O começo de junho de 2014 foi tenso para a equipe da Companhia de Engenharia de Tráfego encarregada de cumprir uma nova missão: apagar vagas de estacionamento para pintar a primeira ciclovia da região central, na avenida Cásper Líbero. "Usamos tinta de baixíssima durabilidade e sinalização simples, usada em obras, para testar", disse Suzana Nogueira, em uma pedalada pelo centro com participantes de um festival dedicado às bicicletas, quase dois anos depois.
Ciclista e com nove bikes em casa, Nogueira coordena o Departamento de Planejamento Cicloviário da CET. "Mesmo dentro da companhia, falavam que era impossível fazer ciclovias", afirmou, sem saber, àquela altura, da presença da reportagem no passeio.
Passada a fase de incredulidade, elas se espalharam e, hoje, são 414,5 km de vias destinadas às bicicletas —seis vezes mais ciclovias do que há dois anos. "A gente achava que ia ser massacrado, mas depois passou. A rebeldia [dos moradores] dura no máximo 20 dias", disse, ao pedalar pelo largo do Paissandu.
As críticas podem ter amainado, mas ainda existem. Para Sérgio Ejzenberg, engenheiro civil e especialista em transporte com mestrado na USP, a administração da mobilidade urbana na gestão Haddad falha ao se concentrar nas bicicletas como marca: "Onde está o juízo de quem esquece os corredores de ônibus? Não se trata de ser contra a bicicleta. O que é necessário é ter lógica na administração da mobilidade, coisa que não houve. Houve uma bandeira política feita sem técnica, colocando a bicicleta na frente do ônibus. Esse plano nasceu errado".
É fato, porém, que a rede cresceu e, junto com ela, o uso da bicicleta. "Independentemente da metodologia, há aumento do número de ciclistas", diz Nogueira, desta vez em entrevista à sãopaulo. Ela se baseia em contagens realizadas em vias principais, feitas pela administração municipal para a análise de tendências —os números não foram divulgados pela prefeitura.
"A ciclovia causa algum estranhamento no primeiro momento, em função da novidade, mas o que se verifica em seguida é um aumento do número de ciclistas", afirma o prefeito Fernando Haddad. "Eu me baseio em uma pesquisa do Ibope para afirmar que deve ter crescido em torno de 70% no primeiro ano."
A última pesquisa Datafolha sobre o tema foi feita em fevereiro de 2015, com 1.051 paulistanos. À época, 51% dos entrevistados afirmavam terem usado ciclovias. No levantamento anterior, em setembro de 2014, o índice era de 47%. Ainda na pesquisa de 2015, 66% eram a favor das faixas e 27% contra.
O aumento do interesse dos paulistanos pelas magrelas pode ainda ser verificado a partir de outros indicadores.
O Bike Sampa, o sistema de empréstimos de bicicletas patrocinado pelo banco Itaú, registrou quase o dobro do número de viagens nos últimos dois anos. De abril de 2014 a março de 2015, foram feitos 470 mil empréstimos. No mesmo intervalo de 2015 para este ano, o número saltou para 884 mil.
O saldo de usuários das laranjinhas aumentou em 360 mil, atingindo 627 mil pessoas. "Hoje, o uso é praticamente igual em todos os dias da semana, especialmente entre 16h e 18h", diz Israel Leite, diretor da Serttel, empresa que opera o serviço.
A expansão da bike também é vista nos trilhos. Nas linhas da CPTM, há 7.695 embarques de ciclistas por mês, 41% a mais do que há dois anos. No metrô, a cada domingo, 1.220 bicicletas são levadas a bordo, em média 22% a mais do que em 2014.
O uso dos 29 bicicletários da CPTM cresceu 26% desde 2014. Só em abril deste ano, os espaços receberam 72,2 mil veículos. "Vem muito mais gente do que podemos atender. Nossos bicicletários estão abarrotados", diz Silas Daniel Lima, gerente de Estações e Serviços da companhia.
É óbvio que, como em todas as metrópoles do planeta, ciclistas são minoria em relação aos usuários de outros meios de transporte. Basta dizer que em São Paulo, a frota de carros é de quase 6 milhões, aproximadamente metade da população. Já os ônibus transportam 7,7 milhões por dia —enquanto mais de 3 milhões de passageiros usam o metrô e 2,8 milhões, os trens da CPTM. Em 2012, antes das ciclovias, as bicicletas correspondiam a 0,59% das viagens dentro da cidade, segundo a Pesquisa de Mobilidade Urbana, do Metrô. Novos números serão conhecidos no ano que vem, com a divulgação da Pesquisa Origem e Destino, também do Metrô.
