disponível na Netflix, conta uma história de livre iniciativa ainda mais emocionante.

O empresário indiano Arunachalam Muruganantham, depois de descobrir que as mulheres do país costumavam usar panos sujos para conter a menstruação, e insatisfeito com o preço alto dos produtos importados, criou uma máquina simples e barata para fabricar absorventes.

Muruganantham mandou suas máquinas para milhares de vilarejos, tornando possível que mulheres produzam e vendam de porta em porta absorventes muito mais baratos que os das grandes marcas.

Esse é um tipo de empreendedor que poderia reduzir ainda mais a pobreza menstrual no Brasil –mas já prevejo que regulações rígidas demais o deixariam fora do páreo por aqui.

A história do absorvente industrializado é a típica história de resolução de problemas por meio da concorrência entre empreendedores.

Ocorreu de forma descentralizada e por tentativa e erro; teve como protagonistas empresários que, para vencer a competidores e garantir lucros, inovaram, travaram uma constante corrida tecnológica, fizeram pesquisas de mercado e entenderam as necessidades das clientes.

Nenhuma autoridade central ou planejador social obrigou as empresas a agirem assim.

Talvez alguns dos protagonistas dessa história, quase todos homens, tenham sido feministas, mas o que moveu a maioria deles não foi a bondade ou o ativismo. Foi a vontade de encher o bolso de dinheiro resolvendo problemas dos outros.

Anúncio de absorvente em publicação nos EUA no século passado
Anúncio de absorvente em publicação nos EUA no século passado - Reprodução

O QUE A FOLHA PENSA Regular o lobby

 Um pacote anticorrupção proposto pelo governo de Jair Bolsonaro decerto não inspira grande confiança. Mas há medidas interessantes entre as recém-anunciadas —e merece destaque o projeto de lei que regulamenta o lobby no país.

Embora os termos "lobby" e "lobista" não gozem da melhor das reputações por aqui, a atividade pode ser perfeitamente legítima e legal, uma extensão do direito de peticionar consagrado na Constituição.

Para que o lobby legítimo prevaleça sobre a corrupção e o tráfico de influência, que seriam suas versões degeneradas, é importante que a atividade ocorra sob o primado da transparência e sob regras claras previamente estabelecidas.

O projeto do governo se afigura uma peça bastante técnica, elaborada pela Controladoria-Geral da União, sob inspiração da extensa documentação que a OCDE produziu sobre a matéria.

O texto escapa de velhas armadilhas. Tentativas anteriores de disciplinar o lobby vieram na forma de regulamentação profissional —o que não funciona bem, dado que indivíduos das mais diversas formações, de cientistas a relações públicas, passando pelos influenciadores digitais, podem em princípio fazer as vezes de lobistas.

Em vez disso, o objetivo é regular os relacionamentos entre agentes públicos e a representação de interesses privados por todas as pessoas naturais ou jurídicas.

Também é positiva a insistência do projeto em fomentar a transparência ativa, cobrando o registro e a publicação de todas as interações entre agentes públicos, compreendidos em sua concepção mais ampla, que inclui estatais e fundações, e lobistas, com um detalhamento mínimo do assunto tratado e em tempo hábil (sete dias).

Falta definir melhor os casos em que cabe sigilo, e é preciso deixar mais claro que eles precisam ser exceções. O governo Bolsonaro mostrou que as autoridades não hesitam em decretar sigilo mesmo quando obviamente indevido.

Outro ponto que comporta aperfeiçoamentos é o da distribuição de brindes, presentes e hospitalidades. Nos dois primeiros, o que a experiência dos médicos ensina é que mesmo a distribuição de canetas e calendários com o nome de drogas e laboratórios tem efeito sobre as prescrições.

Isso ocorre porque a mera visão repetida de nomes e logomarcas exerce um efeito que age abaixo do radar da consciência. Já hospitalidades são mais difíceis de regular, mas, ao contrário de presentes, podem servir ao interesse público.

O projeto é um bom ponto de partida para os debates. Cumpre apontar que iniciativas para regulamentar o lobby pipocam no Congresso há décadas sem que tenham avançado. Parece haver um forte lobby para que tudo permaneça como está —nas sombras.

editroiais@grupofolha.com.br