terça-feira, 5 de maio de 2020

Alvaro Costa e Silva Resposta ao tempo, FSP

"Batidas na porta da frente/ É o tempo." Com o tempo, ele foi se fechando em casa, dentro de si mesmo. Andar na rua passou a ser perigoso: sofreu um grave acidente de carro em 1991, que deixou sua perna esquerda quase sem movimento. Ficava em sua biblioteca-escritório, lendo muito, recebendo os amigos e, sempre que dava, fazendo música.
Desde então, seu mais longo afastamento de casa foi no mês passado: uma ambulância o deixou no CER do Leblon com pneumonia e infecção generalizada, quadro agravado com a Covid-19. Aos 73 anos, Aldir Blanc morreu nesta segunda (4) no hospital Pedro Ernesto, em Vila Isabel, bairro do subúrbio carioca que deu samba e Noel Rosa, de quem ele foi autêntico sucessor. Não por acaso, Aldir passou lá a infância.
"Eu bebo um pouquinho/ Pra ter argumento." No tempo em que saía para tomar uma cervejinha —dizia que, quando o sujeito começa a falar no diminutivo em relação a bebidas, é grande e grave a sede—, raramente se afastava da Muda, onde morava. Nessas investidas, fazia-se acompanhar do artista plástico Mello Menezes, seu melhor amigo, fiel escudeiro e maior batedor de botequins pé-sujos a oeste do Catumbi.
Um dia, os dois curtiam o silêncio um do outro entre tremoços e cascos escuros quando um samba mal cantado começou na mesa dos fundos. Nem rimar rimava: "Quem citar o santo nome/ Do Salgueiro em vão/ Vai morrer com a boca/ Cheia de formiga". Mais pela euforia alcoólica do que pela política de boa vizinhança, Aldir resolveu puxar seu carro-chefe, "O Bêbado e a Equilibrista", timidamente fazendo a ressalva, comum entre compositores, de que iria cantar um "de minha autoria". Mal a tarde caía feito um viaduto, e um baixinho, que estava encostado no balcão tomando cachaça, gritou: "Coisa nenhuma! Este samba eu conheço! É do meu parceiro Waldir Branes!".
"Amores terminam/ No escuro, sozinhos."
Alvaro Costa e Silva
Jornalista, atuou como repórter e editor. É autor de "Dicionário Amoroso do Rio de Janeiro".
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Hélio Schwartsman Centrão é virtuoso e Moro é petista, FSP

Eu tento ser uma pessoa boa, mas nem sempre consigo. Confesso que experimento um certo prazer —uma "Schadenfreude", diriam os sempre precisos alemães— ao ver bolsonaristas contorcendo seus neurônios para processar a nova aliança do mito com o centrão ou ao se verem obrigados a reclassificar o ex-herói Sergio Moro como um traidor.
O centrão, vale lembrar, é sinônimo da "velha política", que Bolsonaro jurou que não teria vez em sua administração. Circula na internet um vídeo impagável em que o general Heleno, o fiador verde-oliva do governo, arrisca acordes em que sugere que todos os parlamentares do centrão são ladrões. Agora, Bolsonaro ameaça demitir os ministros que resistirem em ceder cargos para esses políticos.
Já Moro, que até alguns dias atrás emprestava à administração sua imagem de campeão da luta contra a corrupção, deixou o governo acusando Bolsonaro de crimes graves. É Moro que mudou ou Bolsonaro que mentiu?
O meu prazer é, de um ponto de vista cristão ou kantiano, condenável, porque se baseia no sofrimento mental por que essas pessoas passam ao lidar com contradições óbvias demais para serem ignoradas --dissonâncias cognitivas no vocabulário da psicologia. E cristãos e kantianos não deveriam extrair prazer da dor alheia. Mas não sou tão kantiano assim e nada cristão. Já que os eleitores de Bolsonaro nos impingiram esse estrupício, é justo que sofram pelo menos um pouquinho também.
Nossa janela para regozijo, porém, é curta. Uma série de trabalhos inaugurados por Leon Festinger nos anos 50 mostra que, quando confrontados com dissonâncias cognitivas, nossos cérebros fazem de tudo para dissolver as contradições e eliminar o sofrimento mental, mesmo que isso signifique criar fabulações e acreditar em mentiras. Em mais alguns dias, os bolsonaristas de raiz jurarão que o centrão sempre esteve do lado do bem e que Moro sempre foi petista.
Hélio Schwartsman
Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".