sábado, 25 de março de 2017

Ressentimento e medo levam aos extremos nas escolhas políticas, FSP- (definitvo)Ilustríssima








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RESUMO O ensaísta indiano Pankaj Mishra sustenta que, embora o ódio ao diferente já tenha movido a política em outros momentos da história, eventos recentes revelam uma escalada da raiva nunca vista antes. Para ele, vários sinais indicavam que a violência se misturaria com a ascensão de novos demagogos, como Trump.
Kyle Grillot - 4.fev.2017/AFP
Apoiadores de Trump se manifestam, no aeroporto de Los Angeles, a favor do decreto que proibia a entrada nos EUA de cidadãos de sete países
Apoiadores de Trump se manifestam, no aeroporto de Los Angeles, a favor do decreto que proibia a entrada nos EUA de cidadãos de sete países
Para o ensaísta indiano Pankaj Mishra, 47, o mundo vivia um sonho desde a queda do Muro de Berlim e acordou de supetão.
Em artigos e no livro "Age of Anger - A History of the Present" [Farrar, Strauss and Giroux, 416 págs., R$ 90,25; R$ 40,81 em e-book] (era da raiva, uma história do presente), ele repassa a trajetória da humanidade para argumentar que até houve outros momentos em que sobressaíam o ressentimento extremado e o ódio ao outro. Nunca, porém, na escala atual.
Membro da Sociedade Real de Literatura (Reino Unido) e colaborador dos jornais "The New York Times" (EUA) e "The Guardian" (Inglaterra), Mishra crê que parte da intelectualidade liberal se equivocou ao supor que o fim da Guerra Fria daria lugar a uma era de prosperidade econômica acompanhada de harmonia e tolerância globais.
Segundo Mishra, alguns eventos recentes ilustram a reação de parte da população mundial que ficou de fora do processo de globalização econômica e de avanços materiais: o "brexit", a eleição de Donald Trump nos EUA e a vitória do "não" no referendo sobre o acordo de paz na Colômbia.
Ele afirma que essa reação tomou formas que vão do nacionalismo radical ao terrorismo e que a escalada só tende a piorar. "Não há registro, em outros momentos da história, de que situações assim se acalmem por si", diz.
Além disso, o ressentimento presente é amplificado pelas mídias sociais, que potencializam o medo, passando a sensação de que "qualquer coisa pode acontecer a qualquer hora, em qualquer lugar e a qualquer pessoa".
Mishra falou à Folha, de Londres, por telefone.
*
Folha - O sr. diz que, depois da queda do Muro de Berlim, formou-se um consenso de que viveríamos em sociedades neoliberais, harmônicas e tolerantes. Mas já havia evidências de que nem tudo ia bem?
Pankaj Mishra - Sim. Uma das razões pelas quais nos sentimos hoje perplexos com o que está acontecendo se deve ao fato de que, até pouco tempo atrás, sentíamos que estávamos vivendo um sonho. Só que agora acordamos.
Acordamos e nos demos conta de que a história não acabou naquele momento, como muitos quiseram acreditar e alguns chegaram a afirmar [Francis Fukuyama, num ensaio de 1989 e num livro de 1992, sustentou que a evolução política teria como ponto de chegada a democracia ocidental liberal].
A história sempre esteve acontecendo; uma história de conflito e de violência, em que a demagogia e o nacionalismo de direita vieram evoluindo. Só que isso era jogado para baixo do tapete.
Tivemos guerras de limpeza étnica nos Balcãs –no coração da Europa–, genocídio na África, guerras tribais e a dissolução do Afeganistão. A história esteve ocorrendo como nunca.
Effigie/Leemage
O ensaísta Pankaj Mishra
O ensaísta Pankaj Mishra
No livro, cito o episódio de terrorismo perpetrado por Timothy McVeigh, em Oklahoma, em 1995, em que 168 pessoas foram mortas. Entendo isso como uma dica de algo incipiente do que se vê hoje, a explosão da raiva política e da teoria da conspiração.
Havia vários sinais de que as coisas ficariam muito piores para muita gente que não se sentia dentro desse sistema político ideal que alguns consideravam ter sido alcançado. E esses sinais mostravam que a violência se misturaria com a ascensão de novos demagogos.
No livro, o sr. compara esse sentimento de perplexidade que vivemos hoje com o que a humanidade atravessou na passagem do século 19 para o 20. Por quê?
