quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Caminhos para a privatização - JERSON KELMAN


O Globo - 17/08


É preciso garantir aos operadores de saneamento, públicos ou privados, regras simples e seguras para atualização tarifária e para a recuperação dos investimentos


A manchete do GLOBO de domingo afirma que a “União quer privatizar tratamento de esgoto” e que para isso o “BNDES vai discutir modelos para o setor com os estados”. A intenção governamental é boa porque estamos muito atrasados nesse setor, mesmo quando comparados a países com renda per capita semelhante à nossa. Um bom exemplo do potencial dessa política é a Sabesp, que tem empreendido Parcerias-Público-Privadas com ganhos de produtividade. Além disso, capitais privados são particularmente bem-vindos em tempos de escassez de recursos fiscais. Contudo, para que essa iniciativa prospere, será necessário resolver os três problemas enunciados a seguir.

É preciso garantir aos operadores de saneamento — públicos ou privados — regras simples e seguras para atualização tarifária e para a recuperação dos investimentos na hipótese de rompimento dos respectivos contratos. Nesse sentido, é importante manter registro dos valores prudentemente investidos nas obras, que devem ser continuamente ajustados para considerar a incorporação de novas instalações e a depreciação das existentes. Como se trata do montante a ser indenizado ao operador de saneamento na hipótese de interrupção ou fim da prestação do serviço, não surpreende que o ambiente para investimentos no saneamento dependa diretamente da capacidade técnica, independência decisória e autonomia administrativa da correspondente agência, que tem a responsabilidade de cuidar da contabilidade regulatória. Lamentavelmente, a maioria das agências hoje existentes, em particular as municipais, não se enquadra nesse figurino e, por uma questão de escala, jamais se enquadrará.

É preciso compatibilizar a legislação ambiental, que exige soluções imediatas, com a do saneamento, que admite soluções gradativas. Por exemplo, o afastamento do esgoto de onde as pessoas vivem, mesmo quando não seja possível o correspondente tratamento. A atual diferença de enfoque resulta em riscos para as empresas prestadoras de serviço e para seus funcionários, que chegam a ser acusados de crimes ambientais quando solucionam provisoriamente algum problema que não admite imediata implementação de solução definitiva.

Como se sabe, a legislação ambiental foi concebida para impedir que pessoas físicas ou jurídicas, motivadas por interesses particulares, causem externalidades ambientais prejudiciais ao interesse coletivo. Trata-se de tipologia que não se adéqua a uma empresa de saneamento, que atua para mitigar a poluição causada pela sociedade, e não por ela própria. Confundir “a solução” com “o problema” afugenta do setor profissionais e empresas competentes, que poderiam dar significativas contribuições ao progresso do saneamento.

É preciso garantir o correto funcionamento das estruturas já existentes e das que ainda serão construídas, em vez de construir novas obras, frequentemente efêmeras. Idealmente, o serviço de saneamento deveria operar como se fosse uma indústria de produção de lodo. Primeiro, a carga poluidora intrínseca à condição humana é diluída numa grande quantidade de água para possibilitar o transporte por tubulações subterrâneas. Depois, o esgoto que chega à estação de tratamento passa por uma combinação de processos físicos, químicos e biológicos para inverter o processo. Isto é, para voltar a concentrar a carga poluidora num volume relativamente pequeno, chamado de “lodo”. Portanto, quanto mais lodo se produz para deposição final em aterro sanitário ou para uso como insumo energético, menor é a carga poluidora lançada nos corpos hídricos. Como qualquer indústria, seria de se esperar que houvesse grande controle sobre o lodo, que é o resultado final da produção. Mas não é isso o que se observa. Ao contrário, em geral há muita pompa na inauguração das obras de saneamento e insuficiente avaliação dos resultados ao longo das correspondentes vidas úteis. O que explica o grande número de estruturas disfuncionais espalhadas pelo país. Isso tem que mudar.

