domingo, 17 de julho de 2016

Nem criança, nem adulto. Um embate sobre o trabalho infantil, OESP

 

A sociedade brasileira criou, nas últimas décadas, a criança e o jovem descartáveis, melancólica técnica de controle da natalidade e de eutanásia social
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José de Souza Martins,
O Estado de S.Paulo
26 Junho 2016 | 06h00

Foto: EPITACIO PESSOA | AE

José de Souza Martins
À medida que cresce o número de notícias sobre a delinquência juvenil, sobre o envolvimento de crianças na criminalidade, sobre a violência praticada por adolescentes nas escolas públicas e gratuitas até contra a própria escola, os colegas e os professores, as notícias sobre o envolvimento de crianças e adolescentes com drogas, no uso e no tráfico, é cada vez mais frequente ouvir questionamentos sobre a proibição legal do trabalho infantil e juvenil: “Se estivessem trabalhando, não estariam disponíveis para a maldade, o crime, a vagabundagem, a violência”. À vista de rapagões de 15 anos devotados à vadiagem, muitos acham que lhes cairia bem o mesmo duro trabalho que recai sobre os ombros de franzinos garotos já responsáveis pelo sustento da própria família.
Quem visita as cracolândias da cidade de São Paulo tem diante dos olhos a antevisão do Apocalipse da sociedade brasileira, jovens esparramados pelo chão, misturados com o lixo que eles próprios produzem, fartos de droga e faltos de esperança, de destino, inúteis quanto às obrigações sociais que cabem a todos. O roubo da infância pelo trabalho é um crime, mas o roubo do viver do jovem de rua, vitimado pelo emprego na violência, nos assaltos e no tráfico, é crime maior. Qual a opção: o ruim ou o péssimo? Quando o dilema é esse e continuamos a fazer enganosos discursos ufanistas sobre o progresso social do Brasil, o que mais nos resta se não temos nem mesmo a lucidez crítica para encarar de frente o que nos corrói e destrói como nação? A sociedade brasileira criou, nas últimas décadas, a criança e o jovem descartáveis, melancólica técnica de controle da natalidade e de eutanásia social.
Muitas vezes, a sabedoria das pessoas comuns e simples, que fazem esses comentários em favor do trabalho também pelos menores de idade, é mais questionadora do que a sabedoria profissional dos sábios de gabinete, os que não conseguem compreender o modo como enxergam e interpretam a tragédia os que sofrem direta ou indiretamente a degradação que nos consome.
Vivemos num cenário de valores sociais e morais opostos, perdidos no movimento pendular entre os extremos que não somos. Indicação de que esta sociedade não tem um eixo ético de referência que lhe permita discernimento quanto ao que é socialmente necessário para assegurar integração e participação social de todos. Não temos um projeto de futuro e mal cabemos no presente.
Ingressei numa fábrica com 11 anos de idade. Não doeu. Ajudou na sobrevivência. Procuro compreender a reação de quem entende que o trabalho infantil e juvenil é educativo, um bem e não um mal, como procuro compreender o questionamento da proibição do trabalho para os menores de idade, tido como ato que os privaria da infância. Mas não creio que o dualismo ideológico, tão brasileiro e tão inútil, nos ajude a resolver com urgência esse verdadeiro crime de lesa-pátria que é tornar os imaturos adultos muito antes do tempo.
Em São Paulo, o número de jovens infratores apreendidos cresceu de 8 mil, em 2000, para 14.400 em 2012. Diminui o número de adultos infratores e cresce o de menores infratores. As novas gerações estão em perigo. Em 2014, no Brasil, segundo o IBGE, trabalhavam 554 mil crianças entre 5 e 13 anos de idade. Um aumento de 9,5% em relação ao ano anterior. Eram trabalhadores de roça 62% dos infantes dessa faixa de idade, um indício de que, em relação a eles, o Bolsa Família fracassou. Deveria assegurar que se dedicassem exclusivamente à escola, pelo dinheiro da Bolsa libertados das carências que os levam a ganhar o pão nosso de cada dia com o suor do próprio rosto. A Bolsa não é um presente, uma dádiva, mas um pagamento pelo trabalho de frequentar a escola que os liberta do trabalho precoce na terra. Ir à escola e estudar são considerados na roça trabalho de criança, como puxar enxada é o dever dos adultos.
A proibição do trabalho infantil e juvenil é uma medida necessária e justa. Criança é para ser criança e adolescente é para ser adolescente. Eles têm muito que fazer, que é próprio da idade, como brincar, fantasiar, crescer, socializar-se segundo os valores mais nobres da sociedade em que nasceram. Mas, num país como o Brasil, a proibição do trabalho infantil e juvenil é completamente hipócrita. Não o seria se o Estado brasileiro tivesse adotado e efetivado algumas medidas correlatas e necessárias, como a do ensino em tempo integral. Proibir o trabalho e deixar as crianças na rua, expostas ao assédio de traficantes, malandros e bandidos é uma irresponsabilidade e um crime. Crianças e adolescentes trabalham porque do dinheiro desse trabalho suas famílias carecem.
Alguém poderá achar que este texto é politicamente incorreto. Eu também acharei isso se me convencerem que a proibição do trabalho dos imaturos, sem alternativa, para deixá-los à mercê de traficantes, ladrões e profissionais da violência e da violação dos direitos alheios é propriamente um direito e algo que se possa considerar politicamente correto.

