terça-feira, 25 de setembro de 2018

1994: Trama internacional em NY garantiu o sucesso do real, FSP

Lançamento da moeda durante a campanha definiu o jogo a favor de FHC, mas Plano Real poderia ter sido inviabilizado pelas ameaças de Lula

Fernando Canzian
SÃO PAULO
Este é o sexto texto da série "Minha Eleição", que todo sábado trará relatos de repórteres sobre a cobertura de eleições presidenciais brasileiras do passado.

Nenhuma eleição pós redemocratização foi tão definidora para o Brasil como a de 1994.
[ x ]
Além de contrapor pela primeira das seis vezes o PSDB e o PT, ela assentou, com o lançamento do Plano Real, as bases para a estabilização da economia que dura até hoje.
Foi ali que nos livramos do risco da hiperinflação e do aumento da desigualdade que o descontrole de preços provoca. Foi também quando o país rachou entre dois projetos, um mais liberal e outro de contornos estatizantes.
Ainda confuso entre essas duas visões, o Brasil tem à frente outro impasse: o risco de insolvência por causa de gastos insustentáveis com Previdência e funcionalismo.
Hoje, no entanto, só depende do país desarmar o problema, reformando a Previdência para que se compre tempo —e espaço no Orçamento— para realizar outras atualizações estruturais.
Em março de 1994, quatro meses antes do lançamento do Plano Real, não tivemos esse luxo: a nova moeda e o futuro dependiam de um grupo de banqueiros a milhares de quilômetros de Brasília, em Nova York, que renegociavam o equivalente a um quarto da dívida externa brasileira.
Mais precisamente, US$ 35 bilhões, dos quais eram credores dezenas de bancos internacionais liderados pelo então chairman do Citibank, William Rhodes.
À época, nem o Fundo Monetário Internacional confiava mais no Brasil por causa de calotes dados em credores nos 11 anos anteriores.
O então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, e sua mulher, Ruth, ao deixarem a loja Alfred Dunhill em Nova York
O então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, e sua mulher, Ruth, ao deixarem a loja Alfred Dunhill em Nova York - Ormuzd Alves - 18.mar.1994/Folhapress
Sem o aval do FMI e com reservas em dólar exíguas, o país teve de se virar sozinho no mercado para adquirir —a um custo maior do que teria com o apoio do Fundo— US$ 2,8 bilhões em títulos do Tesouro dos EUA para dar aos bancos como garantia na negociação.
Como o Plano Real dependeria da chamada "âncora cambial", que manteve o valor da nova moeda próximo a US$ 1 a fim de conter a inflação, era imperativo ao Brasil estar em paz com seus credores para garantir acesso e fluxo de financiamentos em dólares e a confiança dos investidores.
Aos 27 anos, fui enviado a Nova York pela Folha para uma temporada como correspondente que começaria antecipada por conta dessas negociações; e pela ida à cidade do então pré-candidato à presidente da República Fernando Henrique Cardoso, à época ministro da Fazenda do governo Itamar Franco (1992-1994).
No dia 18 de março de 1994, um orgulhoso FHC anunciaria no saguão de seu hotel em Manhattan que o chamado Comitê Assessor dos Bancos Credores, liderado por Rhodes, assinaria o acordo para a dívida em 15 de abril.
Com o Plano Real em preparação desde fevereiro, FHC capitalizou o fato afirmando que "o fim" do problema da dívida tornaria "mais forte qualquer candidatura com um programa econômico do tipo que nós propusemos".
Semanas depois, na assinatura do acordo, Rhodes citaria a Bíblia para justificar "a boa vontade" dos bancos: "A Bíblia nos diz que há um momento para viver e outro para morrer, e nós achamos que chegou o momento de acertar as coisas com o Brasil".
Tudo perfeito, não fosse um detalhe: 15 dias depois do acordo, Lula aparecia como favorito na corrida presidencial.
Com 42% das intenções de voto no Datafolha, ante 16% de Fernando Henrique, o petista era um candidato radical.
Não só se posicionava contra as bases do que seria o Plano Real como, no início de maio de 1994, passou a dizer que, se eleito, reveria o acordo que acabava de ser assinado com os bancos.
Nesse contexto, Lula decidiu ir a Nova York.
A viagem visava explicar a empresários e banqueiros sua visão de Brasil e projeto de governo, favorável à reserva de mercado em áreas como petróleo e telecomunicações.
Mas tudo isso passava, em primeiro lugar, por "rediscutir o que foi acertado sobre a dívida, nesse acordo feito às pressas", dizia Lula.
Enquanto o petista preparava a viagem, maio registraria fuga abrupta de investidores internacionais da Bolsa de Valores de São Paulo, onde o movimento financeiro depois esvaziaria à metade em relação aos primeiros meses do ano.
