domingo, 2 de maio de 2021

Fernanda Torres Saber de Lina Bo Bardi é entender como tirar o país de todo tipo de pobreza, FSP

  EDIÇÃO IMPRESSA

Em 2012, o artista plástico Isaac Julien veio ao Brasil para a exibição de seu "Geopoetics", no Sesc Pompeia. Impactado pela reforma da antiga fábrica da rua Clélia, Julien retornou à Inglaterra obcecado com a ideia de prestar um futuro tributo a Lina Bo Bardi.

Após sete anos, ele convidaria a mim e à minha mãe para encarnar a arquiteta ítalo-brasileira, em duas fases da vida, numa videoinstalação.

em sentido anti-horário, pessoas diante do masp; pessoas sentadas em banco; e planta baixa de uma construção arquitetônica
Marta Mello/Folhapress

Dona Fernanda e eu devemos a esse inglês, filho de martinicanos, as duas semanas de imersão bobárdica, entre Salvador e São Paulo, e a descoberta, na vertical, da subversiva Lina. A "Marvellous Entanglement" estreou em 2019 na galeria Victoria Miro, em Londres, com críticas consagradoras. Hoje, a obra roda o mundo, mas sua vinda ao Brasil foi adiada devido à pandemia.

Do Solar do Unhão ao Sesc Pompeia; do Masp ao Teatro Oficina; do restaurante Coati à Casa do Benin, tudo tem razão de ser nas edificações dessa romana naturalizada brasileira. Tudo é simples e concreto, feito para sobreviver às intempéries e ao tempo. Tudo resiste e existe graças a um fecundo sentido de utilidade.

Em maio, a editora Todavia lança "Lina, Uma Biografia". Fugindo da linha cronológica do "do feto ao túmulo", Francesco Perrotta-Bosch viaja entre as décadas, unindo a jovem e promissora italiana à entidade que baixou e amadureceu no Brasil.

Nascida no início da Primeira Guerra, Lina encarou, na flor de seus 25 anos, um segundo conflito mundial. "Aqueles que deveriam ter sido anos de sol, de azul e alegria, eu passei debaixo da terra, correndo e descendo sob bombas e metralhas."

Para nós, que atravessamos o horror da Covid, é uma baita lição de perseverança.

Sobreviventes de guerra, ela e o marido, Pietro Maria Bardi, deram as costas à Europa para se aventurar num país "sem nenhum traço de índole civilizatória". A convite do empresário Assis Chateaubriand, o casal cruzou o Atlântico com a missão de fundar um museu de arte em São Paulo.

Pietro era a força motriz da empreitada, Lina veio a reboque. Dos dois, no entanto, foi ela quem se imiscuiu e chafurdou na terra onde fincou raízes. Foi dela o maior legado. Lina apresentou o Brasil ao Brasil.

Pietro Maria Bardi negociou o impressionante acervo do Masp, é verdade, mas o vão do impressionante edifício onde, até hoje, se realizam as mais importantes manifestações populares do país, foi intuído por ela.

O vão e os cavaletes de vidro, a transparência que possibilita a perspectiva histórica da evolução da pintura. Não há, no planeta, nada que se compare àquela obra de arte de todas as obras de arte.

No fim dos anos 1950, Lina se mudou para Salvador, a fim de recuperar o Solar do Unhão. Inquieta, alistou-se no corpo docente da UFBA, a Universidade Federal da Bahia, lecionou arquitetura e fez a cabeça de futuros tropicalistas cinema-novistas, como Caetano Veloso e Glauber Rocha.

E fez teatro e cinema, dirigiu o museu e viajou pelo interior coletando objetos de uso cotidiano que, mais tarde, seriam exibidos na grande exposição sobre a Bahia no Ibirapuera.

A mostra romperia a fronteira entre arte e artesanato. Entre alta e baixa cultura.

Atenta ao valor "das coisas humanas não gratuitas" e à capacidade do povo de, movido pela necessidade, fabricar invenção e poética, Lina fez com os objetos do sertão nordestino o que Guimarães Rosa fez com a prosa.

Avessa ao supérfluo e ao decorativo, ao luxo cafona da acomodação burguesa, essa arquiteta antropóloga filha do modernismo uniu a Bauhaus ao pau a pique.

A Guerra Fria, travada nos porões dos quartéis na América do Sul, foi a terceira por ela enfrentada. O período marcou o início de sua parceria com José Celso Martinez Corrêa, com quem realizou ambientações históricas, como a do ringue de "Na Selva das Cidades", de Bertolt Brecht.

A colaboração perduraria, culminando no belo palco-estrada do Teatro Oficina, hoje tombado, marco da resistência à destruição do Bexiga.

Findos os anos de chumbo, coube a Lina urdir o Sesc Pompeia, berço do renascimento da cultura nos anos 1980.

