segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Em novo ataque à imprensa, Bolsonaro diz que jornalistas são 'raça em extinção', FSP

BRASÍLIA
Em mais um ataque à imprensa, o presidente Jair Bolsonaro afirmou nesta segunda-feira (6) que os jornalistas brasileiros são uma "raça em extinção" e acusou a Folha de escrever mentira.
 
Na entrada do Palácio do Alvorada, onde cumprimentou um grupo de eleitores, ele disse que cada vez menos pessoas confiam na imprensa e que a leitura diária de jornais envenena e desinforma.
 
"Quem não lê jornal não está informado. E quem lê está desinformado. Tem de mudar isso. Vocês são uma espécie em extinção. Eu acho que vou botar os jornalistas do Brasil vinculados ao Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente]. Vocês são uma raça em extinção", afirmou.
 
O ataque do presidente foi feito ao criticar uma reportagem do UOL, que tem participação acionária minoritária e indireta da Folha.
Presidente Jair Bolsonaro cumprimenta apoiadores na porta do Palácio da Alvorada - Pedro Ladeira - 26.dez.2019/Folhapress
A reportagem lembra que, apesar de estimular os eleitores a não votarem em candidatos que utilizarem o fundo eleitoral, Bolsonaro usou recursos públicos em sua campanha a deputado federal em 2014.
 
O presidente disse que o texto o acusa de ter utilizado o fundo eleitoral. A reportagem refere-se ao repasse de verba pública ao PP, partido ao qual ele era filiado. 
 
"O UOL falou: Bolsonaro falou para não votar em candidatos que usem o fundão, mas ele usou em 2014. O fundão é de 2017. É de uma imbecilidade. Não vou dizer todo mundo aqui, para não ser processado pela ANJ [Associação Nacional de Jornais] e não sei o quê, mas é de uma imbecilidade. Não sabe nem mentir mais", disse.
 
Na sequência, o presidente criticou campanha publicitária da Folha em defesa da imprensa. Segundo ele, apesar de o jornal saber a diferença entre a verdade e a mentira, ele desinforma. Bolsonaro, no entanto, não apresentou nenhum exemplo ou prova de sua acusação.
"Porque envenena a gente ler jornal. Chega envenenado. Hoje, a Folha fez um comunicado, apelando ali para assinar, que a Folha sabe exatamente do corte entre a mentira e a verdade. Verdade, sabe exatamente o corte, só que usa a mentira. Essa é a imprensa brasileira, que eu não quero isso para a imprensa", disse.
 
O presidente ressaltou que, para este ano, cancelou as assinaturas impressas de jornais e revistas no Palácio do Planalto. Ele, no entanto, manteve as digitais e, após ser criticado, recuou da exclusão da Folha de concorrência pública.
 
"É importante a informação, não a desinformação ou o fake news. Por exemplo, eu cancelei todos os jornais do Palácio do Planalto. Todos, todos, não recebo mais papel de jornal ou revista. Quem quiser que vai comprar", disse.
 
Ao todo, eram assinados em formato impresso sete jornais, incluindo a Folha, e oito revistas. Por dia, eram entregues, em média, 25 exemplares. O custo anual das assinaturas impressas era de cerca de R$ 580 mil. Com a Folha, entre janeiro e outubro, o Palácio do Planalto desembolsou R$ 27.659.

Descrição de chapéuENTREVISTA DA 2ª O Analista de Bagé receberia Bolsonaro com um joelhaço, diz Luis Fernando Verissimo, FSP