O fato não abalou Lula, e ele chegou a Nova York em 8 de maio dizendo que a especulação no mercado "não é boa nem com o capital estrangeiro nem com o brasileiro".
O então candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT) discursa para empresários em Nova York
O então candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT) discursa para empresários em Nova York - Hélcio Nagamine - 13.mai.1994/Folhapress
Recebido por cerca de 60 pessoas no saguão do aeroporto, entre elas índios com cocares, Lula passou rápido pelo Hotel Delmonico, na Park Avenue, e foi almoçar com outras 20 pessoas na centenária Peter Luger Steak House, no Brooklin.
Apesar da conta de US$ 1.400, paga pela embaixada brasileira, Lula disse à saída que seu filé "não estava tão bom como o do 'Bar das Putas' em São Paulo" --referência antiga a frequentadoras de outra época do Bisteca D´Ouro, na avenida da Consolação.
No dia seguinte, o petista participaria de encontro com cerca de 650 empresários, investidores e curiosos em um hotel em Nova York para expor suas ideias sobre o Brasil.
Enquanto era questionado sobre se planejava fechar a Bolsa, Lula desconversava dizendo que sua preocupação era com os 8 milhões de desempregados no país.
"Eles precisam de trabalho e de investimentos produtivos no lugar de especulativos."
Na sequência, atrasado para uma visita ao The New York Times e preso no trânsito, Lula e sua comitiva caminharam como doidos pelas ruas de Manhattan para chegar à sede do jornal. À noite, ele ainda iria a Boston para falar a alunos da Universidade de Harvard.
Diante de quase mil pessoas em uma sala abarrotada, Lula deu trabalho ao tradutor.
Lula e sua mulher, Marisa, saem do restaurante Peter Luger Steak House, no bairro do Brooklin, em Nova York
Lula e sua mulher, Marisa, saem do restaurante Peter Luger Steak House, no bairro do Brooklin, em Nova York - Helcio Nagamine - 8.mai.1994/Folhapress
Sentia-se como um "lambari num tanque de tubarões" ("a little fish in a shark´s tank") ao falar na prestigiosa escola a respeito de suas andanças pelo Brasil e sobre como gostaria de ver os brasileiros bem mais ricos.
"Só quando deixei de ganhar US$ 600 como metalúrgico e passei a ganhar US$ 5.000 como deputado é que percebi como o dinheiro é importante para a democracia. Os pobres precisam entender isso para exigir mais."
Mas o ponto alto —e tenso— da visita aos Estados Unidos se daria na volta do petista a Nova York e antes de um outro encontro com empresários e banqueiros em um hotel de Manhattan.
Mal entrou, Lula foi detectado a partir do outro lado da sala pelo responsável pela recente renegociação da dívida externa que o petista agora ameaçava implodir.
Sem cerimônia, William Rhodes atravessou rapidamente o salão e foi para cima de Lula. Direto, o executivo do Citibank encostou as costas da mão direita no peito do petista e disparou, em espanhol: "O senhor vai honrar o acordo?". Desconcertado, o petista respondeu: "Cabe ao presidente honrá-lo".
FHC faria isso depois de virar o jogo da eleição com o Plano Real e acabar eleito no primeiro turno em 1994, com 54,3% dos votos válidos —o petista terminou com 27,1%.
O então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, durante encontro com o diretor-geral do Fundo Monetário Internacional, Michel Camdessus
O então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, durante encontro com o diretor-geral do Fundo Monetário Internacional, Michel Camdessus - Ormuzd Alves - 16.mar.1994/Folhapress
Oito anos depois, em 2002, Lula pagaria caro por suas posições, com o dólar a R$ 4 (cerca de R$ 6,30 hoje) e uma enorme confusão financeira às vésperas de sua vitória sobre o tucano José Serra.
A fim de vencer e acalmar os mercados, Lula não só divulgou a Carta ao Povo Brasileiro como, eleito, cumpriu à risca acordo firmado em agosto de 2002 entre Brasil e FMI —então arqui-inimigo dos petistas— para um empréstimo de US$ 30 bilhões que financiaria nosso passivo externo.
Na essência, o Fundo demandava do Brasil o trivial: contas superavitárias, inflação na meta e o câmbio flutuante, o chamado "tripé macroeconômico".
Foram necessárias mudanças para ajustar as contas, como a reforma da Previdência de 2003, que dificultou a saída do setor público com vencimentos inalterados e acabou com as aposentadorias integrais para novos servidores.
Mas foi isso, e a manutenção do tripé gestado no FMI o que, ironicamente, ajudou o governo Lula a terminar, em 2010, extremamente popular e com o PIB em alta de 7,5%, a maior taxa em 24 anos.
O país também pagaria toda a sua dívida externa e acumularia reservas que hoje superam os US$ 380 bilhões.