“Nossas cidades são um grande negócio na mão de poucos”, Brasil de Fato


Noronha Rosa
Arquiteta fala sobre o boom imobiliário, a mobilidade urbana e as conquistas das manifestações
12/05/2014
Joana Tavares
Belo Horizonte (MG)


Uma das principais pensadoras sobre as cidades brasileiras, Ermínia Maricato foi secretária executiva do Ministério das Cidades, formulou propostas para a área urbana para o governo Lula e recentemente foi conselheira das Nações Unidas para assentamentos humanos, além de dar aulas na USP e na Unicamp. Convidada para o Ciclo de Debates do Brasil de Fato MG, Ermínia fala nesta entrevista sobre a crise nas cidades e as perspectivas abertas com as manifestações de junho 2013.

Brasil de Fato - O movimento das ruas de 2013 trouxe uma série de reivindicações, entre elas a questão da ocupação do espaço urbano. Que conquistas esse movimento trouxe?
Ermínia Maricato - Sabe quantas cidades brasileiras cancelaram o aumento nos transportes com as mobilizações de junho de 2013? Mais de 100! E não foi só isso. Coisas que estavam engavetadas, obras faraônicas inúteis e obras para automóvel andar - que é o que mais se faz- muitas foram canceladas. Foi muita mudança a partir de junho de 2013. A vida na cidade está insuportável e é impressionante como a política urbana é invisível no Brasil. A mobilidade e o uso e ocupação do solo são dois eixos fundamentais. Eu diria que depois das ultimas três décadas, estamos, desde junho de 2013, começando a encarar a política de mobilidade urbana. Mas a política fundiária urbana nós ainda não começamos a decifrar. Eu diria que a própria sociedade suporta muito e conhece pouco. Nossas cidades são um grande negócio na mão de poucos. Ou seja, lobbys muito bem organizados funcionam pra levar a cidade para um caminho que não beneficia a maior parte da população. É muito mais o caminho de quem tem lucro com a construção das cidades. Sem dúvida nenhuma, eu diria que as três forças que comandam hoje o crescimento das cidades são a indústria automobilística, que contraria o interesse do transporte coletivo; o capital imobiliário e o capital de construção. E tudo em consonância com o financiamento das campanhas eleitorais. 

Podemos dizer então que não são cidades do povo e para o povo, e sim pra quem especula esse mercado.
Não tenho a menor dúvida. Estudando as cidades por muitos anos, eu diria que estamos num momento em que vivemos uma verdadeira tragédia das cidades brasileiras, em que a função social das cidades, prevista na Constituição brasileira; a função social da propriedade, prevista na Constituição brasileira e no Estatuto da Cidade, estão em plano absolutamente secundário. 

O que é a função social da propriedade?
Nós conquistamos na Constituição de 1988 dois capítulos sobre as cidades. E dentro desses capítulos está a proposta da função social da propriedade. É exatamente a ideia de que o direito de propriedade privada é limitado. Pelo quê? Pelo interesse coletivo. Todos nós pagamos pra construir a estrutura das cidades - asfalto, drenagem, esgoto, iluminação pública, transporte - tudo isso foi pago por todo mundo. E vai um sujeito e deixa um lote vazio. Esse lote está cumprindo a função social que tem que ter numa cidade? Não! A propriedade privada não é absoluta na Constituição, é subordinada à função social. O direito à moradia é absoluto. No entanto, o judiciário brasileiro trata o direito à moradia como relativo e o direito à propriedade como absoluto. 

