sexta-feira, 14 de julho de 2017

Quando as luzes se apagam, OESP


Se Rodrigo Maia for presidente, ele terá chegado ao cargo com apenas 53 mil votos

*Fernando Gabeira, O Estado de S.Paulo
14 Julho 2017 | 03h09
Vivemos momentos desoladores. O apagão do Senado é um fato simbólico que nos provoca a pensar sobre como sobreviver no escuro.
Nos apagões em estádios de futebol as luzes nunca voltam de uma vez só, o campo vai se iluminando aos poucos. Creio que as luzes só voltarão totalmente no Congresso depois das eleições de 2018.
Daqui até lá teremos de nos acostumar com a penumbra. A realidade histórica obrigou-nos a derrubar presidentes com uma frequência maior. A repetição nos obriga também a um espetáculo constrangedor, os deputados se sucedendo na tribuna: voto sim pela família, pelos netos, pelo marido, por sua cidade natal e o pelo coronel Brilhante Ustra.
Estamos no caminho dessa desse velho enredo. Sempre se diz no final que a sociedade se surpreendeu com o nível de seu Congresso. A chance de evitar as surpresas que se repetem, apesar de tudo, está concentrada na capacidade social de mudar o quadro em 2018.
Outro dia alguém me perguntou o que esperava do eventual sucessor de Temer nesse período de transição. Nada, respondi distraidamente. Aos poucos fui obrigado a precisar esse nada. Basta que toque a máquina do Estado, num momento em que muitos setores ameaçam entrar em colapso.
E basta que o Congresso tenha aprovado a reforma mais negociável, que é a do trabalho. Na política, que ao menos reduza o número de partidos.
No quesito tocar a máquina será preciso considerar emergencial a crise da segurança pública. Talvez por uma visão limitada e pessoal eu destaque esse tema. Vivo no Rio de Janeiro e viajo semanalmente pelas estradas do Brasil. O Rio vive um clima trágico: crianças mortas, balas perdidas, tiroteios. E as estradas agora estão menos policiadas, pois faltam recursos à Polícia Federal.
Não sou favorável à tese do Estado mínimo, penso como John Gray que o Estado tem vários tamanhos possíveis, dependendo das circunstâncias históricas.
Se Rodrigo Maia for presidente, terá chegado ao cargo com 53 mil votos. Em algumas configurações partidárias esse número não chega a ser suficiente para eleger um deputado. O ideal, portanto, seria tocar as obrigações cotidianas, sem muitas marolas.
O Congresso ficaria na penumbra, o que não significa opacidade, porque a transparência é uma conquista. Seria apenas uma forma de não atrapalhar mais a recuperação econômica, evitar os sobressaltos dedicando-se a projetos que não tem mais legitimidade para aprovar
Isso talvez possa liberar alguma energia social. Perdemos muito tempo ouvindo discursos, dispersamo-nos muito com as nuvens da política.
Toda semana o PSDB se reúne para decidir se sai ou não do governo. Como dizia Cazuza, vivemos num museu de grandes novidades.
As próprias discussões sobre o destino do Temer, embora tratando de crimes diferentes dos atribuídos a Dilma, têm a mesma monotonia jurídica. O relator Sergio Zveiter afirmou que os indícios eram suficientes para autorizar que fossem investigados. Disse que, nesta fase, não se trata de afirmar que in dubio pro reo, algo que se aplica ao julgamento. E concluiu que, nesse caso e etapa, a dúvida é pró-sociedade.
O advogado de Temer questionou a tese em abstrato, afirmando o direito do indivíduo. Algo louvável. No entanto, a sociedade é feita de indivíduos que ocupam lugares diferentes, arquitetos, cozinheiros, encanadores e um presidente da República. No caso de denúncia contra o presidente da República, a sociedade tem o direito de conhecer as suas consequências.
O enigma de todo o processo é a própria sociedade. Embora atenta, não parece ter ânimo par ir às ruas. No “fora Dilma” havia emoção, confrontos.
A oposição a Temer revela-se mais nas pesquisas de opinião do que nos movimentos de rua. Tornou-se algo do cotidiano, inspirou até a marca de uma cerveja artesanal Fora Temer. Como toda bebida algo alcoólica, imagino que sugira também moderação para evitar uma ressaca brava.
A liquidação do grupo de Temer, amigos presos, assessores presos, é mais uma etapa da derrocada de um gigantesco esquema de corrupção. O que restava do grupo dominante vai deixando a cena e em seu lugar um apagado Congresso deve tocar o País num regime parlamentarista não escolhido como resultado de um de debate sobre o rumo da política. Um parlamentarismo acidental, que deveria ter o cuidado de um zelador noturno que trabalha apagando as luzes lentamente.
Até que amanheça. Com sol ou nublado, radiante ou cinzento, mas amanheça. Foi muito longo o período de decomposição do processo político-partidário, ele tende a anestesiar, como os tiroteios do Rio e a sucessão de mortes de crianças alvejadas em casa, na escola, no carro e até na barriga da mãe.
As eleições em período de desencanto político costumam marcar novas etapas. Na Dinamarca o desencanto foi devastador para os partidos dominantes, na França surgiu como um movimento por fora deles.
Não sei o que acontecerá aqui, mas duvido que continuaremos nessa sequência de quedas de presidentes e deputados votando pela mãe, pelos netos. Presidentes e deputados serão possivelmente melhores. Com um nível de informação como nunca teve antes sobre o universo político, a sociedade deve se manifestar.
Ainda aí, nas eleições, poderá surgir de novo a questão: vale a pena dedicar alguma energia a essa mudança? A resposta negativa pode perpetuar esse horror, em nome da mãe, dos netos, da cidade natal e do coronel Brilhante Ustra.
Já se discute muito no Rio se a cidade não se tornou impraticável. Muitos brasileiros se deslocam para Portugal, que exerce grande fascínio. Mas 517 anos depois na dá para voltar todo mundo para Portugal e encobrir o Brasil. A saída só se encontra por aqui. Mesmo depois de resolvida a escassez de passaportes.
*Jornalista