Há diferenças de contexto, mas uma coisa se mantém. A ideia de que, se um líder surge, promete coisas e depois não as entrega, isso gera uma reação violenta.
Foi o que aconteceu no fim do século 19, quando a economia global se expandiu e os países começaram a se industrializar. As promessas eram de prosperidade coletiva, mas o fato é que as pessoas perderam seus antigos empregos.
O antissemitismo se aguçou e encontrou território propício para se disseminar devido à raiva das pessoas, do sentimento de terem sido deixadas para trás, de terem sido muito condescendentes com as elites liberais até que se viram diante da necessidade de colocar a culpa em alguém.
Esse alvo, naquela época, foram os judeus. Hoje, são os muçulmanos e os imigrantes.
Essa patologia vai e vem ao longo do tempo. Agora voltou com força, num momento em que vivemos uma crise econômica, em que moedas perdem valor, economias diminuem seu ritmo de crescimento, empregos desaparecem e o mundo do trabalho se transforma.
Nesse cenário, muita gente começou a pensar que só um número pequeno de pessoas poderá sobreviver nesse novo universo do trabalho, que esse grupo já está monopolizando as melhores oportunidades e que não irá compartilhá-las. Daí vem a raiva.
Isso ocorre de modo mais pronunciado em alguns lugares?
Sim, sinto que na América Latina, por exemplo, isso começou antes do que na Ásia e na África. Obviamente tenho visto isso também nos EUA e na Europa.
Como um mesmo fenômeno pode ocorrer ao mesmo tempo em vários lugares? O sr. relaciona, por exemplo, o "brexit", a eleição de Trump e a vitória do "não" na Colômbia.
Sim, o processo na Colômbia é parte disso. Não dá para confinar esse fenômeno a alguns países. De um modo geral, as eleições mais recentes mostraram pessoas fazendo escolhas políticas terríveis, que são emotivas e nascem do ódio.
Esse processo é global porque hoje habitamos um mesmo universo de ideias, ideologias e medos. Hoje isso tudo é mais compartilhado culturalmente do que antes. No passado, os países não viviam todos no mesmo mundo; hoje vivemos o mesmo presente.
Chegamos a um novo nível da globalização em que estamos vinculados não só econômica mas também emocionalmente, e essas emoções se traduzem em escolhas políticas subjetivas e imprevisíveis.
O sr. recebeu críticas dos que creem que, apesar da aparência de desorientação política geral, este é um mundo melhor que o do passado.
Este é um mundo melhor do ponto de vista material e em vários outros aspectos. Afinal, muitos direitos foram adquiridos, ainda que não por todos.
Mas também existem muitos erros nessa afirmação. O primeiro erro é achar que esse progresso material que vivenciamos é irreversível e inevitável. É possível que uma grande guerra ou uma grande reação de outra natureza interrompa esse processo subitamente.
Outro erro é acreditar que a satisfação das pessoas com suas vidas possa ser medida a partir dos avanços que a humanidade alcançou do ponto de vista material.
O liberalismo crê que há uma ligação direta entre o crescimento do PIB e a melhoria da qualidade de vida das pessoas, mas há outros fatores que contam para a satisfação de cada um.
Você pode ter mais dinheiro, mas o que acontece se viver numa cidade que é mal administrada? Onde a inflação devora seu salário, onde o preço das propriedades é alto, onde você tem um emprego que não lhe permite ter acesso aos benefícios que o aumento do PIB promove no país de um modo geral.
Você estará vivendo num mundo melhor, mas não há garantias de que sua qualidade de vida também será melhor. E pode ocorrer o contrário; você pode ter a sensação de que a vida, em muitos aspectos, é pior do que a dos seus antepassados imediatos.
Por isso é fácil cair no discurso de um demagogo que prometa a restauração de um passado que se considera brilhante –como o "vamos fazer a América grande de novo", de Trump.
Discorda de seus críticos, então?
Creio que os liberais tradicionais, cuja boca na imprensa são publicações como "The Economist" e "Financial Times" [ambas do Reino Unido], cometeram erros ao pedir reformas drásticas em partes do mundo seguindo o manual liberal, sem considerar aspectos locais.
Veja o que aconteceu na Rússia. Na tentativa de aplicar uma cartilha liberal de modo drástico, o país inteiro colapsou, a moeda, o modo de vida das pessoas. Devemos nos lembrar de que, muito antes de Trump, havia [Vladimir] Putin.