Qual sua avaliação do programa Minha Casa, Minha Vida e das intervenções em vilas e aglomerados? 
Estamos vivendo no Brasil um boom imobiliário. Durante três anos, houve um aumento de 154% no preço do metro quadrado de terrenos e imóveis em São Paulo, e 181% no Rio de Janeiro. Os aluguéis cresceram na mesma medida. Passamos duas décadas perdidas, sem investimento público nas cidades. Quando o investimento vem, por meio dos PAC e Minha Casa, Minha Vida, aparecem também os capitais, que tomaram conta das cidades. Com o apoio, é claro, de muitos do executivo e legislativo. Isso acarretou em um boom imobiliário, que a verticalização e a produção de moradia, ao invés de abaixarem o preço dos imóveis, elevaram. Na medida em que não fizemos a reforma fundiária, não implementamos a função social da propriedade urbana, todo o subsídio que está sendo colocado pelo governo federal está indo para o preço da propriedade, para os imóveis e para os terrenos. Isso está afastando a população mais pobre, que não consegue o financiamento do Minha Casa, Minha Vida e que não está conseguindo mais pagar o aluguel. O boom imobiliário não é progresso, ele empobrece toda a cidade. Ele pega uma parte da riqueza produzida por toda a população e  a coloca no bolso de alguns, que são os proprietários imobiliários e principalmente os incorporadores imobiliários.  

Como é possível aliar esse gás novo de se pensar as cidades com o acúmulo de organizações e movimentos que já faziam a disputa do modelo de cidade, de Estado, de política?
Acho que a política urbana não é prioridade para os partidos, nem os de esquerda, no Brasil. É preciso dar visibilidade para a luta de classes que se dá em torno das cidades. O espaço urbano não é apenas palco para a luta de classe, é objeto e agente. A gente precisa conhecer mais. Mais do que nunca, a informação, o conhecimento é a libertação.

Ciclo de Debates

O Ciclo de Debates sobre Reforma Urbana acontecerá todas as quartas-feiras de maio. No dia 14, o tema será Direito Humano à Moradia, com exposição da Dra. Cleide Nepomuceno, Defensora Pública de Minas Gerais, e Francisco Galvão da coordenação nacional do MTD. A entrada é gratuita. O debate será no Sindibel (avenida Afonso Pena, 726, 18º andar).

A sustentabilidade da energia, OESP (definitivo/informativo/fonte)