Bárbara Gancia Lucidez

Muita lucidez no texto da Bárbara Gancia:

A Operação Lava-Jato é amplamente positiva em vários aspectos: ela demarca uma nova fronteira na luta contra a corrupção; desnuda as maquinações entre o poder e o capital para se locupletar e, pela primeira vez, ameaça as máfias instaladas no poder.

Porém, isso não exclui a existência de um lado oculto da força, além daquele que hoje causa insônia no coronelato da antiga composto por Sarney, Renan, Jader, Aécio e dos Jucás da vida.

Explico: os EUA defendem seus interesses comerciais com unhas e dentes. E querem botar uma certa ordem no galinheiro para poder fazer negócios globalmente sem incorrer na quebra da lei norte-americana.

Lula e o seu PT, que tentavam formar bloco com países que não mantém boas relações com os EUA, vão diretamente de encontro aos interesses norte-americanos.

Quando a Odebrecht e congêneres resolveram competir nos mesmos importantes mercados em que os EUA atuam (a Odebrecht até ambicionou produzir armamentos, lembra?), os caras saíram em retaliação.

Dizer que Lula fez mal ou cometeu crime em utilizar o dinheiro do banco de fomento do Estado para conferir maior competitividade a grupos brasileiros, para que pudessem atuar de igual para igual no exterior, é preconceito de quem carece de horizonte. De gente que não quer mudar nada neste país ou que tem medo de perder a boquinha na pátria da improdutividade.

A aposta em Eike Batista pode ter se revelado um gigantesco furo n´água, mas não parece erro, muito ao contrário, querer equipar o país para atuar no mundo globalizado -em que a onipotente China já tomou uma larga dianteira.  

Pois que ninguém se iluda de que os norte-americanos acharam graça no grupo J&F ter aportado lá na terra deles, promovido um rapa nos principais frigoríficos americanos para se tornar o maior exportador de carnes processadas do mundo.

E eu sou tomada por riso incontido quando penso na preocupação dos americanos quanto à suposta interferência russa nas eleições deles. Como se os Estados Unidos não fizessem isso sistematicamente em tudo que é lugar em que possuem interesses...

Nesta equação, como poderíamos esquecer das escutas que as agências de inteligência dos EUA aplicaram em Dilma e na Merkel, né mesmo?

Agora junte tudo isso a outra constatação, para que a gente possa voltar e amarrar as ideias expostas do início ao fim deste texto:

Vira e mexe, a gente toma conhecimento de que agentes federais e das Forças Armadas, além de juízes (Barbosa e Moro sabidamente) e até procuradores, receberam convite para ministrar palestras e fazer cursos com bolsa integral em órgãos governamentais e centros de estudo nos EUA. As bolsas, invariavelmente, são patrocinadas pelo Departamento de Estado, agências de inteligência ou por institutos como os notórios Millenium e Catho.

Nos EUA, esses brasileiros aprendem métodos sofisticados e passam a atuar em consonância com organizações de escopo internacional que defendem a cartilha norte-americana.

É possível enxergar vantagem nos nossos servidores públicos receberem cursos de especialização e formação em centros de excelência no exterior. Sem dúvida.

Mas isto também significa estarmos à mercê de métodos que atentam contra a soberania nacional.

No dia de hoje, o ex-presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da  Silva, foi condenado sem provas minimamente substanciadas a 9 anos de prisão por um juiz de primeira instância que meteu os pés pelas mãos em sua sentença e atolou na lama na explicação pela qual a prisão do condenado não seria decretada junto com a sentença.