Como Putin surgiu? Como um homem forte, que se anunciava como alguém que restauraria a ordem. A mesma fórmula de Trump.
Não critico a agenda neoliberal, mas o fato de que aqueles que a celebraram como solução final não consideraram a reação dos não incluídos no projeto. E o que estamos vendo hoje é essa reação, muito violenta, porque vai de encontro não só ao saber das chamadas elites liberais mas também ao valor do conhecimento de modo geral.
A única maneira de entender por que Trump foi eleito é aceitar que muitas pessoas acreditaram nele porque o que ele diz soa para elas como uma verdade incontornável.
Por que diz que o impulso de um eleitor americano para ter votado em Trump é parecido com o de um jovem europeu que se integra às fileiras do Estado Islâmico?
Nos dois exemplos, temos pessoas com um mesmo sentimento de ressentimento e de raiva e a mesma necessidade de redenção.
O Estado Islâmico tem uma escala global jamais vista. Um jovem europeu se alista como resposta à frustração de suas expectativas e com a ideia de que isso lhe permitirá participar de um espírito coletivo de imunidade contra o sistema, além da possibilidade de compartilhar a raiva.
O mesmo ocorre com o eleitor de Trump. Trata-se de uma rejeição à política representativa. Essas pessoas perderam a fé. Então escolheram alguém que lhes promete demais. De novo, temos a mistura explosiva de quando surge alguém que promete muito e não entrega.
O que podemos esperar no horizonte é o surgimento de alguém ainda mais radical do que Trump. Ele pode ser apenas o princípio.
Não há evidência na história de que uma escalada como essa se acalme por si. Ela aponta para mais paternalismo na política, maior intolerância nas relações, mais agressividade nas sociedades. E, com isso, o comportamento político vai se transformando em algo irracional.
Não acredita que as instituições americanas possam contê-lo?
É tarde demais. Temos na Casa Branca um ególatra que ainda não enfrentou uma crise verdadeira. Quando isso acontecer, pode atuar de forma muito perigosa.
E você sabe como foi o início das grandes guerras. Sempre a partir de um evento que ninguém esperava, mas que já ocorria dentro de um contexto favorável.
Pense. O homem mais poderoso do mundo é um "troll" das redes sociais e ele tem acesso a armas nucleares. Que motivos tenho para acreditar que não vai usá-las?
SYLVIA COLOMBO, 45, é correspondente da Folha em Buenos Aires. 







Trabalho de presos no país esbarra em crise econômica e medo empresarial, FSP



Zanone Fraissat - 22.fev.2017/Folhapress
VITORIA/ES BRASIL. 22/02/2017 - Especial sobre os impactos da crise no mercado de trabalho para presos e egressos. Visita a presidios onde ha fabrica (Pimpolho, calçados infantil) para o trabalho de detentos do regime fechado.(foto: Zanone Fraissat/FOLHAPRESS, MERCADO)***EXCLUSIVO***
Presos confeccionando calçados infantis no Espírito Santo
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A trajetória de Carlos Alexandre Soares, 32, segue um script padrão de jovens que caem no crime no Brasil: cometeu dois homicídios, na Grande Belo Horizonte, foi preso e condenado em 2004.
O desfecho, porém, é raro. Em vez de reincidir, como fazem mais de metade dos que deixam as prisões no país, voltou a estudar e hoje é segurança de shopping. "Estou livre faz sete anos. E faz seis anos que tenho carteira assinada."
Além da religião, que lhe foi apresentada na cela, ele atribui a guinada às oficinas de trabalho que fez na prisão.
Para tornar menos raros casos como esse, uma das propostas do Plano Nacional de Segurança Pública do governo Temer –lançado sob a pressão da crise prisional, com mais de 130 detentos mortos no começo de janeiro– é preparar os presos para o mercado de trabalho.
Além da abrangência tímida, porém, ela esbarra em questões como falta de infraestrutura, de experiência profissional de detentos, preconceito, medo de empresários diante da reincidência criminal e até na crise econômica.
O Ministério do Trabalho propôs oferta inicial de cursos como jardinagem e padaria a 15 mil presos, embora essa população supere 620 mil.
Hoje em dia, pouco mais de 10% fazem algum curso de capacitação profissional. Há também 20% que realizam algum trabalho dentro da prisão, como limpeza e costura.