José de Souza Martins. É sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de Uma Arqueologia da Memória Social(Autobiografia de um Moleque de Fábrica), Ateliê Editorial.

Sobre a calamidade

Desastre natural está na origemdo vocábulo, mas a catástrofe que se abate sobre a sede da Olimpíada é feita pelo homem
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Sérgio Rodrigues,
O Estado de S.Paulo
26 Junho 2016 | 06h00

Foto: JOSE LUCENA | PAGOS

Sérgio Rodrigues
Calamidade, todo mundo sabe, é catástrofe. O dicionário Houaiss esmiúça seu sentido assim: “grande perda, dano, desgraça, destruição, especialmente a que atinge uma vasta área ou grande número de pessoas”. O estrago calamitoso vem da antiguidade e, pelo menos no começo, era provocado por fenômenos naturais: o substantivo latino calamitas aparece no clássico dicionário Saraiva com o sentido principal de “perda das colheitas causada pela geada”. Não se trata, claro, de dizer que essa é sua única aplicação correta. Raríssimas palavras passam a vida confinadas no bercinho semântico em que nasceram, e já ao desembarcar no português, nos últimos anos do século 16, a calamidade tinha se expandido para abranger desgraças variadas. Nenhuma delas envolvia àquela altura gestão desastrosa, gastos maiores que a arrecadação, atraso de salários, corrupção crônica, serviços públicos à míngua, irresponsabilidade fiscal e compromisso deslumbrado com um evento caro demais para o orçamento da casa. Mas também isso mudou.
A calamidade que se abateu sobre o estado do Rio de Janeiro às vésperas dos Jogos Olímpicos dispensou por completo a contribuição dos fenômenos naturais, a menos que, injustamente, se ponha na conta do mar bravio – e não da incompetência, neste caso do poder municipal – o desabamento da ciclovia de São Conrado. Aquele escandaloso sinal de calamidade foi enviado ao mundo quase dois meses antes do decreto no qual, na sexta-feira 17, o governador em exercício Francisco Dornelles oficializou o deus nos acuda. Ou, para ser preciso, o Brasília nos acuda. Já na última terça, 21, o Planalto anunciou um “apoio financeiro” de R$ 2,9 bilhões ao governo fluminense para que ele leve a cabo a preparação do Rio de Janeiro para a Olimpíada.
Como se não bastasse a epidemia de zika, a decretação do estado de calamidade pública é propaganda negativa para um evento gerador de turismo, mas não disfarça sua esperteza no campo legal ao determinar a suspensão temporária de ritos e processos administrativos que, em condições normais, impediriam um estado inadimplente de receber empréstimos e remanejar recursos já destinados a outras áreas. O texto assinado por Dornelles menciona como justificativas para o ato extremo a “grave crise econômica” e a “queda da arrecadação, principalmente a observada no ICMS e nos royalties e participações especiais do petróleo”. Queixa-se da “interrupção da prestação de serviços públicos essenciais” e acena com a perspectiva de “total colapso na segurança pública, na saúde, na educação, na mobilidade e na gestão ambiental”. Nada disso é pouco. Tudo isso está ausente da definição que o Houaiss apresenta para “calamidade pública”, essa figura do vocabulário jurídico: “interrupção da vida normal de uma coletividade, por efeito de desgraça pública, catástrofe ou desastre decorrentes de fenômenos naturais ou de lutas armadas”.
Na falta de geadas, furacões e guerras, servem políticos mesmo. Além da pindaíba carioca e fluminense, isso acaba de ser demonstrado também pelo tiro no pé dado pela Grã-Bretanha ao votar a favor de seu desligamento da Europa – mais um motivo para fazer de calamidade a Palavra do Mês.
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A história do termo não chega a ser calamitosa, mas passa longe de ser segura. Etimologia nunca foi ciência exata.
Antigamente era considerado pacífico entre os estudiosos que seu radical provinha do latim calamus, este por sua vez um decalque do grego kálamos, “haste, cana, junco” – o mesmo sentido principal que ainda hoje conserva em nossa língua a pouco usada palavra “cálamo”. Mas qual é a relação entre o talo da planta e o desastre, a hecatombe, a praga? Bem, calamitas seria “o prejuízo causado por um temporal, por uma saraivada que quebrasse as hastes verdes do trigo” (palavras do filólogo brasileiro Antenor Nascentes), deixando no chão da lavoura um desolador tapete de cálamos partidos. Calamidade.
A tese foi abraçada por pesos pesados da matéria, como o catalão Joan Corominas, e ainda hoje pode ser considerada dominante. Uma hipótese alternativa é que “calamidade” teria um parentesco perdido com “incólume”, ou seja, intacto. Convenhamos que a tese do cálamo faz muito mais sentido para os leigos – mas isto, embora possa ser visto como vantagem, é o ponto em que se apegam os revisionistas da calamidade. Um desses é o linguista austríaco Alois Walde, que considerava o elo pastoril com os cálamos um exemplo de “etimologia popular”, como os estudiosos chamam as associações que o povo estabelece entre uma palavra nova e outra já conhecida em resposta a semelhanças fortuitas de som e sentido. Muitas vezes, essas ligações imaginárias interferem no desenvolvimento do vocábulo recém-chegado, mas não estão em sua origem. Um exemplo clássico de etimologia popular é “floresta”, que o português foi buscar no século 14 no francês antigo forest (hoje forêt). No princípio de sua aclimatação na Península Ibérica, a palavra era furesta ou foresta. Ocorre que muitos ouvintes achavam que teria alguma coisa a ver com “flor”. Não tinha, mas passou a ter.

