segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Por que a comparação com Savonarola irritou tanto Sérgio Moro? Por Kiko Nogueira, DCM

 
Savonarola, que Deus o tenha
Savonarola, que Deus o tenha (retrato de Alessandro Bonvicino)

O juiz Sérgio Moro enviou uma carta enfezada à Folha de S.Paulo, protestando contra artigo de Rogério Cezar de Cerqueira Leite.
Moro diz que o articulista realizou “equiparações inapropriadas com fanático religioso”, referindo-se a Girolamo Savonarola.
No texto, Cerqueira Leite alerta o magistrado de que “o destino dos moralistas fanáticos é a fogueira. Só vai vosmecê sobreviver enquanto Lula e o PT estiverem vivos e atuantes.”
Savonarola não foi simplesmente um “fanático religioso”. Nascido numa família nobre de Ferrara, tornou-se um reformista dominicano e um asceta obcecado com a corrupção florentina nos anos do Renascimento.
Messiânico, criou ali um modelo de estado cristão, cujo maior emblema era a chamada Fogueira das Vaidades, na qual ele e seu séquito queimavam, entre outras coisas, livros “impróprios”.
Por que essa comparação incomodou tanto Moro?
Abaixo, um breve perfil de Savonarola, segundo o historiador Richard Cavendish.

Girolamo Savonarola, frei dominicano e fanático puritano, tornou-se ditador moral da cidade de Florença quando os Medici foram temporariamente expulsos em 1494. Enviado à cidade doze anos antes, ele construiu uma reputação de austeridade e sabedoria e tornou-se prior do convento de São Marcos (onde seus quartos ainda pode ser visitados). 
Visionário, profeta e formidável pregador apocalíptico, obcecado com a maldade humana e convencido de que a ira de Deus estava prestes a cair sobre a Terra, ele detestava praticamente todas as formas de prazer e relaxamento.
Seus adversários chamavam Savonarola e seus seguidores de “piagnoni” — chorões —, e ele reprovava severamente piadas e frivolidade, poesia e tavernas, sexo (especialmente a variedade homossexual), jogos de azar, roupas finas, jóias e luxo de todo tipo. 
Denunciou as obras de Boccaccio, pinturas de nus, imagens de divindades pagãs e toda a cultura humanista do Renascimento italiano. Pediu leis contra o vício e a frouxidão. 
Colocou um fim aos carnavais e festivais que os florentinos tradicionalmente apreciavam, substituindo-os por festas religiosas, e empregou jovens na rua como uma Gestapo júnior para farejar itens suspeitos. 
Estátua de Savonarola em Ferrara
Estátua de Savonarola em Ferrara

A famosa “Fogueira das Vaidades”, em 1497, tinha jogos, cartas, máscaras de carnaval, espelhos, enfeites, estátuas, livros supostamente indecentes e imagens. O frei também desaprovava especulações financeiras e empresários.
Não surpreendentemente, Savonarola fez muitos inimigos poderosos. Entre eles estava o papa Borgia, Alexandre VI, que tinha boas razões para se sentir desconfortável com as denúncias de luxo da Igreja e de seus líderes e que acabou excomungando o dominicano. 
No Domingo de Ramos de 1498, o convento de São Marcos foi atacado por uma multidão e Savonarola foi preso pelas autoridades de Florença juntamente com dois frades que estavam entre seus seguidores mais ardorosos, frei Silvestro e frei Domenico. 
Todos os três foram torturados antes de condenados como hereges e entregues a dois comissários papais que viajaram diretamente de Roma em 19 de maio. “Teremos uma bela fogueira”, disse o comissário mais velho, “pois trago a condenação comigo”.
Na manhã do dia 23 daquele mês, uma multidão de florentinos se reuniu na Piazza della Signoria, onde um andaime havia sido erguido sobre uma plataforma (uma placa marca o local hoje). Um forca foi armada para para pendurar os três frades. Madeira para queimá-los foi acumulada embaixo.
Algumas pessoas da multidão gritaram xingamentos para Savonarola e seus dois companheiros, que foram deixados em suas túnicas, com os pés descalços e as mãos amarradas, antes de seu cabelo ser raspado, como era costume. Diz-se que um padre perguntou a Savonarola como se sentia sobre o martírio que se aproximava. Ele respondeu: “O Senhor sofreu o mesmo por mim”, e estas foram suas últimas palavras registradas.
Frei Silvestro e frei Domenico foram enforcados primeiro, lenta e dolorosamente, antes de Savonarola subir a escada para ocupar o lugar entre eles. As chamas o engoliram e ele morreu de asfixia por volta das 10h. Ele tinha 45 anos de idade. Alguns dos espectadores explodiram em lágrimas e outros, incluindo crianças, cantaram e dançaram alegremente ao redor da pira, enquanto atiravam pedras contra os cadáveres. O pouco que restou dos três dominicanos foi atirado no rio Arno.
O martírio de Savonarola na Piazza della Signoria, em Florença
O martírio de Savonarola na Piazza della Signoria, em Florença