Junte a estapafúrdia sentença dada a Lula -e aos 19 anos sem ocupar cargos públicos- o power point dos procuradores curitibanos, Moe, Larry e Curly, e à forma como se deu o impeachment de Dilma e a aliviada dada a Geddel e Aécio e, depois, diga-me se não existe uma força estranha para explicar muito do surrealismo que vem ocorrendo no país.

Por sinal, a quantas anda a investigação contra o ex-ministro muy amigo da Chevron e sua filha Verônica?

quinta-feira, 13 de julho de 2017

Thoreau aos 200 - JOÃO PEREIRA COUTINHO, FSP


FOLHA DE SP - 11/07
Quem lê Henry David Thoreau? Passam amanhã 200 anos do seu nascimento. E os artigos da efeméride não são entusiastas. Thoreau parece "irrelevante", "anedótico", "adolescente". Para voltar ao início: quem lê Thoreau, hoje?

Resposta: eu. Poderia argumentar que a minha costela anarquista é a melhor da minha anatomia política –e uma fonte de equívocos para quem não entende direito o meu "conservadorismo".

Mas devo a Thoreau essa costela. Lembro-me de ler "Walden", pela primeira vez, em plena adolescência. Alguns dirão que "Walden" é, precisamente, um livro adolescente escrito para adolescentes. Ali temos o autor, na primeira pessoa do singular, a relatar dois anos e dois meses de vida no bosque. Afastado da "civilização", enfim, como um Rousseau americano.

A visão é superficial e ignora, pelo menos, duas coisas. A primeira é a beleza da prosa. Como são belas as manhãs em Thoreau –"a manhã traz de volta as eras heroicas" etc., cito de cor– e como são certeiras as suas observações mundanas. "Todos nos rimos das modas antigas", escreve ele, "e todos seguimos religiosamente as modas novas" (também cito de cor). É frase que fica gravada para sempre.

Por causa dele, aprendi a rir mais depressa das modas novas do que das antigas, o que me impediu de as seguir com um entusiasmo –agora, sim– adolescente. Falo de modas ideológicas ou indumentárias, tanto faz: o último grito não passa de um grito.

E também por causa dele, confissão pessoal, cheguei aos 41 sem nunca ter usado relógio. Somos escravos do tempo mas não precisamos exibir as correntes.

Mas leituras superficiais de Thoreau ignoram outro ponto: a escolha de viver junto ao lago Walden expressa um desejo nobre que define toda a sua obra. Qual? O desejo de ser deixado em paz.

Bem sei que, nas sociedades infantilizadas em que vivemos, exigimos da autoridade central uma companhia intrusiva. Não queremos o Estado nas suas funções básicas; exigimos um Estado máximo até para as coisas mínimas.

Na sua "A Desobediência Civil", o programa das festas é diferente para Thoreau: "o melhor governo é o que menos governa", diz ele, logo de início, na impossibilidade de ter governo nenhum.

O texto não se limita a uma condenação da escravidão e da guerra, promovida por um Estado imoral. Thoreau vai mais longe –e ocupa-se de questões pré-políticas que nunca verdadeiramente nos abandonam. Será que o Estado substitui a consciência individual? Ou esta pertence apenas aos homens, o que logicamente exclui um Estado moralista que determina como devemos viver ou morrer?

Cem anos antes das grandes carnificinas do século 20, Thoreau vislumbrou as consequências trágicas dessa transferência de responsabilidade moral do indivíduo para o Estado.

A primeira consequência é a atribuição de um poder abusivo a homens limitados e corrompíveis. A segunda é a transformação de uma sociedade de homens livres, moralmente livres, em uma organização de autômatos que se limitam a seguir ordens vindas de cima.

Quando escutamos as desculpas de Eichmann em Jerusalém, é impossível não lembrar as manhãs gloriosas de Thoreau.

O desejo de sermos deixados em paz é também o desejo de protegermos o nosso caráter.

Discórdias sobre o meu amigo? Várias. Não tenho da "civilização" a visão dantesca que ele cultiva. Digo mais: Thoreau só escreve como escreve porque ele é, acima de tudo, um homem civilizado.

Mas o essencial não mora aqui. Gosto de ler Thoreau nos momentos confusos, só para lembrar verdades límpidas como as águas do lago Walden.

A vida é minha. O tempo é escasso. As modas de hoje são gargalhadas futuras. Por vezes, a multidão que interessa é a multidão de um único homem. O poder político é necessário, mas não deixa de ser um mal necessário. E não assiste a nenhum político, a nenhum governo, a nenhum Estado, a condução da minha alma.

No bicentenário do nascimento, Thoreau simboliza a coragem da liberdade. Toda gente tem a palavra "liberdade" na boca. Mas raros são aqueles que possuem a coragem suficiente para a viver. Um adolescente? Engraçado. Não conheço autor mais exigente, mais indispensável –e mais adulto.