PLANEJAMENTO
Suzana Nogueira lembra que a estrutura para bikes é fruto de ideias acumuladas há décadas. "Há ciclovias que a pessoa pergunta de onde tiraram, de qual cartola. Não há cartola, existem estudos desde 1982."
As vias do centro foram pinçadas pela CET para receber os primeiros quilômetros. E a área foi a única em que não houve a participação de coletivos de cicloativistas. Nas demais zonas, todos os traçados contaram com a aprovação de ciclistas, que fazem reuniões mensais com a gestão municipal.
Hoje, o mapa das ciclovias na região central lembra uma teia. Conforme se avança para bairros mais distantes, entretanto, o cenário muda. Há trechos curtos ou que começam e terminam em vias sem outra ciclovia por perto, terminal de ônibus, tampouco estação de trem ou metrô.
"Muitas estruturas da periferia não têm a malha viária adequada", afirma Nogueira. "São regiões que foram esquecidas. Tivemos um plano de loteamento histórico que colocava as pessoas na periferia sem prever o mínimo de infraestrutura. Então, ficou deficiente para todos os modais, não é só para a bicicleta", diz a coordenadora da CET.
De acordo com Nogueira, ciclovias foram instaladas mesmo em áreas onde falta luz na rua e calçadas. "A iluminação é um desejo, mas não ficamos esperando", diz ela. A saída foi instalar tachões e mastros reflexivos, que brilham com o farol dos carros e permitem ver onde termina uma pista e começa outra.
Rafael Balago/Folhapress | ||
Ciclovia do Minhocão, no centro da cidade |
As coisas mais curiosas que vimos nas ciclovias
- Capivaras
- Duas feiras livres
- Oferendas religiosas
- Caminhão-pipa estacionado
- Contêneires de lixo
- Moradores de rua dormindo
- Carroceiros
- Cinzas de um incêndio
- Kombi vendendo churrasco
- Pais com carrinho de bebê
Enquanto as ciclovias avançavam, surgiram críticas. Paulistanos se queixavam ao acordarem e se deparem com as faixas vermelhas na porta de casa. "Você não vota em alguém e dá para ele um cheque em branco para que ele possa fazer o que quiser", afirma Renata D'Angelo, 43, moradora da Chácara Santo Antônio, na zona sul.
A ciclovia instalada naquela região ficou conhecida por desviar de imóveis ligados a parentes do secretário municipal dos Transportes, Jilmar Tatto. Após protesto dos moradores, a CET diz já ter elaborado um projeto para o realinhamento da via. Mas não há prazo para sair do papel.
Nesses dois anos, a CET teve de voltar atrás em mais dois episódios. Um trecho vermelho, na praça Vilaboim, em Higienopólis, acabou alterado no fim de 2014, depois de reclamações de comerciantes. O segundo caso ocorreu neste ano, quando uma decisão judicial determinou a remoção de um trecho de 50 metros da frente de um colégio na Vila Mariana.
Suzana Nogueira rebate as críticas dos moradores de que não tenham sido avisados. "Existe uma expectativa, às vezes, que a gente chegue à porta [da pessoa] e entregue um panfleto." A CET, garante ela, divulga as ações no seu site. Porém, até a última quinta (12), não havia um mapa detalhado na página que permitisse ao morador ver se a sua rua poderá ou não ganhar uma ciclovia.
Heterogênea, a estrutura da rede colecionou críticas. Em visita recente a ciclovias em diferentes partes da capital, a sãopaulo encontrou buracos, árvores e postes em meio ao trajeto e pontos com tinta apagada.
A qualidade do piso espelha a situação do asfalto na cidade: tanto no centro expandido quanto nas bordas da metrópole, há trechos impecáveis e outros repletos de rachaduras.
A descontinuidade gera riscos. Na avenida Edu Chaves, na zona norte, a ciclovia termina abruptamente e leva o ciclista a circular na contramão em uma faixa estreita, por onde passam ônibus. Questionada sobre esse caso, a CET promete reavaliar a estrutura local.
Elvis Pereira/Folhapress | ||
Ciclovia do rio Pinheiros, que liga o Grajaú à zona oeste da cidade |
Custos
- R$ 48,5 mi: a prefeitura diz ter gasto entre 2014 e 2015 para a instalação de ciclovias. Em média, cada quilômetro custa de R$ 180 mil a R$ 225 mil
- R$ 80 mi: o custo total estimado para chegar aos 400 km prometidos pela prefeitura, até dezembro, diz o governo
- R$ 4,4 mi: custaram o trecho de 4,1 km entre a rua Amaral Gurgel e as avenidas São João, General Olímpio da Silveira e Auro Soares de Moura Andrade
Bikes nos trens
- 7.695 bicicletas transportadas em vagões ao longo do mês de abril de 2016
- 2.409 guardadas em bicicletários nas estações espalhadas pela malha
- 2,8 mi de passageiros transportados por dia na rede da CPTM
Contador
- 340.557 ciclistas passaram pela ciclovia da avenida Faria Lima, de 18 de janeiro até 29 de maio deste ano
TINTA
Enquanto as primeiras ciclovias eram pintadas a frio e desbotavam em semanas, as atuais recebem aplicação à quente, modo usado para fixar faixas de pedestres, por exemplo.