Mãe, Fernanda Torres, FSP


“Minha mãe, no dia 16 você completa 90 anos.
O seu pai, seu Vitorino, quando chegou à sua idade, deu de apostar uma corrida contra o tempo. “Vou aos cem!”, ele dizia, já surdo, batucando uma música imaginária com os dedos, que era incapaz de escutar.
A paralisia infantil o deixou manco de uma perna, mas ele inventou um jeito próprio de caminhar, acompanhado de um larí, larí... que transformava a passada coxa num trejeito de Chaplin.
Vitorino tinha certeza de que morreria aos 33 anos, idade em que Cristo foi posto na cruz. Não morreu, e eu pude conviver com a sensibilidade de artesão, que você tem dele, com as bochechas que todas nós herdamos e com a delicadeza que nenhuma das mulheres da família tem.
Fernando Torres também era um homem doce. Torturado e doce. Bebia, mas nunca nos ofendeu ou te impediu de ser quem era.
Já o burocrata que te chamou de sórdida, ex-cocainômano que agredia mulher e filho, e diz ter sido curado de um tumor pela graça divina, já esse, pode bem ter se livrado do mal físico. Mas faltou, ao Deus que ele cultua, dar cabo da agressividade e da misoginia do cordeiro grosso. 
Estranhos homens esses, que batem e xingam em nome de Deus.
Quando você completou 70 anos, me disse que havia cumprido o ciclo furioso de peças, novelas e filmes. Não havia nada mais a esperar da vida. Quatro meses depois, foi indicada ao Oscar de melhor atriz, por “Central do Brasil”.
Trabalhar sempre foi a sua sina. Sua alegria, sua mania, seu destino e sua sina.
Agora, com a autobiografia, o que seria um ponto final tornou-se farol, uma luz de integridade em meio ao obscurantismo carola dos adoradores de fuzis.
Eu cresci te vendo beijar outros homens em cena como beijava o meu pai. Isso nunca corrompeu a solidez da nossa família. Mas o prefeito do Rio de Janeiro, tão beato quanto ausente, mandou recolher, na Bienal do Livro, os exemplares de uma história em quadrinhos com um beijo gay.
Num país que mata crianças e nega educação, saúde e saneamento às famílias dessas crianças, tratar um beijo como ameaça é sinal não só de oportunismo político, como também de pequenez moral.
O episódio inspirou sua foto de bruxa diante da fogueira de livros. Sórdida, exclamou o burocrata convertido. A injúria, no entanto, detonou uma onda de respeito e admiração à sua figura. Resposta outra, que não a agressão no mesmo nível, sempre baixo. A solidariedade como antídoto para inocular os Savonarolas.
Teu livro é o testemunho de uma autodidata, neta de imigrantes e filha de um operário com uma dona de casa que, por meio da prática obstinada de um ofício, sobreviveu aos inúmeros reveses sociais e políticos que, volta e meia e sempre, acometem o Brasil.
A morte de Getúlio, a renúncia de Jânio, o AI-5, a campanha frustrada das Diretas-Já, o confisco de Collor, a coalizão corrompida da social-democracia e a ascensão da teocracia armada, os tombos e levantes que nos condenam a começar do zero “ad aeternum”, filtrados pelos olhos de uma Sísifo mambembe.
Quem sabe, quando eu fizer 70 e você passar dos cem, teremos vencido o horror de agora? Horror que promete deixar o legado de um país sem Rádio MEC, sem TBC ou Oficina, sem cinema novo nem velho, sem MPB e rock, sem Arena e sem Asdrúbal, sem Dulcina, Bibi, Dercy e Cacilda, sem Antunes e Nelson.
Terra arrasada. Esse é o horizonte. Sigamos.
O partidarismo, à esquerda e à direita, nunca foi o seu norte. Avessa a dogmatismos, você fez do drama existencial da comédia humana a sua matéria. Penso que foi isso o que te fez uma mulher do presente, não importa a época.
Comemoraremos os seus 90 com uma missa no lugar em que celebramos, todos os anos, a partida do papai. Apesar da profunda devoção cristã, você jamais nos impôs a sua fé. Você jamais nos impôs crença, diploma, sucesso, nada. Você ensinou os seus filhos a serem, na medida do possível, livres.

Nas suas memórias, você narra o último delírio teatral do Fernando, com ele já doente, querendo ensaiar a peça “É...”, de Millôr Fernandes. Na mesa da sala de jantar, você se dispõe a ler com ele, até que meu pai se cala, ao perceber que não há elenco presente.
A cena é puro Beckett e lembra o final de “Seria Cômico se Não Fosse Sério”, em que você, Alice, cuidava dele, do marido, Edgar, vítima de um derrame. Vida e arte sempre se confundiram na nossa casa.
Chorei muito com o seu relato. Espanta, nele, a lucidez afiada de uma mulher de quase um século.
Feliz aniversário, minha mãe. Que o Brasil, tão trágico, bruto e desesperado entenda, com gente como você, o quanto a arte e a criação podem fomentar amor, progresso e civilização.
Evoé, novos artistas.”
Fernanda Torres
Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

