segunda-feira, 5 de outubro de 2020

O lado obscuro das pessoas de grande caráter e autocontrole, FSP

 David Robson

BBC FUTURE | BBC NEWS BRASIL

Há alguns anos, 80 pessoas na França participaram de um jogo experimental no que parecia ser um programa-piloto de TV chamado La Zone Xtrême.

Inicialmente, os participantes foram informados apenas que seriam organizados em pares —sendo o "interrogador" e o outro, o "concorrente".

Mas assim que as luzes se acenderam e todas as regras foram explicadas, o rumo foi sombrio.

Os interrogadores foram informados de que teriam que punir os concorrentes com choques elétricos para cada resposta errada.

Também seria preciso aumentar a intensidade do castigo a cada erro, até chegar a 460 volts —mais do que o dobro da voltagem de uma tomada europeia.

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Se a dupla passasse de 27 rodadas, venceria o jogo.

Cada concorrente foi então levado para uma sala trancada e amarrado em uma cadeira. Já o interrogador se sentou no centro do palco.

O jogo começou.

'La Zone Xtrême' parecia um jogo de programa de TV, mas era um experimento
'La Zone Xtrême' parecia um jogo de programa de TV, mas era um experimento - ISTOCK/BBC Brasil

Como se tratava apenas de um programa-piloto, os participantes foram informados de que não haveria um prêmio em dinheiro ao fim.

Mesmo assim, a grande maioria dos interrogadores continuou aplicando choques, mesmo depois de ouvir gritos de dor vindos da sala.

Felizmente, os gritos eram apenas uma atuação —ninguém foi realmente eletrocutado.

Os interrogadores estavam participando, sem saber, de um experimento elaborado para explorar como vários traços de personalidade podem influenciar o comportamento moral.

Embora se pudesse esperar que os mais perversos fossem pessoas impulsivas e antissociais, ou pouco persistentes, cientistas franceses descobriram exatamente o oposto.

Os participantes que estavam dispostos a dar mais e maiores choques eram justamente aqueles associados a um comportamento cuidadoso, disciplinado e moral.

"Pessoas acostumadas a serem organizadas e dóceis, com boa integração social, têm mais dificuldade em desobedecer", explica Laurent Bègue, psicólogo e pesquisador da Universidade de Grenoble-Alpes que analisou o comportamento dos participantes.

Essa descoberta se soma a uma série de estudos que já mostraram que pessoas com alto autocontrole e disciplina têm um lado obscuro surpreendente.

E este acúmulo de evidências pode nos ajudar a entender por que cidadãos exemplares às vezes se tornam tóxicos, e também a compreender comportamentos antiéticos em nossos locais de trabalho e além.

SUPERANDO IMPULSOS

Por décadas, o autocontrole foi visto como algo exclusivamente positivo e vantajoso.

Essa qualidade pode ser avaliada de várias maneiras, desde questionários que "medem" nosso nível de autodisciplina e organização até experimentos sobre força de vontade, como o famoso "teste do marshmallow".

Capacidade de conter impulsos foi por muito tempo associada a um comportamento mais exemplar
Capacidade de conter impulsos foi por muito tempo associada a um comportamento mais exemplar - ISTOCK/BBC Brasil

Nesses casos, pessoas com alto autocontrole apresentaram melhor desempenho na escola e no trabalho e adotaram estilos de vida mais saudáveis, pois eram menos propensas a comer demais ou a usar drogas, e mais propensas a praticar exercícios.

Pesquisas também descobriram que a capacidade de superar os impulsos mais básicos também significava fazia aqueles com maior autocontrole ter menos propensão a agir de forma agressiva ou criminal.

Assim, por muito tempo se acreditou que o autocontrole representa o caráter de alguém. Alguns estudiosos chegaram a comparar isto a um "músculo moral" que determinaria nossa capacidade de agir com ética.

Em meados da década de 2010, porém, Liad Uziel, da Universidade Bar-Ilan de Israel, começou a investigar a importância do contexto nas nossas decisões de autocontrole.

Uziel partiu da hipótese de que o autocontrole é apenas uma ferramenta para atingir objetivos, e que estes podem ser bons e ruins.

Em muitas situações, nossas normas sociais recompensam as pessoas que cooperam com outras, de modo que as pessoas com alto autocontrole seguem essa linha alegremente. Mas, se mudarmos essas normas sociais, então elas podem ser menos escrupulosas em suas relações com os outros, propôs o pesquisador.

E para testar a ideia Uziel recorreu a um experimento psicológico chamado "jogo do ditador", no qual um participante recebe uma quantia em dinheiro e tem a oportunidade de compartilhá-la com um parceiro.

Graças às normas sociais de cooperação, as pessoas costumam ser muito generosas.