Essa pintura dura de um a dois anos, dependendo de fatores como uso da rua, umidade e obras locais. Depois de prontas, a manutenção das ciclovias fica a cargo das subprefeituras e entra na mesma fila de reparos das ruas e calçadas.
Em um relatório publicado no ano passado, o Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento listou uma série de pontos a serem alterados na rede, como a pouca distância entre a faixa de bicicletas e a de carros. "Na rua da Consolação, temos uma ciclofaixa estreita", exemplifica Thiago Benicchio, gerente de Transportes Ativos do instituto e coordenador do estudo.
Uma das razões para isso é o uso da sarjeta. "Idealmente, essa área não deveria ser usada. Mas a utilização dela está ligada à dificuldade de tirar espaço do carro."
Acumulam-se, ainda, questionamentos judiciais. Há cinco inquéritos no Ministério Público em que são investigadas as implantações de ciclovias como a da Paulista e a da rua Amaral Gurgel. Outros dois já se tornaram ações na Justiça, um deles no qual Fernando Haddad e o secretário Jilmar Tatto são acusados de improbidade.
No Tribunal de Contas do Município, há seis contratos em análise. Nos da avenida Paulista e da rua Amaral Gurgel, uma auditoria constatou falhas, como a falta de projeto básico aprovado. Segundo o órgão, a prefeitura tem respondido aos questionamentos.
"Houve um pouco de partidarização em torno disso [das ciclovias]", afirma Haddad. "Poderia ter havido mais interesse em entender que é um processo de mudança de paradigma e, como tal, envolve dificuldades não triviais. Aconteceu com a faixa de ônibus e com a ciclovia também. São mudanças na maneira de entender a cidade."
Elvis Pereira/Folhapress | ||
Ciclovia com entulho na região do Grajaú, na zona sul da cidade |
No fim do mês passado, o prefeito foi aplaudido no festival Bicicultura, que reuniu cicloativistas. Na abertura do evento, ele comparou o ciclista ao sem-terra que pedia por uma reforma agrária, nesse caso a viária, para democratizar o espaço das ruas.
Também contou ter sido alvo de boatos. "Outro dia, recebi no meu WhatsApp uma denúncia de que o meu sogro era dono de uma fábrica de tintas. Meu sogro morreu em 1999, era gerente de banco e não tenho conhecimento disso", disse o prefeito. "Agora, recebi outra, dizendo que a minha filha é a verdadeira dona de fábrica de tintas. Aí mandei de volta: minha filha tem 15 anos. Não estou sabendo desse talento todo."
Embora o uso da bicicleta seja uma bandeira de Haddad, a valorização das magrelas na cidade também foi estimulada por outras gestões de diferentes partidos.
Entre 2007 e 2010, a CPTM e o metrô, controlados pelo governo estadual na gestão José Serra (PSDB), liberaram o transporte de bicicletas em alguns horários, instalaram bicicletários nas estações e construíram duas ciclovias, uma ao lado do rio Pinheiros e outra na radial Leste.
Nos anos seguintes, foram criadas as ciclofaixas de lazer, o serviço de empréstimo de bicicletas Bike Sampa e ciclofaixas fixas em Moema, na zona sul, na gestão de Gilberto Kassab (2006-2012).
Desde 2013, projetos de construção ou reforma de edifícios paulistanos precisam incluir um bicicletário para obter o alvará. "Não basta fazer um puxadinho num canto que sobrou. Ele precisa ser de fácil acesso e ter estrutura adequada", diz Daniel Guth, diretor da entidade Ciclocidade.
O PlanMob (Plano Municipal de Mobilidade Urbana) prevê fazer 1.300 km de ciclovias na cidade até 2030. Hoje, há um comitê para discutir o uso de bicicletas, com 20 representantes das cinco regiões da cidade.
Antes, a prefeitura promete chegar aos 400 quilômetros que constam do plano de metas assumido pela atual gestão. Pontos da periferia devem ser atendidos, como um trecho na avenida Senador Teotônio Vilela. Os outros locais? A CET não informou.
Colaborou Ricardo Ampudia