SÃO PAULO
A convite da Folha, Luis Fernando Verissimo imaginou como atuaria o Analista de Bagé diante de alguns temas contemporâneos.
Por exemplo: Jair Bolsonaro. O presidente seria recebido no consultório com uma das clássicas joelhadas de um dos mais famosos personagens criados pelo escritor gaúcho.
Lançado em 1981, o "Analista" foi um sucesso instantâneo. Psicanalista heterodoxo, de traços gaúchos marcantes, o personagem ganhou um monumento em Bagé. Além de uma do próprio Verissimo, há estátuas do Analista e de sua secretária, Lindaura, fundamental para ajudá-lo a resolver os casos mais complicados.
em pé, verissimo, com uma camiseta polo azul, se apoia no braço de uma cadeira de madeira
Verissimo, para quem a volta a textos telegráficos e signos são desserviço à escrita tradicional - Ricardo Jaeger - 11.abr.2019/Agência O Globo
Aos 83 anos, Verissimo reclama dos males do corpo, mas não deveria ter nenhum motivo para se queixar da mente. Está intacto o pensamento aguçado e bem-humorado que fez dele um dos mais populares escritores brasileiros.
Sua fama o transformou numa vítima frequente de fake news nas redes sociais. "Já fui muito elogiado pelo que nunca escrevi", afirmou ele à Folha há dois anos.
Nesta conversa, Verissimo escreveu. Optou por fazer a entrevista por email, após um encontro em São Paulo –onde ele participaria de uma homenagem ao pai, o também escritor Erico Verissimo (1905-1975).
À saída, diante do elevador, o repórter disse à mulher de Verissimo, Lúcia Helena, e às filhas Mariana e Fernanda que compreendia a opção pelo formato da entrevista: "Se eu escrevesse como ele, também preferiria responder por escrito".
*
Como seria uma consulta de Jair Bolsonaro com o Analista de Bagé? O Analista receberia o Bolsonaro com um joelhaço, para inveja de muita gente.
E se Olavo de Carvalho estivesse na antessala com Lindaura, que indicação ela daria ao Analista? Ela avisaria: "esse veio pelo SUS, doutor, que no caso dele quer dizer Sou Uber Sim".
O Analista de Bagé teria um tratamento para os aspectos que o escritor Luis Fernando Verissimo critica no governo Bolsonaro? Teria, mas envolveria tratamento com águas, lobotomias e talvez uma nova eleição. Séria, desta vez.
Para encerrar essa jornada do Analista de Bagé: como o inventor do personagem narraria, em 2019, uma consulta de um transexual no consultório do Analista? O sr. se sente como o roteirista de 'De Volta para o Futuro' ao pensar nisso? O transexual procuraria o Analista por estar em revolta contra a sua porção mulher, o que poderia ser interpretado como homofobia.
Quando as fake news ganharam a visibilidade atual, imagino que o sr. tenha pensado algo como "bem-vindos ao meu mundo". As fake news chegaram a ser engraçadas para o sr.? Se sim, deixaram de sê-lo? Quando? Na medida em que são formas de ficção, as fake news requerem alta dose de criatividade para competir com as news de verdade, estas sim, frequentemente incríveis.
O Bolsonaro e alguns dos seus ministros são claramente figuras do realismo mágico, mas reais.
Luis Fernando Verissimo discursa durante a abertura oficial da Flip 2012 - Adriano Vizoni - 4.jul.2012/Folhapress
Uma hipótese: o sr. recebe muito mais comentários de leitores quando escreve sobre temas políticos do que sobre outro assunto. Se certa a hipótese, isso faz sentido? Por que tamanho fascínio das pessoas em discutir política? A eleição de um candidato improvável como o Bolsonaro energizou o meio político. Parafraseando o que disse aquele irmão Karamázov do Dostoiévski sobre a ausência de Deus, se um Bolsonaro chegou à Presidência do Brasil, tudo é permitido.
As pessoas mundo afora se cansaram de fazer política no sentido de ganhar corações e mentes? Eu acho que é o contrário, grupos que não sonhavam com o sucesso político, quase sempre de extrema direita, estão chegando ao poder pela via eleitoral em várias partes do mundo.
Quando o sr. navega em redes sociais, o que mais chama sua atenção? O ódio das pessoas. Prova do que eu sempre digo: o mundo não é mau, é só muito mal frequentado.
É cansativo ser de esquerda? Ou seria mais cansativo não ser de esquerda? Talvez ingenuamente, eu não entendo como uma pessoa que enxerga o país à sua volta, vive suas desigualdades e sabe a causa das suas misérias pode não ser de esquerda. Ser de esquerda não é uma opção, é uma decorrência. Mas que às vezes desanima, desanima.
Como o sr. escolhe um tema para escrever uma coluna no jornal? A crônica, ou a coluna, nos permite variar de assuntos e chamar o que sair de crônica. Não nos obriga nem a ser coerentes na escolha do tom, do "approach" como dizem na Mooca, ou do estilo. Pelo menos eu não me sinto obrigado.
Como é ser convidado a opinar sobre tudo? O sr. se impõe limites? (Por favor, não os estabeleça nesta entrevista). É bom ter a liberdade de opinar sobre tudo, dentro dos limites da clareza e do bom senso que você mesmo se impõe. Eu comecei a ter um espaço assinado em jornal em 1969. Época do Médici, da censura à imprensa, dos assuntos proibidos. Sei bem como era.