"Racionalmente, não há razão para dar ao segundo jogador qualquer quantia", explica Uziel, "mas as pessoas geralmente dão cerca de um terço da verba para os outros."

Só que os pesquisadores também descobriram que as pessoas com alto autocontrole só eram generosas se temessem ser julgadas por seu comportamento mesquinho, ao passo que, se suas ações fossem mantidas em sigilo, eram muito mais egoístas do que as pessoas consideradas tendo pouco autocontrole.

No experimento, uma vez que o medo do julgamento dos outros desapareceu, os "autocontrolados" escolheram seus próprios interesses em vez de ajudar os outros, ficando com quase todo o dinheiro.

Pessoas com autocontrole alto também parecem ter mais cuidado ao cometer um ato antissocial, evitando assim serem flagradas.

Na Universidade de Western Illinois, nos EUA, David Lane e seus colegas fizeram questionários sobre comportamentos desviantes e consequências de certas ações.

A equipe descobriu que pessoas com alto autocontrole tinham maior probabilidade de tentar escapar de penas por dirigir perigosamente e trapacear em testes, em comparação com pessoas com menos autocontrole.

Mais uma vez, as pessoas mais "autocontroladas" pareciam estar avaliando cuidadosamente as normas sociais, e aderindo a elas quando a transgressão pudesse ser mais prejudicial à sua reputação.

MÁQUINAS DE EXTERMÍNIO

Até agora, falamos de atos morais questionáveis. Mas dependendo do contexto, uma forte força de vontade pode contribuir também para atos de crueldade.

Em um estudo macabro, Thomas Denson, psicólogo da Universidade de Nova Gales do SUl, na Austrália, convidou participantes ao laboratório para... colocar insetos em um moedor de café.

Sem que os participantes soubessem, a "máquina de matar" foi construída para permitir que os insetos escapassem antes de serem mortos, mas o moedor ainda emitia um grunhido desconcertante conforme os insetos passavam pela máquina.

Foi dito que o objetivo era compreender melhor certas "interações entre humanos e animais" —uma justificativa que possivelmente tornou o ato mais socialmente aceitável para os participantes.

Para os participantes que demonstravam maior autocontrole, aumentou significativamente o número de insetos que eles estavam dispostos a matar.

Eles pareciam mais dispostos a atender ao pedido dos cientistas e tinham maior capacidade de superar qualquer sentimento de aversão à tarefa, tornando-os assassinos mais eficientes.

Os participantes do La Zone Xtrême mostraram um padrão de comportamento muito parecido, mas em escala bem maior.

O jogo francês foi inspirado nos polêmicos experimentos de Stanley Milgram na década de 1960 que testaram se os participantes estariam dispostos a torturar outra pessoa com choques elétricos em nome da ciência.

O experimento de Milgram foi conduzido para mostrar a obediência inabalável das pessoas à autoridade. Depois, os pesquisadores franceses quiseram saber que tipos de personalidades eram mais suscetíveis a ela.

Eles descobriram que aqueles com maior autocontrole estavam dispostos a descarregar cerca de 100 volts a mais em seus colegas —a ponto destes pararem de gritar, fingindo inconsciência ou morte.

Curiosamente, o desejo de agradar aos outros era outro traço de personalidade associado a esse comportamento insensível.

"Eles tendiam a eletrocutar mais a vítima, provavelmente para evitar um conflito desagradável com o apresentador de televisão", disse Bègue.

"Queriam ser pessoas confiáveis e manter seu compromisso."

Em seu artigo, a equipe de Bègue relaciona as descobertas com o estudo feito pela filósofa Hannah Arendt sobre o oficial nazista Adolf Eichmann.

Arendt cunhou o famoso termo "banalidade do mal" para descrever como as pessoas ordinárias, como Eichmann, podem cometer atos de grande crueldade.

E, de acordo com a pesquisa de Bègue, os traços que levam as pessoas a agirem de forma imoral podem ser não apenas ordinários, como desejáveis em várias situações.

Afinal, são pessoas em "conformidade" normalmente as melhores candidatas a empregos e a cônjuges.

CONSEQUÊNCIAS NO AMBIENTE DE TRABALHO

Bègue enfatiza que sua pesquisa precisa ser replicada antes que possamos tirar conclusões mais genéricas sobre a natureza humana.

Entretanto, é interessante especular se características como alto autocontrole podem prever o envolvimento de alguém em atos cotidianos imorais, de pequenos a grandes.

Para Lane, tudo dependeria da força das normas sociais. E há algumas evidências para apoiar isso: por exemplo, a evasão fiscal aumenta com o escrúpulo.