Os que trabalham ou fazem cursos de formação são minoria –não por recusa dos presos, mas por falta de opções oferecidas pelo poder público. O detento que trabalha reduz um dia da pena a cada três trabalhados.
O desafio do egresso ao disputar trabalho com pessoas qualificadas e sem antecedentes criminais se agrava no atual cenário de desemprego.
A maior população prisional do país está em São Paulo, com 220 mil pessoas. O Estado insere egressos no trabalho por meio do programa Pró-Egresso, que tem um impacto baixo, e encolheu ainda mais após a recessão.
O número de inseridos caiu de 307 em 2014 para 205 em 2016, segundo Ana Cáceres, supervisora do projeto.
Um decreto do Estado recomenda que empresas vencedoras de licitação de obras e serviços ofereçam vagas de trabalho aos egressos.
"Nem todas as empresas cumprem. Algumas alegam falta de conhecimento ou falta de serviço", diz Cáceres.
A contratação também encolheu no segundo Estado de maior população prisional, Minas Gerais, que mantém mais de 60 mil presos, conforme dados do Depen (Departamento Penitenciário Nacional), atualizado em 2014.
Andreza Gomes, subsecretária da Secretaria de Segurança Pública de Minas, reconhece que as parcerias com empresas para contratar egressos caiu nos últimos anos, mas não detalha os dados.
Falta de documentos e experiência é outra barreira, segundo Mara Barreto, coordenadora do Depen. "Quando uma pessoa que ficou quase dez anos presa vai fazer uma entrevista de emprego formal, ela precisa explicar por que ficou parada tanto tempo."
Muitos vão para a informalidade, atuando como carregadores de caminhões, ajudantes de pedreiro ou ambulantes, como faz Renato P., 27.
Há oito meses na rua Santa Ifigênia, no centro de SP, ele trabalha como "puxador", atraindo clientes na calçada e levando às lojas em troca de comissão. P. se candidatou a uma vaga formal, mas desistiu quando pediram para ver seus antecedentes criminais.
FÁBRICAS
Após uma grave crise penitenciária na década passada, com superlotação que levou ao alojamento de presos em contêineres, o Espírito Santo tenta hoje buscar empresários dispostos a instalar fábricas em seus presídios para ajudar na ressocialização.
Na época, para responder às críticas e denúncias a organismos internacionais de defesa de direitos humanos, o governo local construiu novos presídios, seguindo o modelo arquitetônico americano que inclui espaços para oficinas profissionalizantes e galpões para fábricas.
Hoje, seis anos após a entrega da 26ª unidade, faltam empresários dispostos a levar suas linhas de produção para detrás das grades, apesar da redução de custos e dos ganhos na imagem de responsabilidade social que a iniciativa proporciona.
Para Walace Pontes, secretário de Estado da Justiça, o caos penitenciário que abriu o ano e a crise econômica, que corroeu investimentos e empregos, estagnaram as parcerias com empresários.
"Há que se despertar interesse no empresariado. O preso é tão ou mais eficiente que o trabalhador comum porque, para ele, isso é terapia."
O trabalho do preso é regulado pela LEP (Lei de Execução Penal), mais vantajosa ao empregador se comparada ao regime da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). A LEP permite remuneração menor ao preso, equivalente a 3/4 do salário mínimo. E dispensa o recolhimento de impostos, 13º salário, férias e FGTS.
Para o condenado, cada três dias trabalhados reduzem um dia da pena. Especialistas avaliam que o trabalho também ajuda na ressocialização ao dar noção de hierarquia e responsabilidade a pessoas que, em muitos casos, nunca tiveram profissão.
CALÇADOS
Dentre os cerca de 20 mil presos do Espírito Santo, quase 3.000 trabalham, segundo a Secretaria da Justiça. Destes, 450 presos do regime fechado prestam serviço não remunerado para a própria unidade, como limpeza, barbearia e produção de lençóis.
Outros 440 trabalham com remuneração para empresas que têm processos produtivos instalados no interior dos presídios. São apenas 12 as empresas parceiras.
Mais da metade dos internos remunerados, porém, trabalha para um único empregador, a fabricante de calçados infantis Pimpolho. A marca emprega 280 internos que fazem desde a produção das partes até a embalagem. "Quando eu sair daqui, quero continuar trabalhando", diz Railan Gama, 27, que atua na fixação do solado.