É triste constatar que voltam a falar em controle da mídia e ameaçar com uma nova edição do AI-5. No Brasil a nostalgia é uma força politica ainda a ser estudada.
A possibilidade de o leitor reagir a qualquer mensagem hoje é muito maior. Em que medida isso altera a mensagem original? Quem escreve pode ficar com medo da polêmica? Ou, ao revés, escreve tão somente para procurá-la? Não se deve escrever com medo da reação e da polêmica, ou atrás da reação e da polêmica. Deve-se aproveitar a liberdade que existe hoje, com todas as restrições econômicas combinadas com a revolução tecnológica que afetam os jornais e os jornalistas, antes que os censores e os nostálgicos voltem.
O sr. lê as mensagens que recebe? Só os elogios.
O sr. gosta de lembrar que a medicina melhorou. E a literatura: melhorou? Não estou capacitado para responder. Leio sempre com prazer o Milton Hatoum e o Sérgio Rodrigues, estou lendo o último Le Carré e o último Chico Buarque está na fila, mas não sou mais o leitor voraz e omnívoro que fui um dia.
A despeito de ela ter ou não melhorado, os escritores, como conjunto, têm menos impacto na sociedade do que já tiveram antes. Isso é irreversível? Os escritores não têm mais o impacto que já tiveram na sociedade? Não sei. Talvez os atuais cronistas, como o time de humoristas da Folha, estejam recuperando o impacto que tiveram Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e Antônio Maria, na época clássica da nossa crônica.
Voltando às fake news: elas são literatura? O que as aproxima ou as distancia disso? As fake news que funcionam como fatos falsos e mentiras convincentes obviamente fracassam como literatura.
O sr. costuma ouvir poesia em podcast? O que lhe parece? Ouço e leio pouca poesia. Culpa minha, não da poesia.
Quantos livros uma criança deveria ler? Quais? Que roteiro básico o sr. indicaria a um pai de uma criança de, digamos, dez anos, que lhe perguntasse isso de bate-pronto? Os livros infantis ficaram muito bonitos, acho que a função do pai ou do avô deve ser a de fornecer beleza, torná-la disponível e deixar o ato da descoberta para a criança.
O sr. acredita que os vídeos assumiram ou assumirão o lugar dos livros na transmissão do conhecimento? É a velha questão do veículo e do conteúdo, que existe desde os tabletes de barro da Mesopotâmia. O que é mais importante, veículo ou conteúdo?
Um texto numa tela de computador ou num vídeo ainda é um texto, no caso o conteúdo é que vale. Ou o texto em qualquer outro veículo que não seja papiro, papel ou Kindle é inadmissível? Se o livro como nós o conhecemos e amamos vai desaparecer é outra questão. Já anunciaram a morte do livro várias vezes, mas era sempre boato.
É possível manter a profundidade de um livro num vídeo? É. Depende do valor do conteúdo, não da natureza do veículo.
Como isso pode impactar a maneira como as pessoas raciocinam? Estão dizendo que num futuro próximo os robôs raciocinarão por nós, portanto essa questão estará resolvida.
Escrever no celular algo para publicação: não vou perguntar ao sr. se esse outro mundo é possível porque eu mesmo o faço. Mas pergunto o seguinte: que consequências isso tem no que escrevemos? O principal é não nos deixarmos intimidar pela técnica, esquecermos o veículo e nos concentrarmos no texto.
Como o sr. consome informação jornalística? Zero Hora, Estadão, Folha e Globo pela ordem de entrega em casa, The New York Times, The Guardian, a revista The New Yorker, TV.
E não jornalística: como o o sr. consome ficção? Em que plataformas? Confesso, envergonhado, que tenho lido pouca ficção, além da já citada. Plataforma zero.
A fotografia mais e mais trocou um papel de registro por um de comunicação –informar instantaneamente algo a outras pessoas. O texto sofreu transformação parecida? Ou, pelo contrário, as redes fizeram um desserviço à escrita? Na medida em que voltamos ao texto telegráfico e a signos em vez de palavras acho que houve, sim, um desserviço à escrita tradicional, que depende de tempo e espaço para se desenvolver e se explicar.
E os desenhos, como quadrinhos e charges? Eles terão espaço razoável no mundo digital? A charge é uma das tradições mais antigas e perenes do jornalismo internacional e continua forte na sua capacidade de resumir uma opinião ou um "insight" como faz desde o século 18.
O que será a tradução do papel das cartas nas artes em, digamos, 50 anos. A troca de tuítes? No que o ato de escrever uma carta é diferente disso? Os robôs saberão o que fazer.
O futebol brasileiro ainda existe? O futebol brasileiro hoje parece ser o Flamengo com um deserto em volta.
O que o sr. faz para tentar chegar bem até os cem anos? Vamos com calma. Quando chegar aos 99, eu revelo como foi.