A ELEIÇÃO DE 1994

Data
3 de outubro de 1994
Candidatos a presidente
Fernando Henrique Cardoso (PSDB): 54,3%
Lula (PT): 27,1%
Enéas Carneiro (PRONA): 7,4%
Leonel Brizola (PDT): 3,2%
Orestes Quércia (PMDB): 4,4%
Slogan do vencedor
"Tá na mão, Brasil"
População à época
153,72 milhões
Crescimento do PIB
5,9%
Inflação do ano
916%
Urbanização
78,16%
Expectativa de vida
68,11 anos
Músicas
"Malandragem" (Cássia Eller)
"Assim Caminha a Humanidade" (Lulu Santos)
Escola vencedora do Carnaval do Rio
Imperatriz, com o enredo "Catarina de Médicis na corte dos Tupinambôs e dos Tabajéres"
Novelas no ar
"A Viagem", às 19h
"Pátria Minha", às 20h
No cinema
"Forrest Gump", sucesso protagonizado por Tom Hanks, estreou nas salas de São Paulo no dia da eleição
Erramos: o texto foi alterado
O nome do hotel Delmonico foi incorretamente grafado como Delmonicos

Eleições, trânsito e vida, FSP

Com a campanha presidencial, saltam aos olhos os desafios do próximo governo. Além do desemprego e de outras questões sociais, a nova gestão não poderá deixar de lado um tema de consequências dramáticas para o Brasil: as mortes no trânsito.

Segundo o dado mais recente do Datasus (2016), mais de 37 mil pessoas morrem por ano em acidentes de trânsito -- diz-se "acidente", mas o fato é que a grande maioria é provocada por imprudência ou imperícia. São mais de cem vidas perdidas por dia; 639 mil brasileiros mortos, de 2000 a 2016.

Além das vidas ceifadas, a violência viária provoca impactos financeiros que afetam famílias e o desenvolvimento do país. Estudo da Escola Nacional de Seguros apontou perdas de R$ 146 bilhões em 2016 na economia com a violência no trânsito, o equivalente a 2,3% do Produto Interno Bruto (PIB). É mais do que o montante federal investido em educação no mesmo ano: R$ 123,6 bilhões, segundo dados da Secretaria do Tesouro Nacional.

Apesar de avanços em alguns Estados, os números nacionais demonstram que o combate aos "acidentes" não tem sido prioridade federal.

Mas isso pode mudar. De início, o novo governo deve estar atento a instrumentos como o Fundo Nacional de Segurança e Educação de Trânsito (Funset).

Destinado, por lei, à segurança e à educação para o trânsito, o fundo não implicará novas despesas, pois é abastecido, basicamente, por multas e o seguro DPVAT. 

Ocorre que, conforme levantamento da Confederação Nacional do Transporte (CNT), dos R$ 5,42 bilhões autorizados para ações de 2013 a 2017, foram usados apenas R$ 964,29 milhões (17,78%).

Este é um sinal de que o novo governo deve considerar, seriamente, a transformação do Denatran (Departamento Nacional de Trânsito) em Secretaria Nacional.

Vinculado diretamente à Presidência, o órgão contaria com o status e a autonomia necessários para formular e implementar políticas públicas de preservação de vidas e mobilizar Detrans e demais órgãos de trânsito do país.

E o momento nunca foi tão propício: no início do ano, houve um passo importante, com a criação do Plano Nacional de Redução de Mortes e Lesões no Trânsito (Pnatrans), visando reduzir pela metade as mortes até 2028.

A lei que criou o Pnatrans é muito bem-vinda. Países como Dinamarca, Espanha, Suécia, Austrália e Japão reduziram seus índices justamente a partir de projetos nacionais, com metas e ações permanentes.

A introdução de uma estratégia nacional cria o ambiente necessário para a formulação de um pacto pela preservação de vidas no trânsito que englobe poder público, sociedade civil e iniciativa privada. Isso já foi feito com sucesso no Estado de São Paulo, com o Movimento Paulista de Segurança no Trânsito. Desde 2015, mais de 500 vidas foram preservadas no trânsito paulista. 