Governo decide retomar mineração de urânio e ampliar programa nuclear, OESP

Anne Warth, O Estado de S.Paulo
07 de outubro de 2019 | 04h00

BRASÍLIA - Após cinco anos, o governo pretende retomar a mineração de urânio em território nacional como estratégia para ampliar o programa nuclear brasileiro. O ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, disse ao Estado que esse não é apenas um desejo do governo, mas uma decisão política que será adotada. A expectativa é iniciar os trabalhos na mina do Engenho, em Caetité, na Bahia, até o fim deste ano.
A exploração será feita unicamente pela estatal Indústrias Nucleares do Brasil (INB), mas a ideia do governo, diante das restrições do Orçamento para realizar investimentos, é firmar parcerias com a iniciativa privada para explorar o potencial de urânio em território nacional.
Com apenas um terço do território prospectado, o Brasil tem hoje a sétima maior reserva geológica de urânio do mundo – atrás de Austrália, Casaquistão, Canadá, Rússia, África do Sul e Nigéria. O urânio é matéria-prima para o combustível utilizado em usinas nucleares, e sua exploração é monopólio constitucional da União. Hoje, apenas a estatal INB pode atuar na área.
Mas o governo avalia que é possível firmar parcerias em casos específicos, particularmente quando a presença de urânio é minoritária em uma reserva. É o caso da mina de Santa Quitéria, no Ceará, em que há 90% de fosfato e 10% de urânio. Por isso, a INB formou o consórcio com o Grupo Galvani, que deve começar a operar até o início de 2024, de acordo com o presidente da INB, Carlos Freire (ler entrevista na pág. B3). Para o ministro, esse será o primeiro passo para a formação de outras parcerias.
“Existem algumas alternativas sem necessidade de alteração da Constituição para que essa atividade minerária possa ser feita pela INB e uma outra empresa de capital privado. No que diz respeito ao urânio, a INB seria majoritária. Na exploração, não tem só urânio, pode ter outro mineral e normalmente tem”, afirmou o ministro Albuquerque.
Ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque
O ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque. Foto: Carolina Antunes/PR

Mudança

Para o ministro, porém, é possível avançar. Ele defende a quebra do monopólio da União na exploração de urânio e até a exploração de usinas nucleares pelo setor privado. Para isso, no entanto, seria preciso aprovar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) no Congresso – com apoio de três quintos dos deputados e senadores, em dois turnos de votação em cada casa legislativa.
“Segurança existe. Operamos usinas nucleares há mais de 40 anos. Não existe problema com o setor privado. Qual a diferença do setor privado e do setor estatal? Nenhuma, desde que se tenha condições de controlar e fiscalizar. Essa discussão é coisa do passado e, se for hoje para o Congresso, não vai haver esse tipo de resistência. Essa é a minha opinião pessoal, até pelo convívio que tenho com o Congresso e diversos parlamentares”, disse.
Empresas estrangeiras de países como China, Estados Unidos, França, Japão, Coreia do Sul e Rússia já manifestaram interesse em explorar urânio no País, segundo a secretária especial do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), Martha Seillier. 
Segundo Martha, isso ficou claro em rodadas sobre a retomada das obras de Angra 3 – quando o governo encontrou o setor e apresentou estudos e informações preliminares para testar alternativas com o setor privado.
“Testamos alguns modelos para ver a reação dos investidores potenciais e tentar montar algo mais atrativo. O que tem aparecido nas conversas é o interesse do investidor de não vir só para Angra 3, mas muito mais voltado numa agenda de continuidade do programa nuclear brasileiro, e um interesse em toda a cadeia produtiva, em não estar só na usina, mas também na exploração do urânio”, disse ela.

Usinas

O Brasil tem hoje duas usinas nucleares em operação – Angra 1 e Angra 2. Angra 3, com 67% das obras concluídas, foi paralisada em 2015, quando investigações da Operação Lava Jato descobriram um esquema de desvio de recursos por parte das empreiteiras. Agora, a usina precisa de R$ 16 bilhões para ser concluída e, para isso, o governo também estuda uma parceria com o setor privado. 
“Temos um limitador constitucional em relação à atividade nuclear no Brasil. No caso de Angra 3, não seria um controlador, mas um minoritário. Para ser atrativo para o minoritário, estamos considerando que ele tenha de fato 49% das ações ou um número relevante”, disse.
A ideia, segundo a secretária especial do PPI, é publicar o edital para a escolha de um parceiro privado para Angra 3 no primeiro semestre de 2020 e retomar as obras da usina no segundo semestre do ano que vem. 
Dessa vez, porém, o governo fará restrições no edital e vai exigir empresas com experiência na área – empreiteiras, por exemplo, serão vetadas. “O governo só tem praticamente feito sondagens de mercado com empresas exploradoras de atividade nuclear. Isso já é uma sinalização de que o edital vai exigir esse nível de experiência para participar da parceria”, disse.