Já somos uma das economias de mais baixo carbono, mas podemos melhorar


Evaristo E. de Miranda
17 Agosto 2016 | 03h03
A fonte de 68% da energia renovável no País, que garantiu 28% da matriz energética brasileira em 2015, é a agropecuária. Um caso único no mundo para um país industrializado e com as dimensões territoriais do Brasil. Além disso, no ano passado, pela primeira vez a geração de eletricidade de origem eólica ultrapassou a de origem nuclear. Foram 1.859.750 toneladas equivalentes de petróleo (TEP) asseguradas pelos ventos, ante 1.267.124 TEP geradas por usinas nucleares, segundo o sempre excelente Balanço Energético Nacional (BEN), recém publicado pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE).
A geração da energia nuclear mantém-se constante há anos. E não houve, nem haverá no curto prazo, nenhum aumento do parque nuclear. Já o setor eólico se beneficia de numerosos incentivos, cresceu 77% em um ano e seguirá crescendo. Mas a contribuição das eólicas na matriz energética ainda é pequena: 1,3%. Esse marco histórico das eólicas passou quase despercebido, assim como o papel da agricultura na geração de energia renovável.
A participação da energia renovável na matriz energética nacional foi de 41,2% em 2015. Um recorde fantástico. E já chegou a mais de 45% em alguns anos, em função de fatores climáticos, da economia, etc. A média mundial de energia renovável nas matrizes energéticas é de apenas 13,5%. Essa contribuição é ainda menor nos países-membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE): 9,4%. Ou seja, nas nações desenvolvidas mais de 90% da energia é suja, vinda em geral de petróleo, gás e carvão mineral. Isso pode ser avaliado nas emissões de CO2.
Cada brasileiro emite sete vezes menos CO2 do que um americano e três vezes menos do que um europeu ou um chinês, apesar da enorme população da China. Graças às energias renováveis, na produção de 1 MWh o setor elétrico brasileiro emite três vezes menos CO2 do que o europeu, quatro vezes menos do que o norte-americano e seis vezes menos do que o chinês.
Além de grande produtora de alimentos e fibras, a agropecuária nacional ampliou em magnitude única no planeta sua capacidade de gerar energia. A agricultura brasileira produz combustíveis sólidos (lenha e carvão vegetal), líquidos (etanol e biodiesel), gasosos (biogás e gás de carvão vegetal) e energéticos (cogeração de energia elétrica e térmica com subprodutos agrícolas, como bagaço de cana-de-açúcar, lixívia, palhas, cavacos, etc.).
Só os produtos energéticos da cana-de-açúcar garantiram 16,9% do total da energia consumida no Brasil em 2015, uma contribuição superior a todas as hidrelétricas juntas (11,3%)! Lenha e carvão vegetal contribuíram com 8,2%, ajudando a mover caldeiras e fornos, desde os das padarias e pizzarias até os das siderúrgicas de ferro gusa. Por fim, biodiesel, lixívia, biogás e outros resíduos asseguraram 3,1% de nossa matriz energética. Hoje, só o sebo de boi – um resíduo de frigoríficos – garante cerca de 20% da produção de biodiesel. O resto vem dos óleos vegetais, sobretudo de soja.
Para produzir alimentos, fibras e energia a agricultura brasileira consome energia na matriz (diesel para suas máquinas, energia elétrica, etc.). Quanto? 4,4%, segundo os dados do Balanço Energético Nacional. E ela devolve 28%.
A agricultura é o setor que menos consome energia e 4,4% é para toda a agropecuária: produção de alimentos, fibras e energia. O consumo específico para gerar energia é bem menor. Uma série de detalhamentos acerca do desempenho energético de várias cadeias produtivas está sendo calculada pelo Grupo de Inteligência Territorial Estratégica da Embrapa. Nos dados do BEN 2015, a geração de energia (hidrelétricas, termoelétricas, usinas nucleares) consumiu 10,7% da energia da matriz.
A agroenergia é o resultado da transformação da energia solar em energia química pelas plantas. França, Japão ou Canadá poderiam produzir 28% de sua matriz energética com sua agricultura, como faz o Brasil?
Provavelmente, sim, mas consumiriam mais de 50% em sua matriz energética para realizar tal “feito”. Por quê? O clima limita a geração de agroenergia em países temperados. Em altas latitudes a fotossíntese só é possível na primavera-verão, de três a cinco meses, com cultivos de ciclo curto, como milho ou beterraba.
Já em países tropicais, com temperaturas elevadas, a fotossíntese é possível praticamente o ano todo, com cultivos de ciclo longo, como cana-de-açúcar, dendê, mandioca. Um campo de cana-de-açúcar ou de dendê é uma das mais eficientes e rentáveis usinas solares existentes!
Aqui, ganhamos mesmo em culturas de ciclo curto (soja, milho, girassol), pois é possível garantir duas colheitas em um ano (safras de verão e inverno). Outros países tropicais poderiam produzir mais energia renovável. Mas não o fazem. Além da geografia, é fundamental usar uma tecnologia agrícola tropical inovadora – e, nisso, o Brasil é reconhecidamente um líder mundial.
A contribuição da agroenergia na matriz energética brasileira continuará crescendo. E já seria maior se políticas erráticas e erradas não tivessem vitimado o etanol.
O uso eficiente de resíduos e a integração produtiva levarão a novos saltos tecnológicos, como etanol de segunda geração e gaseificação de palhas. Com novas hidrelétricas em funcionamento, mais o crescimento da agroenergia, das eólicas e da energia fotovoltaica, o País poderá atingir 50% da matriz energética com fontes renováveis. Já somos uma das economias de mais baixo carbono do planeta. Podemos melhorar, mas os países desenvolvidos precisam avançar – e muito – na descarbonização de suas economias para chegar perto do que fazemos. Quando o assunto é meio ambiente, como enfatiza o atual ministro da Agricultura, o agronegócio brasileiro é muito mais solução do que preocupação.