Há ainda iniciativas que podem trazer avanços importantes: a inserção do tema trânsito no currículo do ensino básico e o incremento de medidas para o cumprimento efetivo da lei, já que muitos motoristas persistem no comportamento ilegal. 

O cenário nos mostra que a violência no trânsito cobra do país um altíssimo preço, com vidas perdidas, vítimas com graves lesões de longo prazo, alta pressão sobre os serviços de saúde e comprometimento econômico. Diante dos instrumentos já disponíveis, vontade política é essencial para realizar mudanças nesse triste quadro e, para além dos aspectos financeiros, se for possível salvar apenas uma vida, todo o esforço já terá valido a pena.
Maxwell Borges de Moura Vieira
Advogado e diretor-presidente do Detran-SP (Departamento Estadual de Trânsito de São Paulo)

Parceria pela humanização, Alexandre Baldy, FSP

Não há nada que afete tanto a nossa vida como o trânsito. No Brasil, os acidentes ceifam vidas, deixam sequelas, destroem lares, desconstroem sonhos. Matam perto de 45 mil pessoas ao ano --imaginem um avião de grande porte caindo todos os dias-- e também resultam em mais de 300 mil com lesões graves.

O trânsito que mata também tem um custo social sem precedentes: em rodovias, os acidentes custam à sociedade cerca de R$ 40 bilhões por ano; nas áreas urbanas, cerca de R$ 10 bilhões. Trata-se de uma estatística preocupante, embora estejamos falando do quinto país do mundo em números absolutos, com uma das maiores frotas de veículos do planeta, estimada em quase 100 milhões de veículos. Temos, enfim, imensa parcela de responsabilidade nessa triste estatística cotidiana.

Os fatores que corroboram a direção perigosa são muitos: o excesso de velocidade nas vias, a mistura de álcool e direção, o não uso dos dispositivos de segurança, como o cinto de segurança, a cadeirinha para as crianças e o capacete e, principalmente, o uso do celular ao volante.

A chamada Lei Seca é um exemplo de instrumento legal que dá celeridade às ações de segurança no trânsito. Motoristas homens, jovens e sob influência de bebidas alcoólicas são mais propensos a estarem envolvidos em acidentes relacionados à velocidade, colocando em constante risco a própria vida e vidas alheias. Estudos mostram que mais de 90% dos acidentes se dão por falha humana.

A legislação brasileira de trânsito é uma das mais avançadas. O recente lançamento da edição comemorativa dos 20 anos do CTB (Código de Trânsito Brasileiro) nos coloca na vanguarda.

Precisamos, agora, focar não apenas nas infrações, mas, sobretudo, na educação e na conscientização para o trânsito, algo fundamental e que deve começar cedo, na grade curricular das escolas, na comunidade e na família, o esteio da formação cidadã.

É para isso que nós, no âmbito do Ministério das Cidades, por meio do Denatran (Departamento Nacional de Trânsito), em parceira com os diversos atores que compõem a nossa estrutura viária, estamos trabalhando duro. Para chegar à meta de zero morte no trânsito!

Vislumbrando inserir o Brasil num seleto rol de nações realmente preocupadas com essa mazela social, nosso compromisso, juntamente com outros 152 países, é adotar e colocar em prática um conjunto de medidas que visam de fato à implementação das políticas públicas de prevenção de acidentes de trânsito.

A Organização das Nações Unidas (ONU) estabeleceu o período de 2011 a 2020 como a "Década de Ações para Segurança no Trânsito". O documento recomenda aos países-membros a elaboração de um plano diretor para guiar as ações nessa área, tendo como meta diminuir pela metade os acidentes com vítimas fatais e lesionados em todo o mundo. Para isso, criamos o Plano Nacional de Redução de Mortes e Lesões no Trânsito (Pnatrans) que atenderá a essas exigências.

O que se pretende é fazer com que cada cidadão se sinta parte do trânsito, seja um multiplicador, compromissado com as boas práticas.

Acreditamos que seja somente por meio de um amplo esforço que vamos promover um trânsito seguro, onde motoristas, passageiros, ciclistas e pedestres, enfim, todos sejam protagonistas de ações propositivas, salvando vidas, permitindo diariamente que mais e mais brasileiros e brasileiras cheguem às suas casas, ao fim do dia, com segurança. Ou nos unimos em torno da preservação de vidas agora ou continuaremos a lamentar perdas e mortes.
Alexandre Baldy
Ministro das Cidades e deputado federal (PP-GO)