Enquanto isso, no ambiente de trabalho, funcionários exemplares também podem ser aqueles que roubam da empresa sob a ideia de que ninguém dará falta do dinheiro.

Uziel, por sua vez, suspeita que alguém com alto autocontrole tem mais probabilidade de agir impiedosamente quando a coesão do grupo começa a desmoronar, incluindo momentos em que seu próprio senso de poder ou autoridade é ameaçado, ou quando ela se sente em perigo.

Nessas condições, por exemplo, tais pessoas podem "apunhalar alguém pelas costas" buscando uma nova promoção; ou curvar-se diante de um chefe sem levar em conta como seu comportamento afetará os outros.

Assim, podemos começar a apreciar um pouco mais as pessoas ao nosso redor que são um pouco menos disciplinadas e obedientes do que as outras.

Elas podem nos decepcionar com sua falta de confiabilidade, mas pelo menos no jogo La Zone Xtrême seriam o tipo de pessoa que você gostaria de ter em seu caminho.

Muros de Doria viram 'micos' de São Paulo e devem perturbar próximo prefeito, FSP

 Uma ação que começou como uma ofensiva do então prefeito João Doria (PSDB) contra pichadores no início de sua gestão em São Paulo deverá continuar perturbando quem quer que seja eleito para o cargo neste ano.

O muro com grafites apagado na 23 de Maio virou um jardim vertical cuja manutenção custa R$ 1,5 milhão ao ano, e a galeria ao céu aberto para alocar as pinturas virou mais um muro pichado e malcuidado.

Outro muro também pensado para virar uma marca de Doria, mas que virou um 'mico' foi o de vidro da USP.

Agora, as ações são criticadas por adversários, que veem desperdício de dinheiro público, contrariando promessas iniciais de que o município não teria prejuízos.

Na época em que a maré cinza de Doria varreu os muros da cidade, o atual chefe do Executivo, Bruno Covas (PSDB), era titular das Subprefeituras na ocasião, responsável pela zeladoria. A gestão tucana mirou os pichadores, mas acertou os grafiteiros, gerando revolta por parte da população.

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Os grafites haviam sido patrocinados pela gestão de Fernando Haddad (PT), derrotado por Doria. O tucano anunciou o maior “corredor verde do mundo em um eixo urbano” para ocupar o lugar que antes era das obras de arte.

O projeto do muro custou de R$ 9,7 milhões. A obra foi controversa, porque contou como compensação ambiental. Já a manutenção foi entregue a uma empresa que, posteriormente, desistiu de fazer o serviço alegando falta de condições financeiras.

Sem cuidado, as plantas chegaram a secar. A gestão Covas revitalizou o muro, que hoje apresenta um frondoso jardim. O problema ali está no custo: renovado em maio por 12 meses, o contrato custa R$ 128 mil por mês.

O muro da av. 23 de Maio após ser pintado de cinza no início da gestão Doria, em 2017 - Zanone Fraissat - 24.jan.2017/Folhapress

A reportagem questionou se a gestão Covas cogita retirar o muro devido ao custo, mas a nota da prefeitura afirmou apenas que a empresa contratada faz a manutenção regularmente, incluindo limpeza e troca de mudas, substituição das bombas queimadas e furtadas, além de manutenção no sistema de irrigação, dando a entender que uma mudança não está nos planos.

O secretário do Verde e Meio Ambiente na época da instalação, o vereador Gilberto Natalini, diz que considera o espaço um erro de gestão. Ele foi contrário ao muro, por julgar que não fazia sentido usar dinheiro de compensação ambiental.

Para que o muro tivesse relevância ecológica real para a cidade seria necessário que tivesse mais de 1.500 km —distância similar ao trajeto de São Paulo a Cuiabá, em Mato Grosso.

Muro verde da avenida 23 de Maio em 2019
Muro verde da avenida 23 de Maio em 2019 - Ronny Santos - 26.mar.19/ Folhapress

Natalini lembra que a ideia de usar esse tipo de muro começou ainda na gestão Haddad, em prédios no Minhocão. Doria, porém, ampliou o uso do recurso.

“Mas o Doria quis de qualquer forma fazer o muro, insistiu, praticamente obrigou a administração a fazer o muro”, disse Natalini. Esse foi o primeiro dos desgastes que acabaram com a demissão de Natalini, que posteriormente faria denúncia sobre uma série irregularidades na cidade.

Muro verde da 23 de Maio em setembro deste ano
Muro verde da 23 de Maio em setembro deste ano - Eduardo Knapp/Folhapress

Para compensar a má repercussão do apagamento de grafites pela cidade, Doria criou um programa de galerias a céu aberto com grafites, os MARs (Museus de Arte de Rua). O projeto foi inspirado em um bairro de Miami, Wynwood, que atrai mais de um milhão de visitantes por ano.