Quem viveu sabe, eu sei.

De todas as suas criações, nenhuma me assombra mais do que a das janelas buraco. Mescla de escombros de guerra com toca de bicho, de construção inacabada com caverna de Platão, são a prova do quanto, para além das formas, essa mulher enxergava a chuva, o vento, a natureza e a vida.

Saber de Lina Bo Bardi é entender como tirar o Brasil da pobreza espiritual, estética, cultural, social e política sem, como defendem alguns, fuzilar metade da população.


O sucateamento dos Correios e privatização, Celso Ming, OESP

 Os estudos do BNDES sobre a privatização dos Correios estão adiantados, mas as pendências são tantas que é preciso primeiramente saber o que o Brasil quer agora dos seus Correios, uma empresa estatal hoje à beira do sucateamento. Não bastaria providenciar volumosa injeção de capital. É preciso saber como e em que investir.

Os Correios operam em três áreas. As duas principais são entrega de correspondência, que envolve cartas, boletos, marketing direto, pequenos malotes, etc; e a outra, encomendas e logística. Há ainda um terceiro segmento pouco expressivo na área de serviços financeiros.

O principal problema do setor de correspondência é a brutal concorrência produzida pela revolução tecnológica. Quase ninguém mais escreve cartas, até mesmo os cartões de Natal e os antigamente tão interessantes cartões-postais caíram em desuso. E sabe-se lá há quantos anos ninguém mais recebe telegramas... A maior parte da comunicação entre pessoas e empresas é feita agora pelo WhatsApp, por e-mail e pelas redes sociais.

Os Correios perdem por ano 1 bilhão em volumes de correspondência, como apontam os resultados da Fase 1 dos estudos de desestatização do setor postal, realizados pelo Consórcio Postar, com a coordenação do BNDES e supervisão dos Ministérios da Economia e das Comunicações e dos Correios.

Mas contam com duas qualidades de valor inestimável: exclusividade por lei na entrega de correspondências e grande penetração, que podem garantir escala de produção. Seus serviços de coleta e entrega cobrem 5.500 dos 5.568 municípios do Brasil.

Correios
A Empresa de Correios e Telégrafos (ECT) tem exclusividade por lei na entrega de correspondências. Seus serviços de coleta e entrega cobrem 5.500 dos 5.568 municípios do Brasil. FOTO: André Dusek/Estadão

São cerca de 50 mil carteiros que cuidam da entrega de correspondências na chamada milhagem final. De um lado, esses profissionais podem ser vistos como patrimônio da empresa. Mas a enorme perda de mercado na área de coleta e entrega de correspondências é forte indício tanto de ociosidade crescente nesse serviço como de grande passivo trabalhista. Ou seja, os Correios operam com receitas fortemente declinantes e custos altos demais.

Na área logística, as deficiências são enormes, especialmente na entrega de encomendas e de documentos. É um segmento que os Correios estão perdendo para grandes empresas internacionais como AmazonDHL FedEx. Além disso, o grande salto do comércio eletrônico, de 12% ao ano nos últimos cinco anos no Brasil, levou grandes empresas, como Lojas Americanas (B2W)Magazine LuizaSubmarino e Via (até agora, Via Varejo) a investir em logística e em serviços próprios de entrega rápida e, assim,  garantir mais fatias no mercado potencial. Nessa área, os Correios pararam no tempo.

Os grandes atrasos com que lidam nos seus serviços de Sedex são demonstração de colapso nas áreas de automatização, digitalização e governança, que compromete a capacidade operacional e impede avanços na entrega de encomendas.

Mas a maioria dos problemas que ameaçam os Correios de desmanche não é exclusiva do Brasil. No mundo inteiro, empresas postais enfrentam o mesmo impacto da revolução tecnológica (veja gráfico). Por isso mesmo, grande número de países se viu na necessidade de recriar modelos operacionais, instituir agências regulatórias independentes, reestruturar e injetar grandes volumes de capital para modernizar esses serviços.

Embora todos os países reconheçam suas empresas postais como prestadoras de serviços públicos que asseguram direitos universais (acessíveis a todos, independentemente das distâncias, dificuldade de acesso e eventuais custos extras), nem todos optaram pela privatização de todas as áreas postais, porque contaram com recursos fiscais para a modernização.

Mas essa não parece a solução correta de um país como o Brasil, cujo Tesouro está no bagaço e não tem como bancar essa atualização.

Por isso, a avaliação das experiências com reestruturação do setor postal em outros países pode servir de guia para a modelagem da reinvenção dos Correios por aqui. Mas, atenção, quanto mais tempo durar a remodelação, mais rapidamente os Correios afundarão e mais difícil se tornará a reestruturação, porque a concorrência terá mais tempo para se fortalecer e dominar fatias de mercado.

CELSO MING É COMENTARISTA DE ECONOMIA*