Durante o expediente, os presos têm acesso a objetos como tesouras e lâminas, mas, segundo a direção da unidade visitada pela Folha, nunca houve agressões.
O restante são mão de obra do semi-aberto. Eles se deslocam até os locais de trabalho fora dos complexos penitenciários, um modelo mais atraente, que conta com 210 empresas e órgãos públicos.
O pagamento é enviado à família ou fica em uma conta do preso -que, para ser selecionado, deve ser avaliado e ter bom comportamento.
O secretário Walace Pontes afirma que o Estado ainda pode criar locais mais adequados à logística e outras demandas das empresas, por meio de PPPs (parcerias público-privadas). Para estimular o interesse empresarial, o governo banca os custos de energia e não cobra aluguel dos espaços. Ainda assim, há galpões vazios.
CONSISTENTES
Após a abertura de novas prisões no ES, a população prisional permaneceu em alta, e o Estado tem hoje um deficit de 5.880 vagas.
Para Luís Flávio Sapori, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a importância dos projetos que envolvem os detentos é prevenir o crime. "Ao se oferecer chances de reinserção no trabalho, é possível interromper a trajetória criminosa. Mas poucos Estados têm políticas públicas consistentes", afirma.
Para Humberto Viana, também membro da entidade, não é comum ver grandes companhias envolvidas.
Em São Paulo, a Fiesp teve um projeto de qualificação de presos, mas foi suspenso. Procurada, a entidade empresarial não revela o motivo. "O Senai-SP continua aberto às autoridades para novas iniciativas", diz a Fiesp, em nota.
A arquitetura das prisões também impede a criação de oficinas de trabalho. "Menos da metade das unidades têm espaço para oficinas. Espaço é considerado ouro. E não é raro que elas sejam direcionadas para vivência quando há superlotação", diz Mara Barreto, coordenadora do Depen (Departamento Penitenciário Nacional). 

Adriano Vizoni/Folhapress
O goleiro Bruno treina no CT do Boa Esporte, em Varginha (MG)
O goleiro Bruno treina no CT do Boa Esporte, em Varginha (MG)
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A imagem do -goleiro Bruno distribuindo autógrafos para um grupo de meninas mostra, sem necessidade de palavras, a inconveniência de seu retorno ao futebol.
O estrépito e a indignação em torno do episódio não servem de balizamento para uma polêmica relevante: oportunidade de trabalho para condenados e egressos do sistema penitenciário.
Bruno reivindica o direito de recomeçar a vida, mas o seu momento não é de recomeço. Tem uma pena a cumprir. Tem culpa quem o contratou. É inusitada a "altivez" do clube, que não se importa com a perda de patrocínios nem com a rejeição da opinião pública. Já foi dito em redes sociais, parece filme do Batman.
Se é que tudo é verdade (o júri é soberano e o réu não emite sinais de genuína inocência), o crime tem circunstâncias medonhas. Está solto pela incompetência crônica do Judiciário que não conseguiu julgar seus recursos enquanto o manteve detido.
É o escândalo, o glamour futebolístico, que incomoda. Se ele estivesse trabalhando como técnico em informática, o impacto da soltura seria mais reduzido.
Jogadores são tratados como celebridades, como exemplos de superação e ascensão social. A volta temporária de Bruno ao cenário esportivo, pela banalização da brutalidade, ofende o Brasil, não apenas a cidade de Varginha, em Minas Gerais, e suas mulheres. É absolutamente imoral a perspectiva de brilhar como atleta, neste instante, ainda que na segunda divisão.
Seria o mesmo que o ex-governador Sérgio Cabral, na hipótese de ser solto enquanto responde às acusações de corrupção no Rio de Janeiro, assumir a direção do Museu do Amanhã ou ser mestre-sala de escola de samba.
REINCIDÊNCIA
O Brasil tem (não se sabe com exatidão) mais de 700 mil presos –cinco vezes a população estimada de Varginha, que sedia o clube de futebol com o sugestivo nome "Boa".
A inserção desse significativo exército de gente anônima na população economicamente ativa, essencial para reduzir a reincidência criminal, depende de políticas públicas ainda não implementadas no Brasil e em diversos países.
Nos EUA, o gigantismo é mais dramático. Há 2,2 milhões de presos e mais de 6 milhões de pessoas submetidas a algum tipo de vigilância e controle: prestação de serviços, tornozeleira, comparecimento periódico, participação em ações educacionais ou terapêuticas etc.