Embora depois na gestão Covas grafites tenham proliferado em empenas na cidade, o primeiro espaço inaugurado por Doria que deveria virar ponto turístico, na rua Moacyr Vaz de Andrade, na zona norte, é um muro pichado e descascado, sem sinal de visitante algum.

A gestão Covas diz que o programa MAR se encontra em sua terceira edição, com orçamento de R$ 1,4 milhão, com sete empenas e dez muros finalizados em 2020.

“Doria é um ‘contêiner’ amarrado nas costas do Bruno. Os muros verdes da 23 de Maio são um exemplo de desperdício de dinheiro público”, diz Márcio França (PSB). “Outro exemplo é o muro de vidro da USP, típica marca do governo Bruno-Doria: rápida, marqueteira e inútil”, completa o opositor, que também citou o assunto no debate da última quinta-feira (1º).

Grafite em muro na zona norte de SP, à época da inauguração do "Museu de Arte da Rua" por Doria, em 2017, e atualmente - Zanone Fraissat - 03.jun.17/Folhapress e Eduardo Knapp - 25.set.2020

Feita inicialmente pela iniciativa privada, a obra do muro de vidro USP era outra aposta dos tempos em que Doria lançava projetos-relâmpago em busca de uma marca eleitoral. Orçada em R$ 15 milhões, a obra não deveria custar nada aos cofres públicos.

No entanto, com os vidros constantemente quebrados, o muro virou um problema para a prefeitura sob Bruno Covas e também para a USP.

Laudos da Polícia Civil indicam que houve falhas na instalação que levaram a quebras recorrentes das placas. A falta de uma peça de borracha para calçar as placas de vidro facilitaria a quebra.

Agora, todos querem distância da responsabilidade sobre o muro.

A prefeitura, por exemplo, afirma que o muro não é mais problema dela. “O muro de vidro foi viabilizado por meio de parcerias com a iniciativa privada, após entendimento entre a prefeitura e a Universidade de São Paulo, que realizou chamamento público dos parceiros. A prefeitura já se colocou à disposição para prestar apoio técnico caso a USP julgue necessário”, diz a gestão Covas, em nota.

Questionado tanto sobre o muro da USP quanto pelo da av. 23 de Maio, a assessoria do governo Doria afirmou que ele “iniciou o processo de revitalização da raia da USP, assim como o muro verde da avenida 23 de maio”. “A continuidade dos projetos e as manutenções serão realizadas pelos atuais responsáveis."

Já a USP afirmou que as obras no muro estão paralisadas devido à pandemia e que serão “retomadas tão logo seja possível”. A universidade não deu detalhe qualquer sobre a tal obra.

Os muros de vidro da USP, inaugurados por Doria, em uma projeção de divulgação de 2017 e quebrados neste ano - Heloisa Ballarini - jul.2017/Divulgação e Adriano Vizoni - 14.jul.2020/Folhapress

Entre os adversários, há muitas críticas, mas poucas ideias sobre o que fazer com os muros deixados por Doria.

“Vamos ouvir a população sobre o que deve ser feito em casos como estes, emblemáticos do elitismo e da arrogância do PSDB. Se os paulistanos tivessem sido ouvidos, milhões de reais desperdiçados por conta dos caprichos estéticos de Doria poderiam ter sido destinados à criação de vagas em creches e à contratação de medicos na periferia”, afirmou a campanha de Guilherme Boulos (PSOL).

Já Andrea Matarazzo (PSD) diz que gosta da ideia do muro da av. 23 de Maio, apesar do preço, mas diz que o da USP ele mudaria.

“A USP na minha concepção, e é o que eu farei, trocar todos aqueles vidros por uma cerca igual a que eu coloquei no Parque do Povo, que é uma cerca de ferro, que permitiria você enxergar a paisagem. Isso não custaria nem 10% daquilo lá [muro de vidro] e seria definitivo."

Para Matarazzo, o maior 'mico' da gestão Doria-Covas mesmo será a reforma do Vale do Anhangabaú.

A campanha de Jilmar Tatto (PT) afirmou que Doria priorizou uma série de obras desnecessárias, em contexto em que a cidade tem quase 30 mil pessoas vivendo em situação de rua e déficit habitacional de 474 mil.

Segundo a assessoria do petista, o muro da USP ainda gera prejuízos com quedas e problemas de manutenção.

"Já o muro verde da [avenida] 23 de Maio só expôs o caráter higienista da gestão Bruno-Doria. A arte precisa ser vista, precisa estar exposta. Sem contar a censura à liberdade de expressão e os danos ao patrimônio público, como apontou o Ministério Público. Doria trata São Paulo como a sala de sua mansão no Jardim Europa."