SÉRGIO RODRIGUES É JORNALISTA, CRÍTICO LITERÁRIO E ESCRITOR, AUTOR DO ROMANCE O DRIBLE (COMPANHIA DAS LETRAS)

Verdades e mentiras na web - PEDRO DORIA



ESTADÃO - 15/07

“Fiquem comigo”, diz a moça Diamond Reynolds no vídeo transmitido ao vivo pelo Facebook. Ela vira o celular para que vejamos seu namorado no banco do motorista. Ele veste camiseta branca tomada pela metade por uma grande mancha cor de vinho. Sangue. O rapaz tenta conter algo com as mãos, talvez o braço. “A polícia nos parou por causa de uma lanterna quebrada”, explica Diamond. Sua voz é trêmula, porém firme. O celular vira um pouco mais à esquerda e vemos os braços do policial, pistola à mão, ainda apontando para Philando Castile. “E o policial”, ela gagueja, “ele está coberto”. E continua: “Ele matou meu namorado.”

É quando percebemos que estamos assistindo à morte de um homem. Ele ainda estava vivo, parece, mas nos minutos seguintes do dramático vídeo vai lentamente se tornando imóvel.

Foi uma semana muito dura esta primeira de julho, nos Estados Unidos. A questão racial explode, há uma campanha eleitoral estranha, o Partido Republicano se dissolve. Violência impera. E, desde que o Facebook tornou possível para que qualquer um possa transmitir vídeos ao vivo, a rede social está oficialmente no negócio do jornalismo. Reynolds narra o que vê com a firmeza de uma âncora desde a primeira frase: “Fiquem comigo”, ou “Stay with me”, quase um clichê da televisão de notícias americana. Está preocupada em, mantendo o controle das emoções, descrever, dar o contexto. Ela conhece o formato da tevê em ritmo de notícia urgente. E o repete.

Na última terça-feira, a editora-chefe do jornal britânico The Guardian, Katharine Viner, publicou um longo artigo sobre a era em que vivemos. O título: “Como a tecnologia provocou a disrupção da verdade”. Os dois principais argumentos do movimento pela saída do Reino Unido da União Europeia eram mentiras. O primeiro, que a terra da rainha Elizabeth II economizaria £ 350 milhões semanais em repasses para a UE, que poderiam ser aplicados na saúde pública. O segundo, que seria possível conter um sem número de imigrantes com a saída. Os proponentes do Brexit sabiam que era mentira. Dane-se. Na web, mentiras emplacam.

Daniel Patrick Mynihan, um dos mais ativos senadores americanos entre as décadas de 1970 e 2000, é quem cunhou a frase: “Você tem direito a suas próprias opiniões, mas não a seus próprios fatos”. Era assim, não mais. Na internet, criamos coletivamente o hábito de buscar os fatos que confirmam nossas opiniões e ignorar os outros. Enquanto ministro do Supremo, Joaquim Barbosa jamais recebeu salário de professor da Uerj. E, no entanto, até hoje circula essa informação por aí, com direito a foto do holerite. Não importa o quanto se publica o contrário. O quanto se mostra os fatos. As pessoas querem acreditar. E acreditando seguem.

Este crescimento do império da mentira vem ocorrendo lentamente. Ele borra tudo. Quando um jornal publica o resultado de uma investigação por parte de polícia e Ministério Público, seguido de condenação pela Justiça, os partidários do acusado dizem: não foi assim. Para que se ater aos fatos? As opiniões não se formam mais a partir de fatos. Os fatos curvam-se às opiniões.

O argumento da editora do Guardian é muito simples. A internet permite a transmissão ao vivo de notícias de impacto por qualquer um. É um ganho imenso para a democracia. Mas ela também permite a criação de um ambiente onde opinião política se descola da realidade. Não precisa ser assim. Mas temos de ter consciência do que está ocorrendo.

Na internet, criamos o hábito de buscar fatos que confirmam nossas opiniões