A capacidade de estigmatizar a pessoa faz do cárcere (assim como do sistema judicial) uma instituição perversa. Além de marcar a alma do preso, pelo confisco da liberdade e pela humilhação suprema, a prisão atinge a reputação pessoal de forma indelével e concreta: é simples, o empregador escolhe quem não tem antecedentes criminais.
As informações processuais são acessíveis. Não há como embaraçar a cobertura jornalística. Como resolver o impasse, sobretudo em época de profunda recessão e desemprego? É justo tirar vagas de trabalho daqueles que não delinquiram e oferecê-las para os que passaram pela prisão?
O estabelecimento de cotas é um caminho? Conceder incentivos fiscais? Como absorver milhares de pessoas que anualmente entram e saem das cadeias? É papel das grandes corporações, dos pequenos negócios, das agências estatais, das igrejas, das universidades? O poder público deve estimular criação de cooperativas, o empreendedorismo? É muita gente. É cada vez mais gente. E muita gente não precisaria ser aprisionada.
Se nada for feito, viverão como desvalidos, sem eira nem beira. 





Ativismo judicial?, POr Oscar Vilhena Vieira FSP ( pauta)



Pedro Ladeira - 28.set.2016/Folhapress
Sessão do Supremo Tribunal Federal
Sessão do Supremo Tribunal Federal

Nas últimas semanas têm crescido as críticas, especialmente por parte de economistas, a um pretenso ativismo judicial de nossos magistrados. Minha impressão é que essas críticas estão muito mais associadas ao descontentamento com o conteúdo de determinadas decisões, que eventualmente desatendem determinados interesses do mercado, do que propriamente a uma análise mais detida sobre ter ou não o Judiciário avançando sobre esferas que não lhe foram atribuídas.
Duas são as posturas institucionais essenciais que pautam a conduta de distintos magistrados e cortes ao redor do mundo democrático, que têm sob sua responsabilidade interpretar cláusulas abertas da Constituição, como bem comum, dignidade, interesse público ou mesmo liberdade. A primeira é a deferência. A segunda, a responsividade.
A deferência é a postura institucional pela qual o Judiciário demonstra alto grau de respeito às decisões legislativas e administrativas, por entender que o sistema constitucional atribui prioridade às autoridades eleitas para realizar escolhas sobre as melhores políticas e mesmo sobre questões de princípio, que governarão a vida de toda a sociedade. A postura deferente é aquela que mais se concilia com uma democracia de caráter majoritário, na qual o grau de confiança do cidadão no seu representante é bastante grande. Não se deve confundir deferência com sua forma degenerada, que é a omissão, que decorre da simples falta de autonomia das instituições jurídicas em face do poder.
A responsividade, por sua vez, está associada à ideia de que o Judiciário deve estar envolvido, ainda que subsidiariamente, na tarefa de responder às promessas criadas pela Constituição ou pela legislação. Essa postura, por sua vez, é mais comum em democracias consensuais, como a nossa. Assim, se a Constituição estabelece inúmeros direitos que os legisladores ou administradores se negam a implementar, não pode o Judiciário se omitir, contribuindo para fraudar a vontade constitucional. Da mesma forma, se a maioria eventual resolve atacar a minoria, não pode o Judiciário se abster. Isso não é ser ativista. O ativismo somente ocorre quando o magistrado se afasta daquilo que estabelece a Constituição para impor as suas próprias concepções de mundo aos jurisdicionados.
O que muitos parecem não compreender é que foi a Constituição de 1988, ao estabelecer um amplo e ambicioso conjunto de direitos e conferir ao Judiciário a responsabilidade última por protegê-los, quem determinou que o sistema de Justiça brasileiro assumisse uma postura mais responsiva.
Ao confundir responsividade com ativismo, os críticos parecem querer que os magistrados substituam os padrões normativos a que estão submetidos por uma racionalidade econômica, que entendem ser a mais eficiente. Ocorre que nem sempre o correto juridicamente coincide com o que alguns consideram economicamente mais eficiente.
Estamos vivendo um claro momento de regressão constitucional. É natural que aqueles que possam oferecer alguma resistência às mudanças pretendidas sejam atacados. O mantra do ativismo judicial serve à tarefa, ainda que essa não seja a crítica mais coerente que se possa fazer ao Judiciário brasileiro.